Diário do Ano da Peste
Temos de entender como uma proposta tão errática, do ponto de vista institucional, e tão pífia, do ponto de vista dos resultados, examinados à luz das próprias promessas, consegue obter aprovação entre tantas pessoas
Em 1665, Daniel Defoe tinha 5 anos e vivia em Londres. Meio século depois ele relatou as memórias daquele ano no qual a peste bubônica invadiu a Europa. Os mais ricos ou os que conseguiam se evadir foram para o exterior. Os padres fugiam com medo de suas funções; outros se transformaram em negociantes de fórmulas mágicas de cura. Bandidos aproveitaram-se da situação para criar uma espécie de governo paralelo. Pessoas trancavam-se em casa, com provisões. Corpos eram jogados em valas comuns. Nas casas marcadas com o sinal da peste, mulheres em desespero uivavam nas janelas.
Não tenho certeza se daqui a cinquenta anos teremos um relato semelhante sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. Mas por enquanto temos de entender como uma proposta tão errática, do ponto de vista institucional, e tão pífia, do ponto de vista dos resultados, examinados à luz das próprias promessas, consegue obter aprovação entre tantas pessoas.
Conhecemos três reações básicas diante da violação de expectativas: a negação, a dissonância cognitiva e a projeção. Pela negação nos afastamos da realidade, reduzindo o conflito entre ela e nossas opiniões. Pelo ajustamento da dissonância cognitiva alteramos nossos desejos, nossos pensamentos e o valor de nossas percepções para deflacionar o conflito, por exemplo: “Não é que as uvas estejam fora do meu alcance, é que elas estão verdes. No fundo, eu nem queria comê-las”. A terceira estratégia consiste em acreditar que a causa da contradição não está nem na realidade nem no que pensamos sobre ela, mas na manipulação que o outro continua a praticar para nos enganar, por isso precisamos continuar agindo para prevenir e erradicar a causa do mal, independentemente de razões e fatos, que são apenas parte da contrapropaganda.
Penso que esses três processos encontraram uma constelação inédita nesse novo populismo conservador que se espalha pelo mundo e, entre eles, o caso Brasil tem muitas peculiaridades. Bolsonaro não cumpriu nem 25% das promessas feitas para os cem primeiros dias de governo; sua capacidade de realização no ano1 ficou bem abaixo do prometido2 e bem abaixo da média dos governadores do Nordeste,3 que se tornaram seu crivo de comparação imediato. O erro aqui consistiria em seguir a gramática de verificação dos jornais e institutos de pesquisa, usualmente empregada em avaliações desse tipo. Um erro básico, porque uma das razões da eleição de Bolsonaro foi justamente questionar e violar esse tipo de gramática. Em outras palavras: suas promessas, pela forma como são enunciadas, inoculam outra teoria da verdade, e sua eleição sancionou essa outra gramática para reconhecimento de contradições. É por isso que o ataque a órgãos de imprensa, a crítica às universidades e a invenção da militância cultural anti-Brasil, encarnada por Petra Costa e seu filme indicado ao Oscar, Democracia em vertigem, são movimentos cruciais para a negação da contrariedade dos fatos. O projeto Escola sem Partido, totalmente fracassado institucionalmente, é um verdadeiro sucesso discursivo. Ele engendrou uma justiça, uma imprensa, uma universidade, um ambientalismo sem partido, que são no fundo um processo de ideologização total dos conflitos sociais, como que a dizer: Política é o que os outros fazem. Nós fazemos justiça com as próprias mãos, higiene educativa, depuração dos bons, teologia da prosperidade ou pirotecnia moral. Isso deixa a oposição indefesa e impotente quando diz que as regras do jogo estão sendo traídas. A resposta é: sim, e daí? Uma promessa não é apenas uma meta a ser alcançada, mas um laço de crença entre quem a faz e quem partilha dela. Promessas têm uma dimensão performativa entre os crentes de uma comunidade, não apenas representativa, entre proposições e o mundo.
