Desigualdade
A desigualdade é naturalizada, apresentada como uma herança histórica, uma característica de nossa sociedade com a qual temos de conviver. Não é vista como uma construção histórica que se apoia nas próprias políticas públicas e tem no Estado seu principal promotor.
Tem sido comum atribuir à desigualdade a situação de pobreza, a violência e a criminalidade que campeiam no Brasil. Seria a enorme e crescente diferença entre ricos e pobres uma das principais causas dos males que afligem nossa sociedade. O diagnóstico não está errado, mas trata a desigualdade como causa, e não como consequência.
A desigualdade é naturalizada, apresentada como uma herança histórica, uma característica de nossa sociedade com a qual temos de conviver. Não é vista como uma construção histórica que se apoia nas próprias políticas públicas e tem no Estado seu principal promotor.
Pelos economistas neoliberais, a desigualdade tem sido tratada, no plano da economia, como uma consequência inevitável da lógica concentradora dos mercados. Para eles, já que o sistema é assim, no máximo é preciso atuar junto aos mais pobres aliviando seu empobrecimento com políticas compensatórias. Na conjuntura brasileira atual, nem as políticas compensatórias estão entre os objetivos do governo.
A desigualdade tem sido medida principalmente pelo acesso à renda. A riqueza acumulada e as propriedades normalmente não são levadas em conta.
A narrativa neoliberal é apropriada pela percepção da população: “O progresso do Brasil está condicionado à redução de desigualdade entre ricos e pobres para 86% dos brasileiros”.1
Além disso, o individualismo, a competição, o empreendedorismo, a superdedicação ao trabalho e a fé religiosa se apresentam como os caminhos para enfrentar essa desigualdade no plano dos indivíduos.
Na contramão da doutrina neoliberal, que quer privatizar os serviços públicos e reduzir o tamanho do Estado, 84% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que, “em um país como o Brasil, é obrigação dos governos diminuir a diferença entre as pessoas muito ricas e as pessoas muito pobres”.
“Ter acesso à saúde” (com 54%), “estudar” (com 50%), “fé religiosa” (com 49%) e “crescer no trabalho” (com 48%) se apresentam como alternativas para enfrentar a desigualdade.
Essa percepção é ainda mais forte se consideradas as desigualdades regionais: 88% dos entrevistados atribuem aos governos a responsabilidade por diminuir as desigualdades regionais.
Diferentemente dos economistas neoliberais, os sociais-democratas reconhecem o importante papel do Estado e demandam a formulação de políticas públicas capazes de reduzir a desigualdade ao oferecer serviços e equipamentos públicos para todos. Trata-se de enfrentar a desigualdade com a produção de serviços e equipamentos de interesse público, os bens comuns, que adquirem a qualidade de um tipo de salário indireto, e políticas de inclusão social para os mais discriminados.
O acesso a direitos básicos, como educação e saúde de qualidade; direito à moradia, ao trabalho, à cultura; direito a ter boas condições de mobilidade e segurança; direito a um meio ambiente saudável e a uma infância feliz2 são as pautas que se inspiram na perspectiva de construção do welfare state (Estado de bem-estar social), algo que se implantou efetivamente em países capitalistas, como os escandinavos, e que esteve em nosso horizonte de expectativas, mas nunca chegou a se concretizar entre nós.
O Mapa da Desigualdade nas cidades, criado pela Rede Nossa São Paulo, mostra os territórios mais desprovidos de serviços e equipamentos públicos, e amplia o leque das questões que reafirmam/produzem a desigualdade ao se referir às discriminações racial e de gênero.
A desigualdade seria reduzida com a melhora dos salários, a construção dos bens públicos comuns e o combate às discriminações de toda ordem. Mas nessa perspectiva não cabem o teto dos gastos sociais imposto por emenda constitucional nem o Estado mínimo proposto pelos neoliberais. A visão da social-democracia não tem vez neste momento autoritário. Ela não agrega forças políticas suficientes para se impor como política dominante.
Se a economia visa otimizar o lucro das empresas e comanda o Estado, este fica impedido de prover as maiorias com as políticas sociais. “As políticas sociais não cabem no orçamento público”, como alegaram parlamentares que aprovaram a Emenda Constitucional n. 95, que impõe o teto dos gastos sociais.
Se não dá para sugerir melhoras nas políticas públicas e correções de rota para as políticas ditas de desenvolvimento – melhor chamá-las de políticas de acumulação –, é preciso recuperar a dimensão política dessa discussão sobre a desigualdade.
São decisões do Executivo e do Legislativo que promovem a desigualdade. É o modelo de democracia liberal – melhor dizendo, patronal – que está em xeque. É preciso abrir a discussão sobre como enfrentar esse bloqueio ao combate à desigualdade.
O desafio é criar uma nova democracia, com um novo desenho institucional e a participação cidadã ocupando núcleos de poder e participando ativamente das decisões. Afinal, como nos aponta Francisco de Oliveira, a participação ativa da cidadania é o que pode mudar o jogo. Sua definição de cidadania: ter condições de fazer uma escolha, ter condições de efetivar essa escolha, ter condições de se beneficiar dessa escolha.3
Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.
1 Pesquisa Oxfam Brasil 2019. Todos os dados percentuais citados a seguir são desta pesquisa.
2 Rede Nossa São Paulo.
3 Silvio Caccia Bava, “Francisco de Oliveira – um militante”. In: Cibele Saliba Rizek e Wagner de Melo Romão (orgs.), Francisco de Oliveira – A tarefa da crítica, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006.