Os ecos da diáspora: a limpeza étnica e apartheid à luz das manifestações palestinas no Brasil
O sexto artigo da série “Limpeza étnica na Palestina” fala sobre a comunidade palestina no Brasil, suas redes de solidariedade e suas denúncias à limpeza étnica e ao apartheid do povo palestino na Faixa de Gaza
As diferentes ondas de imigração para a América Latina fazem parte de um processo diaspórico vivido pelos palestinos. A ideia de diáspora tem sido mobilizada pelas pessoas palestinas no Brasil, construída com especificidade na América Latina. A estimativa da população palestina brasileira é de 200.000 pessoas, segundo a Federação Palestina do Brasil.
Esse corpo de pessoas vivendo em refúgio pela impossibilidade de viver em sua terra de origem é neste momento “engrossado” com a chegada de palestinos com cidadania brasileira repatriados, fugindo do processo atual de limpeza étnica e do genocídio em curso em Gaza. Muitos palestinos, no Brasil, têm hoje reivindicado o termo “limpeza étnica”, no que se refere à situação da Palestina desde 1948, bem como o termo genocídio para a situação atual em Gaza.
De forma a contextualizar como se formaram as comunidades palestinas no Brasil, é importante salientar que a imigração árabe ocorreu em dois momentos principais. No primeiro, nas duas últimas décadas do século XIX e no começo do século XX, esses imigrantes, principalmente sírio-libaneses e majoritariamente cristãos, saíram de seus países em virtude de conflitos políticos e econômicos, ainda no período Otomano.
O segundo momento dessa imigração ocorreu com a chegada dos muçulmanos, por volta da década de 1960, e se deu principalmente em virtude dos conflitos árabe-israelenses no Oriente Médio, como definido por Claudia Voigt Espinola (2005). No Brasil, a migração palestina se diferenciava, principalmente, pela potencialização da imigração pós-Nakbah (após a constituição de Israel) e pela conformação de uma comunidade majoritariamente muçulmana.
Há que se considerar ainda dois momentos mais recentes e diferenciados de chegada de pessoas palestinas no Brasil. A chegada dos refugiados vindos do Iraque, em 2007, e da Síria, em 2015, conforme as pesquisas de Sônia Hamid (2012) e Helena Manfrinato (2022).
Nakba contínua e resistência palestina
Para pensar o deslocamento de pessoas palestinas, principalmente após a implementação do sionismo e a partir de um processo de limpeza étnica, já em meados do século XX, um ponto relevante a ser considerado são as novas formas de colonialismo e sua permanência na atualidade, como no caso palestino. Compartilhando espaço com o mundo contemporâneo, o colonialismo se adapta, todavia, segue vigente.
Pensar o colonialismo de assentamento que ocorre na Palestina, tendo em vista a promoção de uma limpeza étnica para dar lugar ao Estado sionista, nos permite problematizar as novas formas de colonialismo e de racismo. Também se destacam no processo as formas de resistência palestina, sejam elas conectadas através do físico – o corpo como assembleia e ações de resistência corporificadas (Butler, 2019) – ou através do virtual – como temos acompanhado recentemente na situação da Cisjordânia e de Gaza. Portanto, reitero aqui o papel das pessoas em diáspora e de suas manifestações na resistência palestina.
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A Guerra dos Seis Dias: 1967, o início da ocupação
Um país fora do lugar: os refugiados palestinos
Os novos modos de guerra contra populações civis na Palestina
“A Palestina não vai terminar nunca, só quando matarem o último palestino”, afirmou uma interlocutora, representante do BDS (movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções contra o governo de Israel). Ela continua, “essa força, de quem está lutando fisicamente, precisa de apoio e de divulgação de quem está aqui”. Nesta perspectiva, diversas pessoas, no Brasil e na América Latina, se solidarizaram aos palestinos expondo o modelo de apartheid israelense, a violência cotidiana e o racismo contra palestinos.
O apartheid, enquanto conceito jurídico, é definido como um regime institucionalizado de opressão e dominação sistemática de um grupo racial sobre outro. O regime configura-se pela prática de “atos inumanos” e, também, pela “intenção de manter a dominação”. Segundo a Convenção Internacional para Supressão e Punição de Crime de Apartheid, ocorrida em 1973, definiu-se Apartheid, como:
Artigo I. 1 Os Estados Partes na presente Convenção declaram que o apartheid é um crime contra a humanidade e que os atos desumanos resultantes das políticas e práticas do apartheid e políticas e práticas semelhantes de segregação e discriminação racial, tal como definidas no artigo II da Convenção, são crimes que violam os princípios do direito internacional, em particular os objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas, e constituem uma séria ameaça à paz e segurança internacionais (p. 245 – tradução livre).
