Desemprego à vista
A crise gera expectativas negativas sobre o futuro. Se o Brasil crescer menos de 3,5% em 2009, a falta de emprego não tardará a chegar. Às atuais férias coletivas se seguirão a redução das horas extras e as demissões, primeiro dos trabalhadores temporários e depois dos demais
Será que o desemprego nos atingirá em 2009? Essa pergunta expressa a grande dúvida atual da classe trabalhadora do país. Ao mesmo tempo, provoca ansiedade individual e coletiva ao recuperar, na memória dos brasileiros, a experiência ainda recente de desemprego de longa duração.
Imediatamente lembramos que a falta de postos de trabalho provoca a queda da renda, seja da massa dos rendimentos ou dos salários reais médios, e cria um ambiente de insegurança, ocasionando atitudes defensivas no consumo que, além de gerarem um declínio na qualidade de vida, enfraquecem a dinâmica do mercado interno. A partir do trabalho, portanto, estão colocadas as condições para o movimento que desintegra a própria economia do trabalho.
Por que essa dúvida hoje?
A vida mudou desde setembro. Os problemas das hipotecas do sistema habitacional americano explodiram e rapidamente se desdobraram em grave crise financeira, monetária e econômica.
A crise de confiança no sistema financeiro é, para o capitalismo, o equivalente a um ataque cardíaco para o ser humano.
O sistema financeiro, como o coração para nosso organismo, bombeia e faz circular a moeda para os negócios. Assim como nós, que raramente percebemos o coração trabalhando ininterruptamente, a sociedade, no dia-a-dia, também não percebe o sistema financeiro permeando os fluxos dos negócios. Mas uma parada, em ambos os casos, é fatal.
Rapidamente a crise americana contaminou todo o sistema financeiro mundial: as bolsas de valores acumulam perdas, o câmbio ganhou volatilidade e o contágio quase imediato da economia internacional gerou paralisia no mundo dos negócios e na produção de bens e serviços.
A crise revelou o descasamento absoluto entre as riquezas material e financeira.
Para se ter uma idéia, estima-se que a riqueza financeira movimentava ativos em papéis correspondentes a dez vezes a riqueza material. E a crise iniciou o ajuste: até outubro houve desvalorização dos ativos em mais de US$ 14 trilhões e perdas de outros US$ 27 trilhões. Para ilustrar melhor a situação, vale dizer que a riqueza mundial é estimada em US$ 55 trilhões.
O que significa atingir a economia real?
A crise gera insegurança e desmobiliza expectativas positivas sobre o futuro. Todos procuram diminuir perdas. A queda brusca do nível da atividade econômica rapidamente traz a recessão, como já ocorre nos EUA, nos países da União Européia e no Japão. A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) prevê queda de 1,4% na produção econômica neste trimestre nos 30 países que a integram e contração de 0,3% em 2009. Na China, o ritmo da produção industrial está diminuindo e na Rússia e na Índia, há sinais de desaquecimento. Está, portanto, cada vez mais próxima a ameaça de deflação nos países ricos, o que pode agravar ainda mais a desaceleração econômica.
A falta de emprego não tarda a chegar. Por exemplo, estima-se que a taxa de desemprego aberto nos EUA atinja 7,7% em 2009, com perda mensal de 100 mil empregos durante o próximo ano. Em todos os cantos anunciam-se demissões.
Coordenar ações anticíclicas para reverter a recessão é fundamental. A proteção social diante do desemprego é uma das políticas que pode fazer diferença em muitos países na travessia dessa crise.
O centro da ação precisa ser de políticas monetárias condizentes. Dito de outro modo: é necessário baixar a taxa de juros e implementar políticas fiscais expansionistas. Isso significa a revisão de impostos e mais gastos públicos para garantir investimentos.
Há a grande tarefa de buscar outro arranjo institucional, que aumente a regulação externa do sistema financeiro mundial e dos fluxos de comércio internacional.
Como essa crise atinge os trabalhadores?
O que a década de 1990 reservou para os trabalhadores:
1) Achatamento salarial, decorrente dos ajustes pelas “médias” de vários planos de estabilização. Somente com o Plano Real a inflação foi controlada e ensaiou-se a recuperação dos rendimentos do trabalho.
