Desmatamento no Cerrado e resistências nos territórios
Apesar de toda violência e devastação, no Cerrado r-existem povos e comunidades diversos, lutando para manter seus territórios de direito, assegurar a conservação das matas, da biodiversidade e das águas, base fundamental para a reprodução sociocultural de seus modos de vida
Eu sou roceiro, vivo de cavar o chão.
Tenho as mãos calejadas, meu senhor.
Me falta terra, falta casa e falta pão
Não sei onde é o Brasil do lavrador.
(“Eu sou roceiro”, canção de Jorge Pereira Lima cantada pelas lideranças Isabel e Maria de Fátima Rodrigues da Comunidade Quilombola Barra da Aroeira- TO)
O Cerrado já teve mais da metade das suas matas nativas devastadas, ao longo do tempo, em razão, sobretudo, da expansão da fronteira agrícola. O processo de modernização conservadora da agricultura na região, a partir da década de 1960, conectada à Revolução Verde, foi favorecendo essa expansão avassaladora do desmatamento. Mas não se trata de um fenômeno relegado ao passado. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, de 2001 a 2019 foram 28,40 milhões de hectares de cerrados desmatados, o que nos mostra a continuidade, a velocidade e a dimensão dessa devastação.
Essa situação se agrava todo ano no período mais seco (entre maio e setembro), quando as queimadas se alastram com mais facilidade e o desmatamento se expande com intensidade ainda maior. Porém, desde que o governo Bolsonaro começou a minar a capacidade das instituições públicas de monitoramento e controle do desmatamento – como o próprio INPE e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)[1] – e, ao mesmo tempo, dar mostras de leniência com o desmatamento, a situação passou a ser ainda mais dramática nos territórios do Cerrado, da Amazônia e do Pantanal.
Apesar de toda essa história de violência e devastação, no Cerrado r-existem povos e comunidades diversos, lutando para manter seus territórios de direito, assegurar a conservação das matas, da biodiversidade e das águas, base fundamental para a reprodução sociocultural de seus modos de vida. E é por isso que, quando o Cerrado queima, esses modos de vida também estão queimando, também estão sendo ameaçados. Assim, é sempre importante lembrar que, por trás de números e representações cartográficas de desmatamento, estão conflitos por terra e território, ameaças aos direitos territoriais de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. O cerne político da questão do desmatamento não reside nas imagens de satélite. É, acima de tudo, sobre direitos territoriais, modos de vida tradicionais e sociobiodiversidade.
Para entender melhor essa problemática e suas interconexões, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado convidou Marcos Rogério Beltrão, ambientalista e documentarista de Correntina, no Cerrado baiano, Isabel Rodrigues e Maria de Fátima Rodrigues, lideranças da Comunidade Quilombola Barra da Aroeira no Cerrado tocantinense, e o professor Maurício Torres, do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF) da Universidade Federal do Pará (UFPA), para um debate que apresentamos aqui.
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Dona Isabel, como é que esse desmatamento e degradação estão afetando a vida de vocês no Território Quilombola Barra da Aroeira?
Isabel (Barra da Aroeira – TO): Esse desmatamento do Cerrado, aqui no território, vem trazendo bastante consequência para a comunidade. O primeiro passo é a fruta que se utilizava para alimentação, para geração de renda, desapareceu tudo, o pequi, a mangaba, o puçá, e assim várias. É que com a derrubada, destrói tudo. A seguir essa derrubada, todas essas sujeiras que são causadas pelo desmatamento vão tudo para dentro dos córregos. Os córregos só trazem poluição. Chegou a um ponto de gente adoecer por causa da grande derrubada, além de destruir mais de 10 mil pés de pequi, tudo que se tinha que era na época da colheita era uma geração de renda. E aí veio a poluição da água com veneno que joga na soja, essas coisas, aí veio tudo para água e causou uma grande consequência para nós que moramos lá ao lado dessas derrubadas. Estamos sofrendo falta da fruta, é a terra devastada e também as doenças que está trazendo. Lá em casa mesmo bastante gente deu provocação, deu coceira, deu diarreia. Tudo por causa disso.
Dona Maria de Fátima, conta um pouco mais das consequências desse uso do veneno associado ao desmatamento?
