Desejo profundo de mudança social
Departamento ultramarino da França, Guadalupe está imersa em protestos, greves e piquetes. Os manifestantes têm uma plataforma ambiciosa, que engloba todos os aspectos da vida econômica e social e coloca em discussão a discriminação proveniente do período colonial
Tudo parecia tranquilo na desigual sociedade guadalupense. De um lado, funcionários públicos e assalariados das grandes empresas. De outro, operários e empregados precários de companhias menores, subcontratados, simples jobeurs (trabalhadores sem registro) e Rmistes. Uns remunerados corretamente, outros, comendo o pão que o diabo amassou.
Durante trinta anos, as relações sociais foram reduzidas a uma corrida consumista para alguns e a uma malandragem misturada a pequenos negócios para muitos. Cada qual se adaptando entre ajudas sociais – Renda Mínima de Inserção (RMI), Caixa de alocações familiares (CAF) ou Associação para o emprego na indústria e no comércio (Assedic) – e trabalho clandestino; entre salários miseráveis e desemprego – que atinge, em média, 24% da população economicamente ativa. Aliás, para quem tem menos de 30 anos, esse número sobe para 45% e, em certos bairros desfavorecidos, como Lacroix aux Abymes, beira os 70%. O pano de fundo desse cenário é o êxodo maciço de jovens, diplomados e profissionais, incapazes de se inserirem em seu próprio país.
Mas esse pequeno território francês em pleno Caribe não está mais em paz: em 20 de janeiro, uma greve geral foi desencadeada. Graças à força de 49 sindicatos, partidos políticos e associações, o Coletivo Liyannaj kont pwofitasyon (LKP) – União contra os lucros abusivos e a exploração – convocou diretamente o povo guadalupense. E com apenas duas bandeiras: a luta contra o alto custo de vida e pela ajuda imediata aos trabalhadores pobres. Claro, sem esquecer a denúncia das fraudes em grande escala, praticadas pelos oligopólios empresariais com a aprovação do Estado.
Assistimos, então, a um choque frontal entre o mundo sindical e o patronato, cuja principal novidade é que a intransigência não fica mais sem resposta. O apoio da sociedade civil faz a correlação de forças pender a favor do Coletivo LKP.
Já em dezembro de 2008, os donos de transportadoras haviam feito uma greve para pedir a redução dos preços dos combustíveis. Eficazes, as barreiras nas estradas levaram os governantes regionais a negociarem e em cinco dias, um acordo foi assinado, tendo como desfecho a redução de preços e a satisfação da população por esse benefício.
Inversamente ao que ocorreu nessa ocasião, ao final dos primeiros dias de greve e de manifestações ninguém concordou em receber os dirigentes do LKP: nem os representantes do poder central, nem os governadores dos departamentos envolvidos. Contudo, essa primeira mobilização deu oportunidade para o Coletivo entrar em contato com os guadalupenses.
Desde o dia 20 de janeiro, os líderes do LKP insistem no caráter amplo de suas reivindicações, reunidas numa plataforma de 142 pontos. Ambiciosa, ela engloba todos os aspectos da vida econômica e social: desenvolvimento, emprego, formação, saúde, meio-ambiente, cultura, organização do território etc. Além do alto custo de vida, coloca em discussão a discriminação, os desrespeitos ao código de trabalho e as relações sociais provenientes do período colonial.
O caráter global e mesmo sistêmico das reivindicações provocou comentários depreciativos: “São exigências irrealistas e extravagantes que não mobilizarão muita gente”, avaliaram alguns patrões. Mas, de manifestação em manifestação, o movimento virou uma bola de neve. O LKP conquistou sua legitimidade na rua. A pressão popular de dezenas de milhares de manifestantes obrigou “os do alto” – empresários e dirigentes políticos – a sentarem-se à mesa de negociações com o Coletivo.
