Diagnósticos contundentes e outras palavras vãs
O que importa a conclusão da Cúpula dos ODS, da AGNU, do Conselho de Segurança ou da OMS se as peças do tabuleiro não se mexem por arte e mágica de resoluções, decisões ou declarações logradas em foros multilaterais?
O Fórum Político de Alto Nível – que é a instância no âmbito das Nações Unidas encarregada de acompanhar a implementação da Agenda 2030 – deverá reunir-se este ano com apoio da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). Em 2015, quando os Estados-membros adotaram por consenso a Agenda, decidiu-se que todo ano o Fórum deveria realizar-se sob patrocínio do Conselho Económico e Social das Nações Unidas (Ecosoc), que conta com 54 membros e a cada quatro anos, ao amparo da AGNU, con tutti. Somente por esse fato, o Fórum deste ano terá importância singular. O que esperar? Pouco, a julgar da leitura do chamado “rascunho zero” do projeto de declaração política da Cúpula dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Com efeito, o rascunho zero mais parece um rosário de promessas alinhavadas às pressas para aligeirar consciências que naufragam em correntes de culpabilidade. O que são as locuções renovar a nossa resolução, reafirmar o nosso compromisso, comprometemo-nos com, teremos urgência em – se não boias lançadas ao mar dos afogados?
É risível evocar ações ousadas, ambiciosas e transformadoras, ancoradas na solidariedade internacional, a responsabilidade compartilhada e a cooperação robusta em todos os níveis. Onde esteve a solidariedade internacional durante a pandemia da Covid-19? Onde estavam as ações ousadas, ambiciosas e transformadoras efetivamente necessárias para alcançar o futuro que queremos, como ressaltado na Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20? Onde a cooperação robusta e a responsabilidade compartilhada, que curiosamente costuma pesar mais do lado dos mais fracos, podem ser encontradas?
Nada no rascunho zero aponta que, desta vez, as coisas serão efetivadas. Por quê, caberia perguntar, desta vez será diferente? Que sentido tem reafirmar que estamos empenhados em defender a Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal de Direitos Humanos, o edifício inteiro dos acordos internacionais sobre esse tema, as condições de trabalho decente ou as múltiplas resoluções, decisões e declarações imaginadas para resgatar a dignidade humana – quando se tem presente o estado do mundo? Sem ruborizar?
Sem ruborizar, porque o secretário-geral, Antônio Guterres, em sua apresentação da edição especial do relatório de progresso dos ODS deixou claro que não devemos nos orgulhar da presente situação:
As inequidades continuam a aumentar;
26 pessoas detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo;
Nossa guerra contra a Natureza agrava-se com o aumento inexorável das emissões;
Mais de uma espécie em cinco está ameaçada de extinção;
Países em desenvolvimento não conseguem investir nos ODS por conta do buraco negro do endividamento;
Em 2022, o FMI alocou US$ 650 bilhões em Direitos Especiais de Saque, o principal mecanismo multilateral para injetar liquidez em tempos de crise financeira;
A União Europeia recebeu US$ 150 bilhões, enquanto a África toda, que têm o triplo da população, apenas US$ 34 bilhões;
Algo está fundamental errado com as regras e a governança do sistema que produz esses resultados.
Sim, algo está muito errado, mas não se trata de algo novo, de um tropeço seguido de uma queda. Estávamos bem, mas tropeçamos e caímos. Só temos que nos levantar e seguir adiante. Tudo estará bem. Não.
É indiscutível que hoje mais pessoas têm reconhecidos benefícios sociais e laborais. Não há dúvida de que há avanço na percepção da importância dos direitos humanos e da gravidade da emergência climática. Por outro lado, não há como escamotear que a meio caminho de 2030, estamos deixando mais da metade do mundo para trás, nas palavras de Guterres. “Bilhões continuam a viver na pobreza e são privados de dignidade. Inequidades em ascensão. Desafio intransponível para alcançar igualdade de gênero. Aumento do desemprego, particularmente entre jovens. Desastres naturais mais frequentes e mais intensos. Conflitos múltiplos. Espiral da violência. Esgotamento de recursos naturais e impactos da degradação ambiental. Deslocamentos forçados. Doenças emergentes e reemergentes. Crises na saúde.”
As palavras acima constam da resolução 70/1 da AGNU – Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. O diagnóstico de 2015 poderia ser aplicado, sem alteração, à atual situação ou a uma anterior. Algo está fundamentalmente errado com as regras e a governança do sistema que produz esses resultados.
“A economia está deixando de entregar a segurança e a prosperidade esperada por grande parte de nossas respectivas sociedades”, afirmou Martin Wolf, comentarista do Financial Times. E para ilustrar, apontou as seguintes falhas do atual modelo econômico: aumento das inequidades, instabilidades financeiras, crescente insegurança pessoal e reduzido crescimento econômico.
Cópia antecipada do relatório do Conselho sobre a Economia da Saúde para Todos, criado a pedido do diretor geral da Organização Mundial da Saúde com vistas a repensar a relação entre economia e saúde, traz à luz enunciados de natureza moral: saúde para todos deve ser prioridade em toda as estruturas de governo, não somente dos ministérios da saúde; pessoas devem ser a meta principal das economias, não algo intermediário para outros objetivos; deve-se construir um mundo mais justo e equitativo, orientado à vida e à saúde de pessoas e planeta; a economia do bem-estar e saúde deve centrar-se na pessoas; deve-se mudar a percepção do financiamento em saúde como um investimento, não mais como um gasto; deve-se promover a colaboração entre Estados de maneira a moldar mercados que priorizem a saúde humana e planetária; se a saúde é o objetivo último, então a economia deve ser reorientada para a servir.