Maria de Fátima (Barra da Aroeira – TO): Quanto ao veneno, às vezes não está diretamente na comunidade, mas está nos atingindo também, porque joga lá na soja e tudo, acabou com nossos peixes, a gente vai no córrego para pescar e não acha mais, e como diversidade de aves e de caça, que sabemos que nós não estamos muito diferentes dos índios, também nós às vezes utilizamos para a nossa alimentação, mas não estamos mais encontrando. Então, é um grande ataque que nós estamos passando por tudo isso através desse desmatamento. Sem falar que hoje não tem mais madeira para fazer nossas casas, não sei como que vai ser se não tiver assim, se não tomar uma providência, os órgãos que dizem que nos amparam, se não fizer isso, não tomar uma providência, acho que vai ser difícil para nossa vivência. Mas nós continuamos plantando para a nossa sobrevivência, para a nossa geração de renda que nós colhemos, nós nos alimentamos deles e vendemos. Então é assim, a gente está indo aí da forma que a gente pode ir plantando. Aqui na nossa comunidade a gente planta roça comunitária.
Dona Maria de Fátima e Dona Isabel, como estão as alternativas para driblar as barreiras vindas do desmatamento e da própria pandemia, para o artesanato e comercialização do capim dourado?
Maria de Fátima (Barra da Aroeira – TO): Tanto o capim dourado, quanto o buriti, porque nós usamos os dois para processar os artesanatos, para fazer as peças. Então todos os dois são atacados nessa época de queimada. O capim dourado é liberado para a gente colher a partir do dia 20 de setembro até 20 de novembro. Então, quando chega essa época, o fogo já passou e já acabou com tudo. Então é um dos impactos muito fortes que nós passamos nessa parte do capim dourado, para a gente estar processando os produtos, para a geração de renda. Com o capim dourado, alguns espaços que dá para a gente colher, nós estamos esperando a época para colher e fazer nosso artesanato e esperar que essa pandemia chegue ao fim para a gente gerar renda.
Isabel (Barra da Aroeira – TO): Isso aí é a grande preocupação que fica, imaginando um beco de saída, imaginando como é que a gente pode fazer os artesanatos que sempre faz que a gente faz da matéria-prima, hoje está tudo parado. Porque onde a gente colhia o capim dourado, colhia o buriti, colhia assim uma coisa e outra para fazer um artesanato tudo foi devorado, quase tudo. Só vem destruindo tudo aquilo que a gente vivia no dia-a-dia. Que a gente vive mais é da garrafada, é da fruta natural, é de fazer o artesanato, e assim por diante. Com a destruição do desmatamento, o que que a gente vai fazer? Onde que a gente vai pegar material para fazer garrafada? Onde que a gente vai buscar uma raiz, um capim dourado, uma tala de buriti, uma fruta para alimentar, sendo que está tudo destruído? Isso aí uma grande consequência, isso aí para mim, as pessoas que fazem isso na comunidade quilombola, estão matando a comunidade.
Vai matando a comunidade, vai matando o modo de vida. Essa devastação vai matando o modo de vida. Essa situação que acontece em Barra da Aroeira, também vem acontecendo em outros lugares do Cerrado. Marcos, conta por favor sobre essa realidade no Oeste da Bahia?
Marcos (Correntina – BA): Quando veio o desmatamento, para as comunidades, foi um verdadeiro choque. Imagine quem é da cidade grande, você está acostumado a passar num determinado bairro, e de repente mudam todos aqueles prédios, edifícios, residências. Você perde o ponto de referência. Então foi isso que ocorreu. Teve pessoas aqui que saíram da comunidade de manhã para vir para cidade, e quando voltou, o desmatamento tinha ocorrido que ficou avariado, perdeu o caminho, não sabiam mais onde passavam. Isso é verdade, porque as pessoas nunca tinham visto desmatamento maior do que um hectare. Porque as práticas aqui eram desmatar, por exemplo, para agricultura de subsistência, no máximo desmatar um hectare, e era aquele rotativo. E de repente foi desmatado tudo. Pequizeiro, que é uma árvore sagrada para os geraizeiros, como o buritizeiro. Os pequizeiros não foram poupados, foram desmatados. Pequizeiros que quando não dava conta de correntão derrubar, vinha com trator esteira e derrubava esses pequizeiros, que duas pessoas dando os braços não conseguiam encontrar tão grosso que eram esses pequizeiros.
Os pequizeiros e os buritizeiros são árvores sagradas e quando tem o desmatamento, isso vai degradando também aquilo que caracteriza os modos de vida dos povos do Cerrado. Nós recebemos relatos importantes também de outras partes do Cerrado. O primeiro depoimento nos foi enviado por Fran Braga, que é da Comunidade Quilombola Tanque da Rodagem, no município de Matões, no Maranhão.