Do ponto de vista do manejo da dissociação cognitiva, Bolsonaro desenvolveu um método muito eficaz de dualização das razões, que consiste em exagerar juízos e declarações, para depois voltar atrás ou desviar-se de suas consequências, colhendo como resultado uma espécie de empate técnico. Por exemplo, seus ministros da ala olavista fazem declarações em favor de uma globalização católica antidemônio4 (Ernesto Araújo), da política pública de abstinência sexual para reduzir doenças sexualmente transmissíveis5 (Damares Alves) ou contra a balbúrdia maconheira das universidades6 (Abraham Weintraub). Isso gera uma esperada reação dos críticos e especialistas. Ou seja, para seu público foi dada a enunciação de que “a criançada está transando demais”, que “Jerusalém é nossa” e que “só tem parasita na USP”. Para a oposição isso confirma que ele é um inepto e que a própria conversa é inútil. Empate. É assim que Bolsonaro tem conseguido, como se diz no futebol, empatar fora e ganhar quando o jogo é em casa, mantendo-se em uma posição intermediária na tabela do campeonato, apesar do time medíocre que coloca em campo.
Por isso, ele ataca alvos institucionais por uma estratégia em espelho: “Se você pode ser feminista, eu posso ser machista”; “Se você pode ser gay, eu posso votar em Bolsonaro”, “Se você pode ser democrata, eu posso ser fascista”… e tudo bem, ambos temos uma parte de razão e outra de desrazão. No fundo, como em briga de marido e mulher, estão ambos errados e certos. Aqui, o governo contou com um aliado inesperado: a própria esquerda, que em boa medida sancionou uma lógica de purificação das identidades e de crítica das elites, que, mesmo tendo fins completamente distintos do bolsonarismo, acaba concordando com seus meios de argumentação. Raciocínio análogo tem levado a uma retirada dos espaços de confronto discursivo, dando continuidade à ideia de que é impossível dialogar com fascistas. Isso é particularmente catastrófico quando se fala nas redes sociais e pior ainda quando se observa que o núcleo duro do bolsonarismo se acumula em torno do cristianismo evangélico. A teoria do poder aqui é simples: cresci apanhando, agora me torno policial para reaplicar isso nos mais fracos, que são afinal como eu fui. A confissão dessa lógica inversiva virá dos que dizem: mas o PT fazia a mesma coisa. Como se o populismo de direita fosse apenas o populismo de esquerda invertido. Empate.
Também faz parte disso a neutralização do tema da corrupção. Muitos se espantaram quando escândalos de corrupção em torno do uso de candidatos laranja pelo ministro do Turismo eclodiram sem que nenhuma providência fosse tomada. Na mesma direção da associação dos filhos com a milícia, o desvio de verbas da Secretaria da Comunicação torna-se um fato curiosamente sem repercussão negativa entre os apoiadores. Isso já se anunciava no governo Temer. Por maior que fossem as inconsistências, as malas de dinheiro e as conversas filmadas, o manto de proteção e invisibilidade se estendia sobre os incriminados na hora H, sem que nenhum lava-jato ou juiz herói se interpusesse. Trata-se da excepcionalidade da lei aplicada aos heróis. O mito tem licença para matar e para roubar, porque no fundo ele é um de “nós”. O pacto cínico da corrupção, tantas vezes denunciado pelos críticos, continua a vigorar. Isso significa que as coisas não dependem do que se faz ou do que se diz, mas de quem se é. Certo tipo de denúncia apenas reforça esse efeito: nós, os nossos e os de nossa família estamos isentos da lei ordinária e a raiva e a crítica alheia são apenas o espelho de quem perdeu seus privilégios (que agora passaram para “nós”).