Se por um lado os comentários do secretário-geral da ONU na apresentação da edição especial do relatório de progresso dos ODS e a opinião do articulista do Financial Times constituem observações, reconhecimento de fatos ocorridos e compilados em estatísticas, os enunciados produzidos pelo Conselho sobre Economia da Saúde para Todos são, por outro, recomendações de caráter moral, no entendimento que se apoiam na categoria do dever.
Guterres também faz observações, mas não se limita a elas. Com efeito, as suas observações são ocasião para apresentar o seu documento “Nossa Agenda Comum”, que supostamente irá corrigir as falhas do sistema multilateral, bem como injetar estímulo para a necessidade da transformação. Não é evidente, no entanto, por que as coisas seriam diferentes com a Nossa Agenda Comum, nem com a Cúpula dos ODS, em setembro deste ano ou com aquela do futuro, programada para setembro de 2024, ao abrigo da AGNU. Não é este o lugar para comentar a saída proposta pelo secretário-geral que, ao contrário do Conselho sobre a Economia da Saúde para Todos, não recorre ao dever moral, mas ao “tem que”, que soa um pouco autoritário. Talvez o “tem que” seja uma forma de expressar o dever moral, mas nesse caso parece um grito de desespero: “tem que”, porque de outra maneira estaremos fadados à catástrofe. É possível. Em todo caso, o “tem que” de Guterres parece indicar uma moral de último recurso ou, o que seria o mesmo, do desespero.
É importante ressaltar que em nenhum caso há uma condenação explícita à causa dos males que afligem a maior parte do mundo: o neoliberalismo. Alguns, para não o nomear, falam do sistema, outros, da economia, como se esses termos fossem sinônimos daquele. Curiosamente, todos parecem ter consciência de que a raiz dos males que denunciam em observações, diagnósticos e comentários reside no simples exercício de privilegiar a busca do lucro. Mas preferem sugerir correções, adaptações e pequenas modificações, todas tímidas para as transformações anunciadas, prometidas e, em seguida, descartadas porque supostamente não seriam economicamente viáveis. Curioso, porque todas as atividades causantes da mudança climática tampouco são economicamente sustentáveis a médio ou longo prazo. Tudo leva a crer que a evolução da mudança climática esteja próxima a um ponto de não retorno, com a consequente explosão de desastres naturais e de doenças emergentes e reemergentes que escapariam a qualquer tentativa de controle.
Algo está fundamental errado. Ou não. As 26 pessoas que detém a metade da riqueza do mundo, seus familiares, amigos e associados talvez possam escapar ao anunciado desastre planetário. São impermeáveis aos males listados pela AGNU, a OMS ou as opiniões de articulistas de jornais, que a eles servem e obedecem. O que importa a conclusão da Cúpula dos ODS, da AGNU, do Conselho de Segurança ou da OMS se as peças do tabuleiro não se mexem por arte e mágica de resoluções, decisões ou declarações logradas em foros multilaterais?
Não há como evitar comparar a aparente cegueira que ocorre no campo da economia, talvez por conta do curtoprazismo dominante, com a atitude das lideranças europeias com respeito à guerra na Ucrânia. Henry Kissinger, que não pode ser acusado de desatenção com respeito à Realpolitik, em entrevista na revista The Economist, manifestou a seguinte opinião: “O que os europeus estão dizendo agora (com relação à Ucrânia) é tremendamente perigoso. Não querem (os ucranianos) na Otan, porque são um risco muito grande. Isso não obstante, armam o esse país com o que há de mais avançado. O resultado é que a Ucrânia é hoje o país mais bem armado e também o que tem menos experiência de liderança estratégica na Europa.”
A “visita de surpresa” realizada na segunda semana de maio pelo presidente ucraniano a Roma, Berlin, Paris e Chequers, a residência de campo do primeiro ministro do Reino Unido foi justamente para pedir mais armas. Prontamente atendido por todos, sem exceção, as lideranças europeias pareciam afinadas com a insensatez sublinhada por Kissinger. Para aumentar um pouco a loucura, o giro europeu incluiu cerimônia de agraciamento das autoridades a Zelenski com a concessão do prêmio Charlemagne. Ursula von den Leyen, a presidente da Comissão Europeia, teria manifestado na ocasião que a Ucrânia encarna tudo que a Europa representa: coragem de convicções, luta por valores e liberdade e compromisso com a paz e a unidade. É irônico que a unidade pregada por von den Leyden seja em torno à guerra. A Europa é de fato o continente que historicamente mais empreendeu guerras.
Na mesma cidade, em 21 de maio, o presidente Lula pronunciou o que deve ser reconhecido como um dos mais importantes do século XXI. Expos a fragilidade dos dogmas e equívocos do neoliberalismo. Queixou-se de que não mesmo com a crise financeira de 2007, a arquitetura financeira global mudou pouco. O mundo vive uma sobreposição de crises que somente podem ser enfrentadas mediante mudança de mentalidade. Esse talvez seja o desafio mais importante. Mudar a mentalidade. Mudar para transformar, para abandonar a economia da exclusão e do descarte onde, por um lado, não é notícia que um ser humano em situação de rua morra de frio enquanto, do outro, manchetes de jornais dedicam espaços generosos à queda da bolsa de valores em dois pontos.
Santiago Alcázar é embaixador, colaborador do Centro de Saúde Global e Diplomacia da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (CRIS/Fiocruz).
Paulo Buss é professor emérito e diretor do Centro de Saúde Global e Diplomacia da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (CRIS/Fiocruz); Membro Titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil.