Desenvolvimento local
Com o programa Territórios da Cidadania, destinado a 958 regiões críticas do país, abrem-se fortes esperanças de dinamização de um outro modelo de desenvolvimento, mais próximo do cidadão, e por ele apropriado. A inclusão produtiva do que Milton Santos chamou de “circuito inferior” está na ordem do dia
Muito se fala sobre a globalização. E ela sem dúvida é real. No entanto, quando observamos os componentes do cotidiano – o médico da família, a escola das crianças, o hortifrutigranjeiro dos ingredientes que abastecem a cozinha, a segurança das ruas, as soluções do trânsito, enfim, o grosso dos elementos que definem a nossa qualidade de vida –, verificamos que eles são eminentemente locais. O computador, o celular, o carro e semelhantes são, sem dúvida, globais. Mas não é todo dia que os compramos, e nem sempre se mostram assim tão essenciais. A grande diferença é que, enquanto o global nos leva a suspiros impotentes, o local pode ser objeto de nossa intervenção organizada.
Acabou de se realizar, em Porto Alegre, a Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento das Cidades. Cerca de sete mil pessoas se juntaram para discutir formas práticas de organização. Já temos regularmente o evento nacional Expo-Brasil, que permite o confronto das muitas experiências de desenvolvimento local do país. São milhares de iniciativas inovadoras, de Norte a Sul. São coisas que não saem na grande mídia, pois, freqüentemente pequenas, dispersas, atomizadas, não compram publicidade e exigem levantamento de dados na própria localidade.
Participação ativa dos cidadãos
O Brasil tem 5562 municípios, que, com a Constituição de 1988, adquiriram autonomia e direito à iniciativa local. Por força da tradição da política centralizada, no entanto, apenas lentamente foi-se constituindo a mudança de cultura que sustenta a gestão local, com a participação ativa dos cidadãos, a presença crescente da sociedade civil organizada, o sentimento de pertencimento e de identidade. As políticas de desenvolvimento local estão tornando-se adultas.
Para muita gente, o local é pequeno, e, portanto, pouco significativo. Mas é difícil imaginar que a economia possa funcionar se as empresas não forem administradas de maneira competente. Da mesma forma, o desenvolvimento do país passa pela gestão racional dos recursos em todos os seus municípios. Racional e democrática, pois, nesta empresa, os habitantes são os donos. Há um imenso potencial de dinamização econômica, social e ambiental a se aproveitar, melhorando as condições ou o ambiente em que se desenvolvem as iniciativas locais.
No plano financeiro, as taxas de juros e as tarifas proibitivas dos bancos descapitalizam os territórios. Os bancos preferem a ciranda financeira ao trabalhoso dever de financiar atividades produtivas. Nos Estados Unidos, onde a globalização gerou a mesma tendência, foi aprovada a lei do reinvestimento comunitário, que obriga os bancos a reinvestirem localmente as poupanças, que são, afinal, da comunidade, e não dos banqueiros1. Não seria viável uma lei neste sentido, devidamente adaptada? Na França, está se generalizando a atividade de ONGs de intermediação financeira, muito mais eficientes do que os bancos na aplicação dos recursos, pois conhecem as comunidades onde estão inseridas. Na Alemanha, as caixas locais de poupança administram mais da metade das poupanças do país, permitindo atendimento ágil e desburocratizado às necessidades da comunidade. Não é difícil imaginar melhorias no ambiente financeiro local. Na realidade, é indispensável.
Uma grande empresa tem formas ágeis de se apropriar de novas tecnologias, comprando pacotes tecnológicos e contratando consultores. E a pequena? Temos, sem dúvida, diversas iniciativas, que vão do Disque Tecnologia da USP até a Rede de Tecnologias Sociais, iniciativa interministerial. O Ministério de Ciência e Tecnologia propõe a inclusão digital e a divulgação científica. Mas, no conjunto, considerando a interação em rede que a conectividade moderna permite, estamos longe do possível, e muito aquém do necessário. A Índia formou, recentemente, 1,2 milhão de agentes de fomento tecnológico, que não esperam o “cliente”, se instalam nos vilarejos e fomentam processos locais diferenciados. Cada universidade regional não poderia, além de fornecer diplomas, constituir-se num pólo alimentador tecnológico do território local? Todos os municípios do país estão de alguma forma conectados eletronicamente: não seria viável evoluir para uma rede interativa de núcleos de fomento tecnológico em todo o país?