É por isso também que, quanto mais se denuncia o engodo e a má-fé de pastores bilionários, mais seu negócio prospera, pois ele está baseado na corrupção. Aqui a ilusão de que “nós” estamos no poder e que em algum momento ele nos servirá de proteção e auxílio é uma tentação narcísica imbatível. Dizer para alguém pobre, desamparado pelo Estado, perdendo direitos sociais e trabalhistas que ele deixará de ter seu grama de sentimento de poder, em troca de uma amarga compreensão de autoengano, é quase uma deslealdade. Como tenho ouvido em minhas andanças pelo Brasil: “Esse pessoal que fala que estamos perdendo democracia, aumento de violência e desigualdade de gênero não sabe que aqui na quebrada sempre foi assim. Pelo menos o Bolsonaro entende como nós somos, porque ele fala a linguagem da injustiça”. O fenômeno é conhecido desde a ascensão do nazismo, apoiado por inúmeros grupos que se acreditavam protegidos por fazerem parte do “nós”, até descobrirem, tarde demais, que eram apenas resíduos do “eles”. Mais uma vez, a luta contra privilegiados uniu esquerda e direita, como se fosse a mesma luta.
As estratégias de negação da realidade, para reduzir a angústia gerada pela contradição política, e distorção do pensamento, para ajustar nosso sistema de crenças morais, não funcionariam sem as projeções dissociativas, empregadas para nos fazer engolir a realidade da economia. Projeção tem aqui o sentido de negar o que está errado em nós mesmos, imputar isso aos nossos inimigos, adiando indefinidamente a prova de realidade. Por isso, quanto mais o país demora a voltar a crescer, mais ele estava quebrado pelo PT. Dissociação significa, neste contexto, a impossibilidade de reconhecer em si mesmo os defeitos e críticas que você mobiliza contra os outros. Por isso, um governo que clama pela autocrítica da esquerda não apresentou, ao longo do ano, uma única autocrítica de si mesmo. Exemplo: quando Roberto Alvim foi exonerado por parodiar propaganda nazista, não se disse que foi um erro de escolha do secretário de Cultura, mas uma pronta solução do problema.7
É aqui que a pobreza iludida se alia mais uma vez às elites dos que nunca perdem. Anos de petismo formaram o consenso de que os empresários estavam realmente unidos e sedentos pela queda dos juros, pelo equilíbrio fiscal do Estado (para o qual a reforma da previdência e a PEC dos gastos era crucial), pela elevação do dólar e pela reforma tributária. Tudo isso nos levaria a um próspero mercado livre, onde todos nos tornaríamos empresários de nós mesmos, usufruindo os benefícios da livre iniciativa e da concorrência justa, limpa e honesta, sem protecionismo ambiental ou mimimi de direitos humanos. Finalmente entraríamos no capitalismo como ele é. A única função que queremos do Estado é proteção e segurança, necessárias para que as regras sejam aplicadas com toda força a todos, indistintamente. Só que a dissociação nos impede de ver que essa justiça não é de fato equitativa e que seleciona casos e exceções conforme preconceitos e interesses de ocasião.
Paulo Guedes e Sergio Moro são os dois pilares desse programa dos sonhos. Mas Moro roubou indecentemente no processo da prisão de Lula, comportando-se como um juiz corrupto, como mostrou a série de reportagens da Intercept-Folha.8 Depois, negociou a chegada a ministro com passagem para o Supremo Tribunal Eleitoral, sem falar no vergonhoso silêncio sobre o caso Marielle Franco ou na conivência com os crimes eleitorais dos filhos do presidente. Ainda assim, tornou-se alvo preferencial da paranoia presidencial e goza de confiança popular, pelos motivos apresentados anteriormente. Se Moro não abre a boca, jogando com a camisa, Guedes tem problemas para fechá-la, sendo expulso toda hora.
Depois de um ano, tornou-se óbvio que a coisa não era tão simples assim na economia. A ideia de que sem entraves os investimentos retornariam é parcialmente verdade. A tese de que a falta de dinheiro procedia da corrupção é mais parcial ainda. Tudo depende das commodities, mas isso não pode ser dito, pois era o argumento do PT para explicar a crise. Recebemos investimentos externos (o sexto destino do mundo), mas continuamos a exportar milionários9 e cérebros.10 A Bolsa passou a ser sustentada por investidores nacionais e o mercado consumidor parou, mantendo o PIB e o nível de emprego quites entre si. A equação neoliberal de que, se o Estado sai, a iniciativa privada entra e tudo caminha bem melhor, tomou um choque de realidade. Os estados que estavam quebrados continuam quebrados. As privatizações renderam menos do que o previsto, o pré-sal salvou menos do que o esperado e os grandes negócios da china continuam lá na China. Vendemos o carro e o forno da “boleira”, mas estamos no azul. De quebra, passamos nos cobres o dinheiro da escola das crianças, do plano de saúde e do cinema da família. Mas todo mundo bate palmas, porque afinal estávamos quebrados e daqui a pouco o milagre virá.