2) Baixíssimo crescimento econômico, incapaz de gerar empregos que absorvessem a entrada das pessoas no mercado. O desemprego cresceu e atingiu o pico em 2003.
3) Reestruturação produtiva, promovida pelas empresas em busca de competitividade. Com isso, elas inovaram, aumentaram a produtividade e diminuíram o emprego, o que agravou ainda mais o já fragilizado mercado de trabalho.
4) Desverticalização da estratégia de negócios das empresas, por meio da terceirização, o que fracionou a contratação dos trabalhadores, com graves conseqüências, como a piora das condições de trabalho e da remuneração.
5) Desemprego de longa duração, em um arcabouço institucional onde há fragilidade na proteção do sistema público de emprego, com um seguro-desemprego parcial – em termos de tempo e valor –, um serviço precário de formação profissional para os desempregados e debilidade na intermediação de mão-de-obra, que ainda se defronta com a ausência de oferta de postos de trabalho. Essa situação colocou mais membros das famílias no mercado de trabalho: crianças, jovens, mulheres e aposentados foram disputar uma vaga ou um “bico” na busca de renda, obtendo ocupações precárias.
6) Aumento, diante da enorme oferta de mão-de-obra, da dificuldade de obter um posto de trabalho, do custo de buscar uma ocupação (transporte, alimentação e vestuário) e da exigência de qualificação, o que levou milhares de pessoas para o desalento, pois, apesar de precisarem do emprego, elas desistiam temporariamente de procurá-lo.
7) Crescimento da informalidade, a ocupação sem nenhuma proteção social durante e pós-vida laboral.
Assim, em 2003, as taxas de desemprego total medidas pela PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego – DIEESE-Seade) estavam ordenadas da seguinte forma: São Paulo, 19,9%; Salvador, 28%; Recife, 23,2%; Porto Alegre, 16,7%; Belo Horizonte, 20%; Distrito Federal, 22,9%.
Observamos na Região Metropolitana de São Paulo (Gráfico 1) as evoluções do emprego, desemprego e da renda, entre 1985 e 2004. Houve crescimento de 43% no nível ocupacional no período (1,8% em média por ano), aumento de 135% no contingente de desempregados (4,4% em média por ano), além de redução no valor real do rendimento médio do trabalho de 3,2% ao ano. Em 2004, o rendimento real equivalia a apenas 52% do valor que apresentava em 1985.
O trabalho no Brasil a partir de 2004
A partir de 2004, o país reverteu sua performance econômica, com o aumento contínuo e ininterrupto da taxa de crescimento.
O reflexo sobre o mercado de trabalho foi significativo. Desde 2004, a taxa média anual de desemprego tem diminuído em todas as regiões metropolitanas, conforme indica o Gráfico 2. Do pico em 2003, quando a taxa média metropolitana chegou a 20,8%, houve redução para 15,5% em 2007. Em 2008, a taxa de desemprego continua a cair, atingindo em setembro 14,1% nas regiões metropolitanas, a menor desde 1998.
Além do aumento da quantidade de postos ofertados, houve melhora na qualidade da ocupação, com o crescimento mais acentuado das contratações com registro em carteira de trabalho (Gráfico 3).
Em 2007, segundo o registro administrativo da Rais (Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego), foram criados no Brasil 2,5 milhões de empregos formais, o que representa aumento de 6,9% em relação a 2006. Em 2008, até setembro foram criados mais de 2 milhões de novos postos de trabalho.
Observa-se aumento da participação da renda das famílias no crescimento econômico. Por um lado, isso é decorrente do aumento da ocupação e, mais recentemente, dos salários reais médios, que promoveram o crescimento da massa de rendimentos a taxas que chegam a superar 10% ao ano. Também contribuem com isso a política de valorização do salário mínimo – negociada pelas centrais sindicais e que teve importante impacto na renda da base da pirâmide dos trabalhadores, dos aposentados e pensionistas –, além da melhora da remuneração no trabalho informal. A política de transferência de renda por meio do programa Bolsa Família e o crédito ao consumidor, em especial o consignado em folha de pagamento, também são fatores fundamentais. Em outras palavras, o crescimento foi sustentado pelo mercado interno. Cada real recebido pelos trabalhadores se transformou em consumo, que ativou a produção, puxou investimentos e favoreceu a poupança.