Fran (Tanque da Rodagem – MA): O desmatamento no Território Quilombola Tanque da Rodagem e São João se dá porque muitos grileiros estão aproveitando a pandemia para retirada ilegal de madeira dentro do território. Lá no quilombo uma das áreas que está sendo afetada é um local sagrado da comunidade, que é na “Cruz do Negro”, local sagrado e preservado pela comunidade. A comunidade está se mobilizando e tentando impedir, porém neste momento a mobilização é muito difícil, que é um momento de tomar muitos cuidados com a saúde do nosso povo por causa da pandemia. Mas estamos resistindo e tentando preservar as nossas florestas.
Recebemos também o relato de Leandro dos Santos da Comunidade Quilombola de Cocalinho, no município de Parnarama, no Maranhão.
Leandro (Cocalinho – MA): Para plantar eucalipto, a Fazenda Canabrava da Suzano Papel e Celulose, que fica entre o Quilombo Cocalinho e o Quilombo Guerreiro, derrubou frutas nativas do Cerrado, como a Macaúba, Cajuzinho, Mangaba, Tucu, Jatobá, Sapucaia, além de árvores como o Cedro, a Sapucaí, o Pau D’Arco e várias outras. Além disso, a fazenda faz as leiras para colocar fogo, e essa fumaça dos brotos causam impacto na saúde da comunidade. A juventude fica sendo escravos para carregar toras de eucalipto em caminhão de pau de arara para ganhar 40 reais e ainda ter que comer bóias fria, trazendo comida de sua casa. Algumas fontes das nascentes da Lígia de Cocalinho, onde ainda temos pouquíssima água para usar na lavação de roupas, saciar a sede dos animais, banhar e pescar….
Os monocultivos de eucalipto causam muita devastação no Cerrado. Por um lado, porque, para plantar os monocultivos de eucalipto, desmatam as matas nativas e destroem a biodiversidade. Por outro lado, porque é uma árvore muito nociva, que chupa a água, toda essa riqueza das águas do Cerrado. E em alguns lugares do Cerrado, foi justamente o monocultivo de eucalipto que foi trazendo a expansão da fronteira agrícola. Marcos, conta um pouco sobre essa história no Oeste da Bahia?
Marcos (Correntina – BA): Foi criado na década de 1980 o chamado projeto de reflorestamento do Oeste da Bahia, que consistia na derrubada de toda a vegetação do Cerrado para o plantio do pinho e do eucalipto, transformar o Cerrado do oeste da Bahia em um verdadeiro deserto verde. Não só o oeste da Bahia, mas o norte de Minas Gerais também. E aqui tivemos inúmeros trabalhadores e trabalhadoras que foram assassinados, e um dos casos que foram mais divulgados foi o assassinato do advogado Eugênio Lyra, do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santa Maria da Vitória, que na época vinha denunciando esse processo de desmatamento. Desmatamento que se deu em cima das terras das comunidades tradicionais. Houve violentas reações, mas infelizmente eram só as comunidades contra o Estado, o Estado apoiando justamente os grileiros. E aí eles tomaram conta. E aí veio o desmatamento. E um critério que foi utilizado foi desmatar o Cerrado para produzir justamente o etanol. Como era projeto do Governo Federal, e 60% era fundo perdido, e os outros 40% era para pagar após a venda do eucalipto e do pinho, a maioria das empresas de reflorestamento que chegaram aqui abandonaram o projeto. Até hoje nós encontramos aqui ainda, pinho e eucalipto dos anos 1980 ainda abandonado. Mas nos anos 1990, houve o carro-chefe que foi a chegada da soja aqui na região. Aí já foi muito mais agressivo, mais violento, esse processo de desmatamento. O desmatamento, é bom a gente lembrar, o desmatamento aqui no oeste da Bahia se dá em um dos principais aquíferos do Brasil, o aquífero Urucuia.