No plano das instituições, ainda somos frágeis, mas as inovações se multiplicam. Em Santa Catarina, os conselhos regionais de desenvolvimento inovam na articulação entre o orçamento estadual e as iniciativas locais, reduzindo a tradicional concentração de financiamentos na capital do Estado. No Paraná, agências regionais e locais de desenvolvimento estão se multiplicando, articulando recursos públicos e privados. O orçamento participativo já permite a participação organizada das comunidades em numerosos municípios do país, gerando atitudes pró-ativas, consciência crítica e capital social. No conjunto, porém, a compreensão da necessidade de articular os diversos agentes econômicos e sociais do território em sistemas de parcerias ainda engatinha. As próprias instituições de fomento não possuem mecanismos de articulação no nível de implementação dos programas. A articulação de parcerias interinstitucionais para o desenvolvimento local integrado apenas começa a aparecer.
130 indicadores da cidade de São Paulo
Não há desenvolvimento sem participação, e não há participação sem informação. Contam-se nos dedos as cidades que têm sistemas razoáveis de informação gerencial. Como se sentiria um diretor de empresa sem sistema de informação organizado? Jackson ville, nos Estados Unidos, publica anualmente um relatório sobre a qualidade de vida da cidade. É elaborado por uma rede de organizações da sociedade civil e permite que a população tenha a visão clara dos avanços e dos pontos críticos, podendo assim intervir de maneira organizada. Em São Paulo, o movimento Nossa São Paulo terminou recentemente o levantamento de um conjunto de 130 indicadores básicos da cidade, permitindo a ação articulada e informada da sociedade civil. Há cidades com sistemas de informação setorial razoáveis. Mas, no conjunto, a transparência, a informação e a prestação de contas à comunidade, que, afinal, é dona do território, permanecem precárias. As novas tecnologias permitem que se avance rapidamente e com poucos gastos nesta área.
O exemplo das rádios comunitárias
A mídia e o entretenimento sofrem de um mal parecido com o dos bancos: muito concentrados, fornecem serviços caros, padroni
zados e manipulados para todo o país, cada vez mais distantes das necessidades reais. O Brasil inteiro assiste aos dramas sexo-existenciais da classe média da Zona Sul carioca, como se isso resumisse toda a vida nacional, ignorando a imensa riqueza cultural diversificada. As novas tecnologias permitem a criação de rádios comunitárias com pouquíssimos gastos, instrumento fundamental para que as comunidades possam falar de e para si mesmas e se articular em torno de suas próprias necessidades. Exemplos como o Programa de Piraí Digital, onde, com recursos muito limitados, organizou-se o acesso à internet banda larga, com dinamização econômica e avanço educacional, mostram o imenso potencial da conectividade e da democratização das comunicações.
No plano da formação teórica, continuamos com uma ruptura epistemológica entre os que cuidam do econômico e os que batalham pelo social. O ordenamento do território, visando a articulação dos diversos e diversificados potenciais de cada região ou município, sequer existe como carreira. Brilha solitária a estrela de Milton Santos, um geógrafo, pois os economistas estão demasiado ocupados com taxas de juros. No entanto, surgem com força iniciativas de formação de gestores sociais – numa visão articulada dos processos locais de desenvolvimento – como, por exemplo, os trabalhos de Tânia Fischer na Bahia, de Tânia Zapata, no Recife, os recentes trabalhos de formação de gerentes do Banco do Brasil, na linha do Desenvolvimento Regional Sustentável, ou ainda os esforços do Sebrae na área do desenvolvimento local. A ampliação e generalização destes esforços são indispensáveis.
Em cada uma destas áreas – e há outras semelhantes –, constata-se o avanço muito significativo das próprias comunidades, que freqüentemente arregaçam as mangas e se organizam com o pouco que têm. Mas verifica-se também o quanto poderia ser feito para que a iniciativa na base da sociedade pudesse ter um impacto mais amplo, com efeito multiplicador nas diversas regiões. O projeto Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local sistematizou dezenas de propostas práticas neste sentido2. Com o recentemente lançado programa do governo federal Territórios da Cidadania, destinado a 958 regiões críticas do país, abrem-se fortes esperanças de dinamização de um outro modelo desenvolvimento, mais próximo do cidadão, e por ele apropriado. A inclusão produtiva do que Milton Santos chamou de “circuito inferior” está na ordem do dia.
Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de A reprodução social e Democracia economômica – um passeio pelas teorias (contato http://dowbor.org).