Destruir a democracia - Le Monde Diplomatique Brasil

Resenha

Destruir a democracia

por Fábio Zuker
21 de setembro de 2020
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Resenha do livro de Marcos Nobre, Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia (Todavia, São Paulo, 2020)

As cenas não poderiam passar despercebidas – e não passam. Em meio ao crescimento vertiginoso das mortes por Covid-19 no Brasil, o comportamento de Jair Bolsonaro parece descolado da realidade. Ora o presidente sai para passear de jet-ski; ora esbanja felicidade junto aos seus apoiadores em suas saídas por Brasília; já quando questionado por repórteres a respeito de temas sensíveis ao governo, ri sardonicamente, meio de lado, um riso sarcástico e doentio. É difícil relacionar as cenas com as quais Bolsonaro nos bombardeia diariamente com o cargo que ele ocupa, governando um dos países com pior desempenho no combate à pandemia de Covid-19.

Suponho que sejam essas as atitudes de “escárnio presidencial pela vida” às quais Marcos Nobre se refere no último parágrafo de seu ensaio Ponto-final. As atitudes do presidente causam, ainda nas palavras do filósofo, “raiva desmesurada”. É essa raiva, capaz de cegar a ponto de reafirmar a cultura bolsonarista da morte, que Nobre nos convida a deixar de lado em seu livro. Chamar Bolsonaro de burro e louco é “desobrigar a pensar”, defende Nobre. É também conceder uma vitória ao projeto político de Bolsonaro: as atitudes do presidente são, de certa forma, despolitizadas, quando consideradas provenientes de um comportamento desvairado. Afinal, “Bolsonaro conquistou essa hegemonia no debate”, escreve Nobre, “não porque ganhou a eleição, simplesmente. Conseguiu porque passamos a aceitar debater e pensar nos termos dele”.

Ponto-final é antes de mais nada tentativa de escape, de recusar os termos que Bolsonaro nos impõe. Assim, o que há de mais fascinante nessa empreitada é a existência de um caráter de experimento no livro. Rejeitar a maneira pela qual Bolsonaro organiza o real, resistir à imposição das categorias bolsonaristas de pensamento, é por si só um exercício vertiginoso; uma aposta na necessidade de compreender este nebuloso projeto autoritário enquanto ele toma forma.

Assim, para entender como a resposta desastrosa à Covid-19 faz sentido dentro do projeto autoritário de Bolsonaro, é necessário mergulhar na racionalidade de seu governo. Este projeto tem algumas características embora não de todo claras, o que, argumenta Nobre, torna Bolsonaro ainda mais perigoso, pois imprevisível.

A principal destas características, e que figura já no subtítulo do livro (“a guerra de Bolsonaro contra a democracia”) é a transformação da política em guerra. Neste procedimento sinistro, disputas políticas se tornam questão de vida ou morte e adversários são convertidos em inimigos a serem destruídos. Assim, a política convertida em guerra coincide com a política da morte reivindicada por Bolsonaro. “A democracia só fica ameaçada quando se passa da polarização para a guerra. Essa a verdadeira vitória de Bolsonaro. Fez quem defende a democracia pensar e agir com as mesmas armas destruidoras da democracia que ele usa”, escreve Nobre.

Bolsonaro possui um inimigo declarado: a esquerda que teria se infiltrado no Estado, passando a compor o “sistema”. Mas sua estratégia política não se restringe a isso, já que ele identifica como esquerda todos aqueles que não fazem parte de seu grupo político de extrema-direita. Um dos pontos cruciais da análise de Nobre é compreender Bolsonaro como um presidente anti-establishment e antissistema. Sem entender essa aparente contradição, argumenta Nobre, é impossível entender o governo. Para o presidente, a própria “democracia” é o “sistema”. Por isso Nobre afirma que a guerra de Bolsonaro contra a democracia tem como alvo destruir a Constituição Federal de 1988, a Carta Maior que colocou fim ao que o presidente considera a verdadeira democracia brasileira, aquela tutelada pelos militares. Daí a concepção de que tudo o que viria depois é de esquerda.

Nessa mesma direção, aliás, Paulo Guedes oferece à Bolsonaro uma perspectiva análoga no plano econômico: o “sistema” está baseado em uma economia predominantemente social-democrata elaborada por PT e PSDB: “Seu programa como ministro vai contra a ordem econômica da Constituição e, também nesse sentido, serviu bem ao propósito de Bolsonaro de destruir a ordem constitucional da redemocratização”, argumenta Nobre.

Para o filósofo e professor da Unicamp, a pandemia de Covid-19 atravessou Bolsonaro no início de seu projeto autoritário, enquanto ele fincava as bases de desmonte da democracia que, bem sabe, levará anos. Mas para Nobre, a reação do presidente à pandemia escancara o seu projeto político: o caos como método deliberadamente criado. Bolsonaro não pode enfrentar como líderes de outros países a dispersão da pandemia pois, para fazê-lo, seria necessário governar, valer-se das mesmas instituições de Estado que deseja desmantelar. Combater a pandemia seria, na lógica bolsonarista, tornar-se “sistema”. A falta de resposta do governo Bolsonaro à pandemia deve ser entendida dentro do contexto que Nobre identifica como forma de funcionamento do governo: a “normalização do estado de crise, a transformação do colapso em forma de governar. Se o caos como método depende do parasitismo político de Bolsonaro, esses dois lados da mesma moeda só são possíveis em uma situação de colapso institucional não apenas duradouro, mas conscientemente buscado e fomentado”.

O livro passa ainda por diversos temas relevantes para compreender a atual situação política brasileira: junho de 2013; os mecanismos de autopreservação do sistema político diante das ameaças da Lava-Jato; o sentimento que vigora entre membros das redes virtuais bolsonaristas de finalmente poderem participar de processos políticos dos quais sempre estiveram excluídos; o bolsonarismo como um movimento que teve início nas camadas hierárquicas inferiores de setores militares, de igrejas e do mercado financeiro, antes de ter a aderência das cúpulas; a recente aproximação de Bolsonaro ao chamado “centrão” na Câmara dos Deputados. A obra contém também uma camada, digamos, propositiva, para além da analítica: a necessidade de refundar um acordo democrático entre diversos partidos para superar a destruição democrática levada a cabo por Bolsonaro.

“Nenhum ferro aguçado pode atravessar o coração humano tão friamente como um ponto final colocado no lugar exato”, escreveu o contista russo Isaac Babel. Ponto-final, a expressão, explica Nobre, é frequentemente utilizada por Bolsonaro para encerrar a conversa ou as perguntas de jornalistas quando elas escapam do interesse do presidente. Bolsonaro transporta o uso do ponto final, o efeito dramático objetivado por Bábel em sua literatura, para um uso autoritário: “não se fala além do que eu desejo”, “conversa encerrada”, parece o presidente dizer com a expressão.

Ponto-final, o livro, é um ensaio, um esforço vertiginoso de compreender eventos avassaladores em meio ao seu transcorrer. Dessa forma, ao pretender escapar da máquina de captura bolsonarista, a pontuação que melhor o descreve são as reticências, a continuidade do debate, no lugar do abrupto encerramento de uma frase. Similar ao canhão de luz de um navio à deriva, Ponto-final não propõe exatamente um rumo a ser seguido, mas sim situar o lugar em que nos encontramos em meio ao nevoeiro, com a esperança de, um dia, dele podermos sair.

 

Fábio Zuker é jornalista.



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