Os monocultivos de soja que devastam os chapadões do Cerrado baiano são irrigados por meio de pivôs centrais que captam as águas subterrâneas, exaurindo as fontes que alimentam os rios. Ao mesmo tempo, a plantação de soja não tem as raízes profundas como as árvores nativas e isso dificulta a infiltração da água da chuva para a recarga dos aquíferos. Além de tudo, a água que ainda consegue correr, vai contaminada com agrotóxicos. Essa relação entre o desmatamento nas chapadas e as águas do Cerrado é um ponto fundamental:
Marcos (Correntina – BA): As comunidades tradicionais, elas foram vítimas duas vezes. Primeiro foi o roubo dos seus territórios, que foram roubados, e agora está sendo mais uma vez vítima do processo de roubo das águas. Não só porque estão sendo desmatados seus territórios sagrados, mas também estão secando as nascentes, secando os rios e esses fecheiros, eles também são agricultores familiares que produzem para sua subsistência, para alimentar suas famílias. E quem conhece a região oeste aqui [da Bahia], sabe que a gente tem uma prática tradicional que é usar os canais para a irrigação. Esses canais hoje pegam água diretamente dos rios, e essas comunidades praticamente hoje já não têm mais acesso a essa água suficiente para sua produção. E essas águas cada dia mais estão sendo diminuídas, uma vez que o desmatamento está se dando na área de recarga do aquífero. O Urucuia é o maior aquífero 100% brasileiro, ele tem uma importância muito grande não só para o rio São Francisco, mas para a bacia do rio Tocantins e para o rio Parnaíba que é chamado o maior rio 100% nordestino, que é o que divide o estado do Maranhão e Piauí. E todo esse processo de escassez de água, que a gente vem passando não só no oeste da Bahia, não só na bacia do São Francisco, mas em todo o Cerrado. Você tem Brasília, Goiânia, Belo Horizonte, cidades que já vêm tendo problema de escassez de água. E o Professor Altair Sales, que é um grande conhecedor do Cerrado, ele já falou que o Cerrado, a questão do Cerrado brasileiro é questão de segurança nacional, porque uma vez destruído o Cerrado, você está comprometendo todo ciclo hidrológico não só das bacias do Cerrado, mas as principais bacias brasileiras.
Esse processo de degradação, de desmatamento, compromete as águas do Cerrado e também as águas em outras regiões. Porque as águas são a principal maneira com que o Cerrado “dialoga” com outros domínios macroecológicos do Brasil. No Cerrado, nasce o rio São Francisco e o Parnaíba, conexões do Cerrado com a Caatinga. No Cerrado, também nasce o rio Paraguai, que alimenta o Pantanal e o Chaco nos países vizinhos da região. Nasce o rio Tocantins, o Araguaia, o Xingu, os formadores do Tapajós (Juruena e Teles Pires) e diversos afluentes do Madeira, promovendo fundamentais conexões entre o Cerrado e a Amazônia. Então o Cerrado é um berço das águas mesmo, e o desmatamento compromete essa riqueza das águas, que tem muito da sua conservação conectada aos modos de vida dos povos.
Maurício, conta um pouco mais pra gente das conexões entre Cerrado e Amazônia e o que o desmatamento tem a ver com isso?
Mauricio (INEAF/UFPA): O desmatamento no Cerrado não é perda de floresta, é perda de modos de vida, é a destruição da vida de quem ali vive. É impressionante ver como isso está conectado com a destruição da Amazônia. Por exemplo, quando a gente olha para o desmatamento numa das maiores áreas de desmatamento, o eixo da BR-163, uma rodovia que sai do Cerrado no Mato Grosso e vai para o porto do Tapajós, em Santarém. Qual o principal interesse dessa rodovia? Exportar soja plantada no Cerrado. O entorno dessa rodovia, que na verdade é um corredor de escoamento de soja, está numa das áreas de maior ritmo de desmatamento da Amazônia. Uma coisa curiosa é quando a gente vê quem está desmatando lá: os maiores multados lá são pessoas que nunca engordaram um boi e nunca plantaram um grão de nada. E por que desmatam? São comerciantes que estão se enchendo de dinheiro, porque na porta deles começou a passar um volume imenso de caminhões transportando a soja do Cerrado para os rios da Amazônia, e essa gente se capitalizou para fazer o desmatamento. Então, é a soja plantada em Mato Grosso que, em grande parte, financia o desmatamento na Amazônia.
Você falou do desmatamento no eixo de rotas logísticas de escoamento da soja que devasta o Cerrado e se comercializa cada vez mais pelos portos do Norte, cruzando a Amazônia. Tem a BR-163 e outras também como a BR-364. Pode falar um pouco mais sobre essa relação entre logística e desmatamento e a conexão entre as dinâmicas de devastação no Cerrado e na Amazônia?
Maurício (INEAF/UFPA): Nas pontas dessas rotas estão acontecendo grandes obras de infraestrutura, grandes terminais portuários. Quanto mais fácil e barata essa logística, maior é a pressão em cima do que resta do Cerrado. Por exemplo, eles estão planejando duas ferrovias [Ferrogrão e Ferrovia de Integração Centro-Oeste]. Se forem implantadas, cada tonelada de soja vai ser transportada com o lucro maior de tantos dólares por cada tonelada. Esse lucro vai para o bolso do sojeiro, da empresa que processa a soja. Mas uma coisa é certa, esse lucro não fica para os povos do Cerrado, mas o impacto disso vai. Na hora que você tiver implementados esses canais logísticos, o agronegócio se torna ainda mais lucrativo, e a ferocidade com que ele vai avançar para cima das comunidades tradicionais do Cerrado é enorme. Então a gente tem obras na Amazônia, que vão gerar uma destruição não só na Amazônia, mas também, talvez principalmente, no Cerrado.