E agora, quais são os impactos da crise para o Brasil?
É verdade que o país está hoje mais bem preparado para enfrentar essa crise, mas isso não significa que estamos imunes a ela. Pelo contrário. A globalização econômica atingiu tamanha abrangência que desenvolveu uma complexa interdependência entre os mercados. Isso fez com que o Brasil se beneficiasse do crescimento mundial, mas também o deixou vulnerável às conseqüências das movimentações globais.
O problema do crédito está sendo enfrentado, e as empresas sofrem o travamento dos fluxos do comércio internacional. Há dificuldade para o financiamento do capital de giro ou para o investimento. O crédito ao consumidor também foi afetado: cresceram as taxas, diminuíram as prestações e aumentaram as exigências. E o comércio exterior já sente os impactos, com os agravantes da redução do consumo e do investimento nos outros países. Os estoques estão elevados e há sinais de queda do nível de atividade da indústria.
Está claro que em 2009 não manteremos a taxa de crescimento econômico de 5,5% esperada anteriormente.
O trabalho no Brasil em 2009
Se nada ou muito pouco for feito, teremos a volta do agravamento do desemprego. É possível afirmar que um crescimento abaixo de 3,5% trará novamente a perspectiva da desocupação. Às atuais férias coletivas se seguirão a redução das horas extras e as demissões, inicialmente dos trabalhadores temporários e depois dos demais. A intensidade do desmonte da estrutura ocupacional das empresas será do tamanho da incerteza de futuro, das restrições dos mercados externo e interno, combinada com a intensidade da queda no nível de atividade de cada segmento.
Neste último trimestre, por exemplo, começam a sentir os efeitos da crise os trabalhadores ligados aos setores exportadores (commodities – grãos, carnes, metais – e manufaturados) e aqueles dependentes diretamente do crédito (como o automobilístico). Em dezembro, observaremos a performance do comércio, que ainda está contratando trabalhadores temporários para as vendas de final de ano.
Os dados do Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados (Caged), divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), dão conta de que pouco mais de 61 mil novas vagas formais foram criadas em outubro de 2008 contra mais de 200 mil no mesmo mês de 2007. Isso revela o nível da queda das contratações.
O primeiro trimestre de 2009 será crucial. Pelo movimento sazonal observado ao longo dos anos, o desemprego cresce nessa época. Teremos passado pelas festas de final de ano (primeiro teste para o mercado de trabalho), as iniciativas divulgadas pelos países ricos estarão em curso, o Brasil terá anunciado suas medidas e observaremos o comportamento do mercado interno. Nesse período crescem o comércio e os serviços nas regiões ligadas às férias (litoral, serra e locais de águas termais). Será o segundo teste para o mercado de trabalho.
Mas se o crédito continuar escasso e caro e os prazos forem encurtados, provocando insegurança nos trabalhadores que quiserem um financiamento, a queda no consumo virá e terá impactos consideráveis na produção industrial. Poderá haver agravamento do desemprego, com redução da massa de rendimentos, e assim por diante. Ladeira abaixo.
Sem esquecer que a diminuição no nível da atividade econômica traz queda nas receitas da União, dos estados e municípios, restringindo, assim, a capacidade de ação pública.
O Brasil pode desviar desses obstáculos?
Como já dissemos, estamos sendo atingidos pela crise internacional que, para os otimistas, poderá durar até o segundo semestre de 2009 e para outros, dois ou três anos – afinal, o ajuste a se processar é grande.
Sabemos quais serão as graves conseqüências trazidas por uma desaceleração cíclica do nível de atividade econômica para a organização da economia, para o tecido social e para as estratégias em curso de enfrentamento dos problemas que temos no Brasil. A convicção que nos orienta é a de minimizar a queda do nível de produção e de emprego por meio de medidas de investimento produtivo e de apoio ao consumo, já anunciadas por governos de todo o mundo.
Temos de envidar todos os esforços nacionais nesse sentido, para desviar ao máximo o país da crise. Não devemos, de forma alguma, minimizar o diagnóstico do impacto interno. A gravidade deve nos orientar a tomar as decisões radicais de mobilização da vontade política, da capacidade econômica e do desejo social, em busca de alternativas que exigem, sem sombra de dúvida, o aumento do gasto público, a aposta das empresas em investir e não demitir e a volta da oferta de crédito nos bancos.