Porém, um dos pontos centrais colocados por seus membros – o aumento de 200 euros líquidos mensais para os salários mais baixos – interrompeu imeditamente as negociações entre patronato e sindicatos. Essa exigência significa, na realidade, uma recuperação dos assalariados privados em relação aos empregados do setor público, mais bem estabelecidos – nos departamentos ultramarinos (DOM), os funcionários públicos ganham 40% mais que seus colegas na metrópole! Produto da transformação, votada em 1946, das quatro antigas colônias francesas – Guadalupe, Guiana, Martinica e Reunião – em departamentos, esta remuneração privilegiada era, a princípio, reservada aos agentes do Estado enviados para os departamentos ultramarinos. Graças a muita luta, os funcionários recrutados in loco obtiveram igualdade de tratamento.
O principal liderança do LKP, Elie Domota, gosta de comparar os números. “Nós somos 50 mil desfilando em Ponte-à-Pitre [em uma população de 451 mil habitantes]. É o equivalente, na França, a um cortejo de seis milhões de manifestantes nas ruas de Paris.” Há também uma inovação midiática: as negociações são transmitidas na íntegra pelas televisões locais. Durante quatro dias, antes dos diálogos com os governadores cessarem, a população ficou grudada à tela da TV. O cidadão se via, desse modo, como testemunha das discussões (o cálculo de preços, os salários, os mercados públicos, a educação, a saúde, o desenvolvimento agrícola etc.) das quais ele normalmente era excluído.
Nem o patronato local, nem o governo viram chegar esse turbilhão. Num primeiro momento, o patronato afirmou ser incapaz de pagar os 200 euros de aumento salarial aos smicard (quem recebe o salário mínimo). Além disso, o primeiro-ministro francês François Fillon recusou categoricamente ajudar os empresários através de desonerações sociais e fiscais suplementares. O secretário de Estado encarregado dos departamentos ultramarinos, Yves Jégo, apareceu, estabeleceu um pré-acordo permitindo ao patronato financiar o famoso aumento, e partiu sem avisar ninguém, em 9 de fevereiro. Ou seja: Paris enviou dois “mediadores”, mas deixou a situação deteriorar, até chegar à morte de um sindicalista, Jacques Bino, em 17 de fevereiro.
Ambos socialistas, os presidentes da região e do departamento, Victorin Lurel e Jacques Gillot, foram driblados pela esquerda. Há vários anos, os grupos comerciais, os monopólios1 e o clã dos békés – descendentes dos antigos proprietários de terras e escravagistas da Martinica – impõem suas margens exorbitantes sem que os eleitos locais se engajem sistematicamente e
investiguem as práticas fraudulentas. Vejam-se as oito famílias békés que controlam as redes de supermercados e de importação-exportação2. O acordo sobre os preços fica fácil assim: entre 2007 e 2008, o custo dos produtos de primeira necessidade aumentou descontroladamente: o leite subiu 48%; as massas, 87%; a manteiga, 59% etc.
As margens e adulterações da Sociedade Anônima da Refinaria das Antilhas (Sara, monopólio que distribui produtos petrolíferos) constituem igualmente um exemplo para a análise das fraquezas do controle do Estado. Houve, em 2005, o escândalo do clordecone3, timidamente denunciado pelos eleitos e que pouco entrou na pauta das associações ecológicas e dos sindicatos agrícolas.
Tampouco viu-se qualquer atitude para modificar a lei de isenção Girardin4, que não acrescenta nada à economia em termos de investimentos produtivos. Em contrapartida, esse sistema elevou consideravelmente o preço dos terrenos, transformando zonas inteiras do arquipélago em residências secundárias para grandes contribuintes metropolitanos. Paralelamente, a oferta de habitação social é deficiente e os escândalos financeiros se sucedem. Enfim, os políticos não propuseram nada de concreto às camadas mais baixas da população.