Esses trens sairiam do Cerrado e cruzariam a Amazônia carregados de soja, conectando, por meio da devastação, os destinos dos povos do Cerrado e da Amazônia. E no caminho de volta?
Maurício (INEAF/UFPA): Em Autazes [estado do Amazonas], existe uma das maiores jazidas do mundo de potássio. O Brasil hoje importa 70% do potássio que consome, e não existe agronegócio sem potássio. O potássio que é trazido de outros países custa caro. Eles encontraram na beira do rio Madeira, uma das maiores jazidas do mundo. Um negócio que, se explorado, vai baratear em muito o potássio. A soja vai vir nessa estrada de ferro ou na estrada, depois vai descer o rio Madeira carregada de soja, e depois volta “vazia”. Ou seja, ela vai voltar carregada de potássio. Você praticamente zera o custo logístico, reduz barbaramente o custo de transporte desse potássio, e aumenta o lucro do agronegócio. O lucro é do agronegócio, mas o prejuízo é de todos nós, principalmente dos povos do Cerrado. Essa jazida de potássio, esse potássio está muito no fundo, a extração disso gera um resíduo imenso de sal. Sal é uma das coisas mais difíceis do mundo de se controlar, sal se espalha. É mais fácil controlar a água do que o sal. O impacto de você vai ter com uma montanha de sal na beira do rio Amazonas, em cima do território do povo Mura, essa jazida está dentro do território, é enorme. A gente tem aí as coisas se casando: esses grandes projetos de mineração ou de logística aumentando a pressão que essas comunidades do Cerrado vão sofrer.
Vai se compondo um panorama cada vez mais completo dessa problemática. O que queima quando queima o Cerrado e a Amazônia? O que é degradado quando o Cerrado e a Amazônia são degradados? São justamente os modos de vida.
A imagem do satélite das queimadas nos dá um choque, nos impacta ver imagens, como as fotos das queimadas e desmatamento. Mas é muito importante a gente saber que, para além das imagens do satélite e das fotos de amplas paisagens, o que queima quando queima o Cerrado, o que fica comprometido, são os modos de vida, e via de regra vem as ameaças, vem o deslocamento de povos e comunidades.
Mas estão faltando algumas peças desse quebra-cabeças, que são fundamentais para entender esses processos: as conexões entre desmatamento, grilagem e o papel do Estado.
Marcos (Correntina – BA): Esse processo de desmatamento ocorreu [no oeste da Bahia] diante de um violento processo de grilagem das terras dos territórios das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto aqui, que usavam esses territórios secularmente, mas nunca se preocuparam em fazer documentos dessas áreas. São áreas que foram repassadas de gerações em gerações. E aqui, como as pessoas nunca tinham visto esse processo de tomada do Cerrado, era uma terra, uma grande aldeia. As pessoas não se preocupavam. Todo mundo era dono daquele espaço. E a partir da década de 1970, principalmente de 1975, vieram pessoas de fora, de outros estados e começaram a comprar escrituras antigas e a partir dessas escrituras antigas, que era baseada em cem contos de réis, nem se vendia, nem se falava em hectares e a partir desses contos de réis que se transformaram em vários milhões de hectares.
E o que Estado fez diante disso?
Marcos (Correntina – BA): O Inema [Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos], o órgão ambiental [do estado da Bahia], não ouve as comunidades. Nós temos, por exemplo, áreas de litígio judicial e nessas áreas vêm sendo concedidas autorizações [para supressão vegetal] porque o órgão ambiental alega que não é papel dele verificar a legalidade dos documentos [fundiários]. A gente faz uma pergunta “se eu roubar o carro, e for no Detran tentar transferir um documento de um carro roubado, eu saio de lá solto?” Com certeza, eu não vou sair de lá solto, eu vou sair direto para delegacia, diferente dos grileiros. Então, você nota que tem todo um mecanismo para facilitar a vida dos grileiros, e dos desmatadores do Cerrado.
Maurício, você estava falando dos principais desmatadores no eixo da BR-163, muitos dos quais não plantaram um grão, nem tinham sequer um boi. Por que eles derrubavam as matas nativas? Se eles não têm boi, se eles não plantam nada, por que desmatam?
