Desonerações tributárias: uma aposta duvidosa
A política de desoneração tributária, aprofundada no Brasil em resposta à crise econômica iniciada em 2008, é frouxa, não exigindo nem sequer metas dos beneficiários, e os resultados, tanto a curto como a longo prazo, são passíveis de questionamento. Ademais, essa política tem resultado em catastrófico impacto nas finaJuliano Giassi Goularti
Nos últimos anos, o governo federal passou a utilizar a política da desoneração tributária1 como recurso de política anticíclica com vistas a amortecer os efeitos negativos da crise financeira internacional sobre a economia brasileira e como um dos pilares da Nova Matriz Econômica (NME). Para evitar a insuficiência de demanda e a queda do PIB, isto é, estimular o investimento autônomo sem modificar a canônica estrutura tributária, o governo federal também começou a dar mais ênfase à política de desoneração tributária. Não somente se restringindo ao “socorro das atividades em crise”, como observado por Lopreato (2013), a preferência pelas desonerações passou a atender a várias finalidades, tais como: “i) aproveitamento rápido de crédito tributário por investimentos; ii) depreciação acelerada do investimento; iii) redução de tributos em políticas de estímulo ao investimento e às exportações (IPI, PIS-Pasep, Cofins, IR, IOF); e iv) política de equalização de taxas de juros, com o propósito de fomento da atividade industrial” (Lopreato, 2013, p.231).
O governo Lula construiu um novo desenho da política fiscal. Seguindo uma orientação keynesiana, apostou nas desonerações como motor do investimento e do crescimento econômico. Todavia, a questão a ser levantada é a falta de mecanismos adequados de controle e avaliação na verificação dos resultados macro e microeconômicos propiciados pelas desonerações. Nesse particular, fruto de uma postura agressiva da política de desoneração da NME – a qual no período de 2010-2015 as projeções estão acumuladas em R$ 956,53 bilhões –, o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou um relatório questionando seu efeito multiplicador para o conjunto da economia nacional (TCU, 2014).
Em outros momentos da história econômica nacional, as desonerações ocuparam lugar de destaque, como foi o caso no período militar por meio do Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) e do I e do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), com média de 3% do PIB entre 1973 e 1980. Nos anos 1980, puxadas pelo drive exportador, as desonerações também ocuparam lugar de destaque, oscilando em torno dos 4,5% do PIB, alcançando 36% da receita fiscal em 1984 (Carneiro, 2002). Nos anos 1990, elas perdem fôlego com a austeridade fiscal. No período recente, a política fiscal do governo Lula e Dilma pode não ter alterado o regime fiscal desenhado por FHC – por exemplo, superávit primário para honrar compromisso com a solvência da relação dívida/PIB –, mas ganhou novo formato. Atendendo a inúmeras finalidades, a troca do ministro Antonio Palocci por Guido Mantega resultou na construção de um novo desenho institucional das características do arranjo dos anos 1990, como a redução no valor do superávit primário para o atendimento da programação relativa ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e ao Plano Brasil Sem Miséria (PBSM).
A partir de 2009, com uma redução do superávit primário como proporção do PIB para o atendimento da programação relativa ao PAC e ao PBSM, a estratégia das desonerações para estimular o investimento privado tem se dado para a frente e para trás; todavia, também tem representado uma fatia significativa do orçamento federal, e sua repercussão na sustentabilidade das contas públicas tem sido pouco explorada. Nesse particular, é certo que as desonerações permitem elevar o grau de acumulação do capital e gerar excedentes; constata-se ainda que o volume desonerado é superior ao orçamento de vários ministérios e empresas estatais, como também de inúmeros investimentos realizados em diversas áreas do governo federal (Brasil, 2015).
Ao contrário dos investimentos do PAC – que também integra o conjunto das desonerações –, cujo efeito multiplicador na economia (emprego e renda) pode ser mais bem averiguado, a estratégia do governo de potencializar as desonerações tributárias e assim elevar a taxa de crescimento do PIB é complexa e duvidosa. Isso tanto pela falta de mecanismos adequados de controle e avaliação na verificação dos resultados alcançados quanto pelo comprometimento do empresário em investir a desoneração usufruída. A complexidade em sua eficiência eleva-se de grau durante a verificação de sua funcionalidade em estimular o investimento privado, alavancar o desenvolvimento econômico, aumentar a Formação Bruta de Capital Fixo, gerar emprego e expandir a base de arrecadação do governo. A rigor, a política de desoneração tributária não encontrou resistência no interior do governo. Embora oscile entre 17,92% e 23,79% da receita administrada pela Receita Federal, não há evidências empíricas confiáveis indicando as desonerações como um caminho seguro no estímulo ao investimento autônomo e à demanda agregada.
Com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), União, estados e municípios foram obrigados a apresentar as estimativas para as desonerações tributárias na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO). No caso da União, a LDO permite saber o impacto financeiro, seja em relação ao PIB, seja em relação à arrecadação, e sua expansão ou retração e ameaça à capacidade de arrecadação e gastos. Com o avanço da informática e da política de transparência administrativa, além do regramento jurídico e o maior controle das receitas e despesas públicas, permitiu-se maior acesso às informações agregadas sobre as desonerações. Porém, não é possível saber quais são os grupos econômicos beneficiados e sua real destinação após o usufruto. Mas se pode ter acesso à sua distribuição por região e por função orçamentária e modalidade de gasto.