Dessa forma, o engajamento maciço dos guadalupenses no Coletivo LKP constitui um ato de desconfiança em relação à classe política local. E há certamente a contestação clássica do mundo sindical endereçada à política social do governo Fillon-Sarkozy. Porta-voz do LKP, Elie Domota explica de modo lapidar as hesitações governamentais em Guadalupe, em um contexto de crise social aguda na França: “Quando há fogo no castelo, ninguém dá a mínima para o estábulo!”.
Alguns intelectuais, como o psicólogo Errol Nuissier, contestam os métodos e mesmo a extensão da ação do LKP. Segundo ele, o fechamento forçado pelos piquetes de centenas de empresas ou de postos de combustível, a paralisia do abastecimento e o bloqueio de redes de água e eletricidade atingem mais duramente os desfavorecidos, os doentes e as pessoas isoladas. O mesmo ocorre na economia: as estruturas mais sólidas – grandes marcas ou negócios mantidos pelos békés – passarão sem problemas por esse período difícil, enquanto as mais precárias deverão fechar. Vantagem para os maiores.
Ao observar o caráter heteróclito das 49 organizações que constituem o LKP, alguns se perguntam: esse Coletivo segue uma linha política? A palavra de ordem sobre o alto custo de vida e a defesa do poder de compra dos mais desfavorecidos tem um efeito unificador. Mas, admitindo que ela satisfaça esses pontos, a mobilização popular corre sério risco de ficar apenas com esses ganhos materiais. “Se, após a mobilização geral, as pessoas tiverem maior poder de compra, mas, no final, consumirem ainda mais produtos importados e ‘alimentos de qualidade duvidosa’”, avalia Georges Magdeleine, agricultor e membro do Coletivo, “não teremos ganhado nada no negócio!”
Na realidade, as reivindicações da plataforma vão bem além das negociações econômicas. Elas decorrem de um profundo desejo de mudança social. Por exemplo, a contenção da espiral consumista que torna sempre mais precária a situação da população5; o fim das discriminações na contratação para os postos de staff que restituem a hierarquia da sociedade colonial (os brancos no alto, os negros embaixo); a neutralização dos empreendedores imobiliários vindos da Europa; a retomada do diálogo nas empresas, muitas vezes submetidas a um autoritarismo patronal antiquado; ou ainda, a reabilitação do patrimônio cultural créole.
Desenvolvimento sustentável
Em último lugar, o LKP pede maior participação local nas decisões e a gestão de um desenvolvimento “sustentável”, adaptado à Guadalupe e ao meio-ambiente caribenho6. Reivindica que sejam administrados localmente todos os setores controlados de forma direta por Paris – emprego, formação, saúde, cooperação regional, organização do território etc.
Paradoxalmente, o debate sobre a evolução do estatuto político da ilha foi abandonado pelo referendo do dia 7 de dezembro de 2003, com 72% dos guadalupenses tendo votado “não” ao caminho para a autonomia. Cinco anos mais tarde, porém, o atual conflito traz à tona a obsolescência do estatuto de DOM – como demonstra a retomada das reivindicações também na Martinica, na Guiana e na ilha Reunião.
Entretanto, a solicitação lógica de emancipação jamais foi evocada pelos personagens importantes do LKP, ainda que o Coletivo seja constituído de organizações independentistas. Carismático, Elie Domota ocupa o cargo de secretário-geral da União Geral dos Trabalhadores de Guadalupe (UGTG), que milita abertamente pela independência. Mas, por questão de método ou de estratégia, todo mundo tem consciência das reticências do povo face a essa opção.
Um manifesto dos nove intelectuais antilhanos para as sociedades “pós-capitalistas”, que circulou amplamente, afirma: “Nenhuma de nossas reivindicações é ilegítima. Nenhuma é irracional em si e, sobretudo, não é mais desproporcional que as engrenagens do sistema atual com o qual ela se confronta. Nenhuma poderia ser então negligenciada no que representa nem no que implica em relação ao conjunto das outras reivindicações7”.
*Fabrice Doriac é jornalista em Pointe-à-Pitre.