Maurício (INEAF/UFPA): Marcos falou a resposta: para grilagem. O desmatamento na Amazônia é o principal instrumento de apropriação da terra. Não duvido que no Cerrado tenha sido um processo muito paralelo. Existe uma frase que se fala normalmente nessas regiões que é: “dono é quem desmata”. Então você desmata uma área e é reconhecido como dono, e isso já aconteceu oficialmente. Oficialmente na Amazônia, você teve como pré-requisito para ser dono da terra, desmatar. O desmatamento é algo que tira as condições básicas de vida dos povos que vivem ali, na alimentação, nos remédios, nas suas relações espirituais. Hoje, nós vivemos num momento, em que, ao mesmo tempo em que são tirados os direitos das comunidades tradicionais que vivem nessas áreas, são aumentadas as facilidades para o roubo de terras. O grileiro desmata para se apropriar da terra. O desmatamento é um jeito dele controlar o território, dele se apropriar. Isso acaba sendo potencializado em outra escala, quando o governo cria políticas públicas para facilitar isso. Eu adorei a metáfora do carro roubado feita pelo Marcos, a grilagem é um carro roubado. Só que de acordo com a legislação de hoje, se permite que você tenha um carro roubado e faça o licenciamento, e o use para trabalhar como táxi. O CAR (Cadastro Ambiental Rural) no limite é isso. Você tem uma terra roubada, invadida, terra pública invadida, que é caracterizado legalmente como crime. O governo permite, e você faz um cadastro que você diz onde não desmatar porque tem nascente. Indo de carona na metáfora do Marcos, o cara tem um carro roubado e o Estado está dizendo que ele pode andar, usar esse carro como um taxista, por exemplo. Isso potencializa e muito a destruição não só da Amazônia, como do Cerrado.
Muito se fala de desmatamento legal e ilegal, como se o problema residisse somente na ilegalidade. No entanto, o Estado brasileiro e mesmo os governos estaduais foram desmantelando de forma tão drástica as normativas e os instrumentos de controle, que tem muito desmatamento supostamente “legal”, que está encobrindo um emaranhado de ilegalidades e violências históricas e recentes, que vão sendo anistiadas. Há todo um uso do aparato estatal, que joga com esses limites do legal e ilegal para avançar sobre as terras tradicionalmente ocupadas, sobre os territórios dos povos tradicionais do Cerrado.
Marcos, no oeste da Bahia, uma das áreas de maior desmatamento no Cerrado, esse processo é bem evidente.
Marcos (Correntina – BA): Aqui no Oeste da Bahia, em todo estado da Bahia não se tem mais estudo de impactos ambientais para desmatamento de grande área, de 1.000 hectares a 100.000 hectares, não existe estudo de impacto ambiental, porque foi feita uma alteração. É autodeclaratório, não precisa mais. E praticamente quando você acabou com o estudo de impacto ambiental, você também eliminou as audiências públicas. Lógico que a gente sabe que a audiência pública tem caráter só de informativo, mas de certa forma você estava informando as comunidades de que havia um empreendimento, hoje por exemplo já saiu autorizações aqui para o oeste da Bahia de 24 mil hectares contínuos, sem estudo de impacto ambiental, sem ouvir as comunidades, sem divulgação. E isso é inconstitucional, a Constituição diz que o estado pode ser mais restritivo, mas nunca mais liberal, e o estado da Bahia veio passando a boiada há muito tempo.
Não tem a precaução, que é um dos primeiros princípios da proteção ambiental. Segundo levantamento da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – AATR, no Oeste da Bahia, foram autorizados para desmatamento aproximadamente 34.000 hectares, somente entre março e junho deste ano, ou seja, em plena pandemia. Realmente o agronegócio não está em quarentena. Ou, como nos disse Dona Maria de Fátima, da comunidade quilombola Barra da Aroeira, durante o debate: “Nessa pandemia para a gente tomar providência de alguma coisa está tudo fechado, mas essas coisas que estão nos atingindo está funcionando tudo normal”.
Maurício, o Código Florestal talvez seja o maior exemplo recente do processo de flexibilização que vai abrindo brechas para o desmatamento avançar e se legalizar. Como o novo Código e outras mudanças normativas favorecem quem desmata o Cerrado e a Amazônia? Qual o papel disso no avanço do desmatamento e da grilagem?