Podemos e devemos transformar as nossas fraquezas em oportunidades. Temos uma situação de extrema desigualdade que se materializa em déficits sociais enormes, sejam habitacionais, de saneamento, educação e saúde, entre outros. Nos espaços urbanos e no meio rural, há inúmeras carências urgentes. Temos uma boa política de transferência de renda e um Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) que pode ser preservado e fortalecido.
Assim, é essencial garantir e avançar nos investimentos do PAC; promover crédito às empresas, com destaque aos investimentos; recuperar o crédito ao consumidor; priorizar obras e serviços públicos que gerem ocupações e possam receber inversões rápidas; olhar com atenção para as demandas das micro e pequenas empresas, oferecendo ágil capital de giro, qualificação e possibilidade para o fluxo dos negócios; mobilizar os agentes financeiros públicos, em especial o BNDES, para garantir minimamente a taxa de investimento, inclusive em inovação (este ano chegamos a 17,7% do PIB); agilizar a alocação dos recursos já disponíveis do FGTS para habitação, em especial para os trabalhadores de baixa renda e para o saneamento; viabilizar o financiamento das safras, com garantia de preços mínimos, e um cuidado especial para as dívidas, diante de situações de perdas, entre tantas outras medidas cuja base é também o orçamento fiscal.
Nessa perspectiva, é fundamental a sinalização do Banco Central na redução da taxa de juros, a maior do mundo. Devemos aproveitar esse momento para colocá-la em patamares compatíveis com o mercado internacional, aliviando o orçamento e promovendo capacidade de o governo operar uma política fiscal anticíclica. Medida, aliás, que outros países têm realizado com mais agilidade.
Não podemos também perder a oportunidade de avançar em mudanças que podem fazer diferença nas expectativas. Um exemplo é a aprovação da reforma tributária, em discussão na Câmara dos Deputados, ou o encaminhamento da lei que incentiva a repatriação de capitais (estima-se que, dos recursos mantidos no exterior, de US$ 65 bilhões a US$ 70 bilhões fugiram do país ao longo dos anos).
Qual a prioridade para os trabalhadores?
O medo da recessão ou do baixo crescimento e do desemprego já está presente no imaginário coletivo. Uma pesquisa recente da Fecomércio (Federação do Comércio do Estado de São Paulo) revelou que 89% dos paulistanos estão assustados com a crise e acreditam que ela afetará o país. Em novembro, mais de 43% afirmaram ter receio do desemprego, enquanto em outubro eram 38%.
Do ponto de vista dos trabalhadores, há uma prioridade e uma oportunidade. A prioridade deve ser a preservação do nível de emprego. Os desafios são conceber e viabilizar, por meio de complexas negociações, um arranjo político, econômico e social capaz de mobilizar a vontade da nação em usar seu forte mercado interno para preservar o nível de atividade econômica. Nessa estratégia, manter o atual nível de emprego é condição para o resultado esperado. Daremos
assim uma demonstração de que é possível uma política econômica e monetária que tenha na manutenção do nível de emprego um dos instrumentos para transitarmos pela crise com menor custo social e econômico para a nação.
Há ainda oportunidade de investir para avançar na revisão do modelo de crescimento econômico assentado na exaustão dos recursos naturais e no uso de energia fóssil. É preciso desenvolver uma nova economia, que exija investimento e criação, na qual manter, preservar e recuperar seja mais vantajoso que poluir e destruir. Criar tecnologia limpa, valorizar a mata e os biomas, ver os rios limpos, o ar saudável, o esgoto tratado, entre tantas outras dimensões de uma sociedade que descobre a riqueza em outros sentidos econômicos, podem ser a base e a oportunidade para a geração de milhares de novos empregos.
Enfim, é preciso agir, e rápido, pois, como escreveu Paul Krugman em artigo publicado pela Folha de S.Paulo, em 15 de novembro, “quando a economia da depressão prevalece, regras usuais da política econômica deixam de se aplicar: a virtude se torna vício, a cautela é arriscada e a prudência é insensatez”.
*Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e do Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).