O termo, inicialmente utilizado em referência à política racial na África do Sul, é de origem africaans e significa “segregação”, “separação”. Instaurado pelo, na época, primeiro-ministro sul-africano François Malan no ano de 1948, o apartheid sul-africano “constituiu a separação física e negação de direitos igualitários entre os diferentes grupos humanos na Africa do Sul, com base em critérios raciais”. Frantz Fanon afirmou que “no mundo colonial […] o indígena é um ser encurralado, o apartheid é apenas uma modalidade de compartimentação do mundo colonial”
Em relatório de abril de 2021, o Human Rights Watch denunciou Israel por crime de apartheid, concluindo que o Estado de Israel exerce autoridade em toda a região, segrega e discrimina os palestinos/as. A partir do documento, diversas mobilizações trouxeram visibilidade internacional ao tema. Para muitos palestinos, essa visibilidade foi fundamental para o processo de descolonização da terra Palestina.
Os termos apartheid e limpeza étnica têm sido frequentemente utilizados por acadêmicos e ativistas pró-palestina, no intuito de reconhecer e nomear, a luz do direito, a situação colonial da Palestina. O uso do termo pelos palestinos em diáspora no Brasil e organizações locais evoca sua definição jurídica. Todavia, por vezes, ele toma outras conotações, sendo um pouco alargado, aproximando-se mais de noções academicamente definidas como colonialismo e racismo. Quando apartheid aparece em relação ao racismo, é utilizado para referir-se a manifestações racistas e discriminatórias, em geral, por parte do Estado israelense. Quando se aproxima do conceito de colonização, o é para enfatizar a dominação israelense sobre a Palestina. Mas uma forma muito precisa de uso do termo denota a separação física entre palestinos e israelenses, promovida pelas políticas e mecanismos de controle (checkpoints, vigilância, força militar, repressão, muro de segregação) criados pelo agente colonizador.
Necroviolência
Algumas das redes de solidariedade palestinas utilizaram o conceito de necropolítica para referirem-se ao modelo de ocupação colonial israelense e às práticas de controle, segregação e extermínio da população palestina instituídas pelo Estado de Israel. Mais recentemente, a Juventude Sanaúd utilizou um desdobramento do conceito para falar em necroviolência e o confisco de restos mortais de palestinos pelo governo israelense.
“O termo necroviolência está intimamente ligado a políticas de gestão da morte. Essas necropolíticas impõem o controle técnico e institucional sobre os corpos de um conjunto de indivíduos, fortalecendo políticas de segregação e desumanização”. O texto disposto pela entidade segue denunciando as violações de Direitos Humanos em relação ao confisco de restos mortais. Segundo a nota, enfatiza-se que o Supremo Tribunal Israelense regulamentou tal prática em 2019, baseando-se na legislação colonial britânica de 1945, mesmo que isso configure violação ao Direito Internacional, prevista pelas Convenções de Genebra. Nada mais atual que o resgate deste conceito para pensar a atua situação da Palestina, com destaque a escalada de violência ocorrida desde outubro.
Uma aproximação feita entre Brasil e Palestina foi feita pela Juventude Sanaúd, em nota, remetendo aos palestinos/as como “nativos” e associando o termo tanto à luta pela terra e contra a limpeza étnica indígena no Brasil e dos palestinos, quanto à cooperação comercial do governo brasileiro e israelense no agronegócio.
Ativismo digital entre o Brasil e a Palestina
Campanhas atuais pelo “Cessar Fogo Imediato” tomaram as ruas e vêm crescendo de norte a sul do Brasil, bem como mobilizações em denúncia às violações dos direitos humanos na Palestina. Seguindo uma lógica similar à do movimento internacional contra o apartheid na África do Sul, pessoas em diáspora e organizações políticas palestinas buscam enfrentamento e visibilidade internacional de forma a combater de fora a violência na Palestina. As resistências são múltiplas, bem como as linhas de enfrentamento.