Quando olhamos de longe, o governo Bolsonaro saiu-se melhor que a encomenda. A peste está por toda parte, mas as pessoas ainda não estão desesperadas. Mas, quando olhamos mais de perto, percebemos que o verdadeiro presidente do Brasil se chamou Rodrigo Maia e que seu vice atendia pelo nome de general Santos Cruz, até ser demitido por excesso de eficácia. Se a violência caiu é porque as facções perceberam que pacificar é melhor para os negócios. Vivemos uma situação de Estado tutelado, no qual tudo se torna supérfluo, exceto a teologia política. Ou seja, a situação econômica do primeiro ano do governo lembra uma banca de doutorado na qual meu ex-orientador abriu a arguição dizendo: “A tese tem coisas boas e novas. Mas as boas não são novas, e as novas não são boas”.
A situação divide-se entre o terço que sempre foi contra Bolsonaro, o outro terço que foi e será a favor, ainda que derretendo lentamente entre os Nutella, basicamente antipetistas de ocasião, e o pessoal Raiz, que seguirá o mito até o inferno, se é que já não estão lá. O terceiro terço é decisivo. Nele encontra-se a população dos desavisados, isentos e errantes para os quais toda essa história de política já está passando da conta; eles vivem uma dissociação entre economia e moral. Aqui estão também os que sofrem com a arrogância da esquerda. São eles que dirão mais tarde que Hitler tinha um lado bom, pois acabou com a inflação na Alemanha, levantou a moral do povo, que se sentia humilhado, colocou a economia para funcionar, militarizando o país, e ademais foi eleito democraticamente. São esses que serão julgados pela história como colaboracionistas, que se aproveitaram da situação para ignorar fatos, extrair vantagens e continuar agindo conforme as circunstâncias. Isso, porém, só acontecerá quando conseguirmos virar a página do ano de 1665, ou melhor, de 2019: o ano da chegada da peste ao Brasil.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da USP e coordenador do laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise.
1 “Jair Bolsonaro: as promessas do candidato do PSL à Presidência”, G1, 11 out. 2018.
2 Bruno Fávero, “Em um ano de governo, Bolsonaro não cumpriu 23% das metas para os primeiros 100 dias”, AosFatos, 30 dez. 2019.
3 Lucas Rocha, “Governadores de esquerda cumpriram muito mais metas do que Bolsonaro”, Revista Fórum, 7 jan. 2020.
4 João Pedro Caleiro, “As opiniões polêmicas do novo chanceler sobre raça, fake news e 8 temas”, Exame, 14 nov. 2018.
5 Vinicius Sassine, “Damares reconhece abstinência sexual como ‘política pública em construção’”, O Globo, 10 jan. 2020.
6 “Universidades com ‘balbúrdia’ terão verbas reduzidas, diz Weintraub”, Veja, 30 abr. 2019.
7 Jan Niklas e Thayz Guimarães, “Roberto Alvim é demitido da Secretaria Especial da Cultura”, O Globo, 17 jan. 2019.
8 “Leia todas as reportagens que o Intercept e parceiros produziram para a Vaza Jato”, The Intercept, 20 jan. 2020.
9 Mariana Durão, “Brasil está entre países com maior fuga de milionários: 2 mil saíram em 2017”, BBC News Brasil, 27 ago. 2018.
10 “‘Fuga de cérebros’ é tema de reportagem na Folha de S. Paulo”, Jornal da USP, 28 jan. 2020.