Mauricio (INEAF/UFPA): Se a gente pegar a História do Brasil, como a coisa funciona? O grileiro invade a terra, desmata, é perdoado, é anistiado e fica com ela. Tem muito movimento ambientalista, que aposta que a saída da coisa é transformar tudo em propriedade privada. Mas e o povo, como a comunidade do Marcos, a Isabel, a Dona Maria de Fátima? Isso é visto por essa gente como o resquício do passado fadado a deixar de existir. O único modo que eles entendem de a coisa ter ordem, controle e conservação é pela propriedade privada. Tanto o Código Florestal como uma série de normativas apostam nisso, na privatização individual da terra no Cerrado e na Amazônia. Em primeiro lugar, isso é um desrespeito ao modo de vida de tantas comunidades que vivem de acordo com outros parâmetros e outro modo de ocupar a terra. Segundo lugar, é um quadro que a gente vem repetindo: tem uma situação de ilegalidade, a grilagem, o desmatamento ilegal, gerando leis que anistiam. O Código Florestal institui o CAR, que é o jeito do cara licenciar um carro roubado, usando a metáfora do Marcos. Você cria esses mecanismos, então você acaba anistiando o que foi desmatado e roubado. Isso não é como eles dizem, que sabem quem é o dono e vai cumprir as leis, isso é a garantia dada para os autores disso de que a coisa vale à pena, e ele vai reproduzir isso adiante. Na minha opinião, toda grilagem e desmatamento precisa de um conjunto não só de políticas, mas leis que lhe garanta. Eu trabalho na Amazônia há mais de 20 anos, e nunca conheci um desmatador que tivesse pagado uma multa, já conheci muitos que foram presos, mas nunca conheci nenhum que tivesse pagado uma multa, muito menos um grileiro que tivesse perdido a terra. Ou seja, compensa, dá lucro. Esse modelo em que o cara desmata, se a gente for conversar com essa bandidagem toda, eles vão falar que não tem problema, a multa não paga, a multa não bota medo. E eu estou falando do que era, hoje então com os incrementos que o Bolsonaro criou para facilitar a bandidagem ambiental, não existe a perspectiva de pagar multa, você tem as câmaras de conciliação que não tem data para acontecer, então você vai empurrando para frente, quase um modo de anistia prévia. Essas anistias, se você começar a garantir que periodicamente vai ter uma anistia para quem está com o IPTU atrasado, ninguém vai pagar IPTU, e vai esperar ter a anistia e ser perdoado. Esse conjunto de leis anistiam a quem desmata. Quem desmata hoje desmata na confiança plena de que vai vir uma nova anistia e perdoar tudo isso.
O Estado, ao invés de impedir o desmatamento, facilita a vida dos grileiros e desmatadores. E as comunidades que, no chão do Cerrado, lutam na defesa de seus territórios, sofrem sem apoio do Estado, como nos conta a quilombola Isabel: “A gente fica sem saber o que que a gente pode fazer, onde buscar uma solução. E aí a gente fica querendo solução para isso. Nós não queremos o resto do território que ainda nós temos terminado de liquidar com desmatamento nesse território não. A gente quer uma solução para isso aí.”
E o novo Código Florestal também abriu brechas para os processos de “grilagem verde”, sobretudo quando os grileiros, depois de roubar as terras de uso comum das comunidades tradicionais nas chapadas (os gerais), começam a declarar como Reserva Legal no CAR as áreas remanescentes de ocupação das comunidades nos fundos de vale e nas encostas.
Marcos: As comunidades estão sendo hoje vítimas também do processo de grilagem chamada grilagem verde, uma vez que as fazendas lá em cima na divisa principalmente com o Goiás, elas não querem ter reservas legais lá em cima. Porque para elas é interessante, diferente da floresta amazônica que lá você tem que criar uma reserva legal é 80%, aqui é o contrário. É 80% desmatado, e você só deixa 20%.
Isso tem acontecido no Cerrado baiano, mas também no Cerrado piauiense e em outras partes. A Campanha tem uma bandeira fundamental, que é a ideia-força de que a melhor forma de defender o Cerrado em pé é garantir os direitos territoriais dos povos do Cerrado. Como são esses povos que garantem o que ainda existe de Cerrado em pé, assegurar que esses povos sigam com seus pés no chão do Cerrado, que tenham a posse de seu território, é a melhor forma de defender o Cerrado.
Marcos (Correntina – BA): Uma das principais ferramentas para se chegar ao desmatamento zero é combater a grilagem. É tanto que até hoje não se andou no estado da Bahia, há mais de 30 anos na constituição estadual da Bahia tem um capítulo na parte transitória que determina que o estado teria até 3 anos para fazer toda uma discriminatória geral no estado da Bahia para destacar o que é terra pública e o que é terra particular. Uma vez que o estado também sabe que 80% ou até mais no oeste da Bahia são terras griladas, o Estado até hoje nunca fez essa discriminatória, e recentemente todo mundo ficou sabendo da Operação Faroeste onde teve desembargadores, até ex-presidentes do Tribunal de Justiça que estavam envolvidos em processos de grilagem. A grilagem é um processo violento, e para combater o desmatamento, a principal ferramenta hoje, na Bahia, chama discriminatória [de terras].