Na atualidade, as campanhas estão voltadas para a denúncia da situação atual em Gaza como um “genocídio”. A Federação Palestina do Brasil segue fazendo campanhas de formação, bem como denúncias à violência e campanhas para ajuda humanitária. A Juventude Sanaúd, por sua vez, tem atuado lançando o “Boletim diário Genocídio na Palestina”, onde realizam informes das mortes, torturas e ataques tanto na Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza. Para além disso, seguem atualizando as agendas de solidariedade e informes didáticos voltados ao público geral.
As denúncias misturam elementos distintos, de pinkwashing, segregação racial, violência de gênero e restrições de mobilidade. As manifestações palestinas nas redes têm sido muito diversificadas e cada vez mais se utilizam de termos jurídicos e acadêmicos de forma a apropriar-se destas noções tanto para legitimação das narrativas sobre a violência colonial quanto os usos de análises acadêmicas que corroboram sua narrativa sobre a situação da Palestina e dos palestinos em diáspora.
O uso das redes sociais por ativistas e instituições políticas palestinas para denunciar a violência da ocupação, as mortes de pessoas palestinas e o apartheid foi um meio de ocupação recente no Brasil, impulsionado pela pandemia e pela decorrente restrição da ocupação do espaço físico. Senhores com quem diálogo há quase uma década, que se orgulhavam da presença palestina nas ruas durante as campanhas pelas “Diretas já”, no Brasil, agora aprendiam com os jovens palestinos da terceira geração o uso das mídias digitais como ferramenta política.
Uma transformação para além da reconfiguração organizacional das instituições e organizações palestinas foi percebida, era a transformação do ativismo, ou de parte dele, do offline para o online. No contexto político brasileiro, o “ativismo digital” se tornou uma demanda dos movimentos políticos. Paralelamente, na contramão da mídia hegemônica, essas organizações e ativismos em redes construíram nesses espaços, uma narrativa independente, mas que também publicizava a violência colonial e estava junto à causa palestina.
Na última semana, 32 pessoas foram repatriadas no Brasil, após um mês de esforços da embaixada brasileira de Ramallah. Brasileiros e seus familiares atravessaram a fronteira de Rafat, que liga Gaza ao Egito, de onde foram deslocados para o Brasil. Segundo os dados fornecidos pela embaixada, na Cisjordânia, residem hoje cerca de 6 mil brasileiros, em sua grande maioria de família palestina. Trata-se de descendentes de imigrantes palestinos nascidos no Brasil que retornam para viver na Palestina. Os fluxos e contrafluxos de palestinos-brasileiros são parte de um movimento de pessoas em diáspora que buscam pelo retorno, mas, atualmente, têm que voltar ao Brasil, mais uma vez, em exílio. Pensar as relações entre Brasil e Palestina, bem como os fluxos de pessoas e as redes de mobilização tem sido essencial para compreender que os ecos da limpeza étnica ressoam na diáspora, nas mobilidades de retorno e nas imobilidades das pessoas em refúgio.
Bárbara Caramuru é doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Mestra e Graduada pela Universidade Federal do Paraná, onde atualmente é pesquisadora de pós-doutorado. Suas pesquisas atuais têm enfoque sobre Palestina a partir do gênero e interseccionalidade, diáspora e mobilidades. É coordenadora do Núcleo de Estudos Palestinos Latino-americano, NEPLA. Seu último livro, La tierra palestina és mas cara que el oro, trata da experiência de pessoas palestinas na diáspora chilena.
Referências:
BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
CARAMURU TELES, B. La resistencia palestina es mujer y está furiosa: palestinidades em diáspora a partir dos marcadores sociais de diferença: um olhar interseccional Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2023
ESPINOLA, C. V. “O véu que (des)cobre Etnografia da comunidade árabe Muçulmana em Florianópolis” – Spinola. C.V. Tese, PPGAS UFSC- 2005
FOULCAUT, M. Microfísica do poder, [1979] 2010. São Paulo: Edição Graal
____________. Vigiar e punir, [1975] 2008. Petrópólis: Vozes.
HAMID, S. C. (Des)Integrando Refugiados: Os Processos do Reassentamento de Palestinos no Brasil. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS, UNB, Brasília, 2012
HOURANI, A. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
MANFRINATO, H. Dos quadros de guerra à participação: socialidade, redes de ajuda e política na ocupação urbana Leila Khaled. Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social em 2022
MBEMBE, A. Necropolítica. Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
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