Quanto à distribuição regional, por apresentar um grau maior de complexidade industrial, a região mais beneficiada pelas desonerações é o Sudeste, que em 2015 representou 50,74%. Olhando assim, temos uma distribuição regional desigual das desonerações. Embora o Sudeste obtenha a maior participação, cruzando a relação desoneração/arrecadação regional, as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul, que respectivamente participaram com 14,32%, 11,14%, 7,41% e 16,39% das desonerações em 2015, representaram 2,4%, 6,98%, 11,81% e 13,76% da arrecadação federal. Sendo assim, proporcionalmente as desonerações usufruídas pelas regiões Norte, Nordeste e Sul é maior que sua capacidade de arrecadação (Brasil, 2015). Entretanto, uma questão essencial e que precisa ser mais bem pesquisada diz respeito aos impactos econômico e social em cada uma das regiões.
Dentro de uma federação outorgada e de um complexo processo de desenvolvimento desigual na construção da unidade nacional em que a articulação vertical e horizontal entre os níveis de governo é heterogênea e conflituosa, prevalece o princípio do federalismo competitivo – como é o caso da “guerra fiscal” –, que envolve tipicamente um “jogo de soma zero” (Prado, 2013). Em um federalismo endêmico, que acirra a concorrência regional por mercados, projetos estruturantes, investimento, força de trabalho e sem nenhum sistema de equalização minimamente consistente, defender a distribuição das desonerações da União conforme a capacidade de arrecadação regional, isto é, conforme o grau de complexidade econômica de estados e regiões seria um típico “racismo geográfico”.
No que compete à distribuição por função orçamentária e modalidade de gasto, o maior montante de desonerações tributárias está associado a Comércio e Serviço, seguido pela Indústria. É certo que as políticas de desonerações impulsionam o processo de acumulação de capital. O desafio é realizar uma crítica à drenagem de recursos públicos, uma vez que as desonerações apresentam impactos significativos e muitas vezes prejuízos irreparáveis nas finanças da União, estados e municípios. Não obstante, as projeções das desonerações por função orçamentária e modalidade de gasto revelam os interesses setoriais prioritários da política governamental.
Apresentada a projeção da distribuição regional (tabela 2) e por função orçamentária e modalidade de gasto (tabela 3), as normas existentes de fiscalização por parte do governo – por exemplo, gestão, monitoramento, prazos de validade e avaliação e contraprestações pelo beneficiado – são vagas. Isto é, existe dificuldade de verificar os efeitos do usufruto das desonerações concedidas, identificar o conjunto de favorecidos e mensurar o montante desonerado com razoável grau de confiabilidade. Entre as principais fragilidades apontadas pela auditoria do TCU, que envolveu onze ministérios, para avaliar a política de desoneração tributária e verificar se ela tem alcançado os fins aos quais se destina, destacam-se: “i) indefinição de objetivos e metas; ii) irregularidades na aplicação dos recursos ou na prestação de contas; iii) ausência de fiscalização; iv) falta de avaliação de resultados; v) deficiências na transparência; vi) falta de uniformidade de entendimento sobre os gastos tributários como fonte de financiamento de políticas públicas; vii) não realização de qualquer tratamento dos riscos; viii) sigilo fiscal prejudica a apuração de eventuais irregularidades; ix) ausência de prazo de vigência, o que impede sua revisão periódica; x) ausência de registro no Siafi, e, xi) fiscalização insuficiente por parte da Controladoria Geral da União” (TCU, 2014, p.47-48).
Projeções deas desonerações tributárias da União (2010-2015) preços correntes
Milhões
Projeção das desonerações tributáis da União por região (2010-2015) preços correntes
Milhões
Projeções deas desonerações tributárias da União por função Orçamentária e modalidade de Gasto (2010-2015) preços correntes
Milhões
Simultaneamente, destaca-se que uma parcela significativa das desonerações possui prazo de vigência indeterminado, sendo alguns muito antigos, como “Seguro Rural” (isenção de IOF) ou “Entidades sem fins lucrativos – associações de poupança e empréstimo” (isenção de IRPJ), criados em 1966. Em decorrência disso, o TCU recomendou ao governo federal promover melhorias na governança e na gestão das políticas públicas financiadas por desonerações tributárias. Entre as medidas destacam-se como providências verificar se as desonerações contribuem para o alcance dos fins aos quais se destinam e que, sobretudo, estejam de acordo com o artigo 14 da LRF (TCU, 2013; 2014).
Embora as desonerações sejam um dos pilares da NME, os resultados gerados na economia nacional são questionáveis, a curto e a longo prazo. Em particular, se por um lado as desonerações tributárias resultaram em acumulação privada, por outro sua horizontalização para agradar gregos e troianos não gerou crescimento sustentado. Portanto, deve-se reconhecer que a socialização das desonerações resultou em sacrifício financeiro e não gerou investimento autônomo e demanda agregada. Ademais, a atuação da política fiscal por meio das desonerações deve ter tempo correto, contrapartida (metas) do beneficiário e ser bem direcionada e fiscalizada, de modo que o corte de impostos estimule o investimento autônomo e a demanda agregada, sem prejudicar as finanças públicas.
Juliano Giassi Goularti é doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.