Mauricio (INEAF/UFPA): Marcos, você falou em terra pública. Vocês são os verdadeiros detentores de direitos sobre essas terras públicas. Acontecem dois absurdos, primeiros vocês serem assaltados, roubados no direito que têm a essas terras. Segundo é destinar essas terras a qualquer outro fim que não seja o reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados por vocês.
Isso tem tudo a ver com o que a Campanha tem como bandeira: “Não existe defesa do Cerrado, sem os povos do Cerrado”…
Marcos (Correntina – BA): Os verdadeiros guardiões do Cerrado são as comunidades tradicionais. Não só porque é o meio de vida, economicamente, essas comunidades dependem do Cerrado em pé. Mas também tem um lado espiritual para essas pessoas, para as comunidades tradicionais. Para eles, ver um pequizeiro derrubado, é com um parente assassinado. E isso aqui tem ocorrido muito, e as comunidades têm se organizado. Nos anos 80, nos anos 90, elas se articularam na forma de associações, porque uma das formas que os grileiros usavam foi de comprar algum direito de alguns fecheiros para usar, porque as pessoas não tinham malícia. Aqui, imagina, nós temos um pessoal muito humilde, então imagine vinha a pessoa, criava vínculos e amizades. As pessoas nunca imaginavam que ela estava com segundas intenções. E a partir daí, do processo de grilagem, houve criação de várias associações. Essas associações são fechadas. As pessoas que saem não podem repassar o seu direito para próximos utilizarem aquele território. E aí elas vão se organizando, fazendo retomada de território, evitando desmatamentos também, que já teve casos aqui de áreas que era para ser desmatada para o plantio de eucalipto, e a comunidade foi em frente, foi à luta.
Na toada dessa luta dos povos do Cerrado, Maria de Fátima nos fala: “Com todo sofrimento que a gente passa, mas a gente não esmorece, estamos firmes na luta, não existe luta sem vitória, nem vitória sem luta”. E Isabel completa: “Uma vara sozinha é fácil de quebrar, e umas três ou quatro é mais difícil. Aí a gente espera que essas varinhas que estão reunida sejam uma força para que não venha quebrar esse feixinho de varas, e coisas aconteçam de ruim. A gente quer que a união traga a força para nós”.
Maria de Fátima e Isabel encerraram sua participação no debate com um canto: “Um sorriso negro, um abraço negro, traz felicidade”.
E Maurício completou: Eu queria dizer que apesar desse cenário muito preocupante, eu sou muito otimista. Me entusiasma muito ouvir a força de resistência do Marcos, e a força do canto da Dona Maria de Fátima e da Dona Isabel. A gente conta com isso ao nosso favor e na luta pelo Cerrado. Viva as comunidades do Cerrado!
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Esse sorriso e esse abraço negro trouxeram uma energia forte para o encerramento de nosso bate-papo virtual. Para seguir lutando, a gente tem que se abraçar muito, se respeitar muito, se defender muito. E lutar contra o desmatamento do Cerrado, lutar contra a degradação, a destruição, na verdade, é lutar para defender a vida dos povos do Cerrado, lutar para defender a vida em Barra da Aroeira, é lutar para defender a vida em Correntina, é lutar para defender a vida em Cocalinho, lutar para defender a vida em Tanque da Rodagem, é lutar para defender a vida nos territórios quilombolas, nas terras indígenas, nos territórios de fundo e fecho de pasto, nos assentamentos dos agricultores familiares. A luta em defesa desses modos de vida é a verdadeira luta contra o desmatamento. Porque sem o Cerrado não existem os povos do Cerrado; e sem os povos do Cerrado, o Cerrado vai deixar de existir. E por isso nos anima saber que no Cerrado tem muita gente forte, muita gente com sabedoria, muita gente que luta.
Diana Aguiar é Assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
Eduardo Barcelos é Professor do IF Baiano, Campus Valença – Bahia e Doutor em Geografia pela UFF.
Marcela Vecchione é Professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e membro do Grupo Carta de Belém.
Maurício Correia é advogado popular, Coordenador da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR) – Bahia, e especialista em Direitos Sociais do Campo pela UFG.
Paulo Rogerio Gonçalves é Técnico da Associação Alternativas para Pequena Agricultura no Tocantins – APATO.
[1] Cabe ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) a gestão e operação do PRODES, programa que realiza o monitoramento por satélite do desmatamento no Cerrado e na Amazônia, assim como a sistematização dos dados anuais e emissão de alertas em tempo real utilizados para planejamento de operações dos órgãos ambientais, a exemplo do próprio IBAMA, que é responsável pela fiscalização de crimes ambientais, dentre eles o desmatamento ilegal.