Direito urbanístico e política urbana em tempos de pandemia
Desde o começo de 2020, as gravíssimas implicações da pandemia em curso, as previsões de futuras pandemias ainda mais perigosas e os efeitos evidentes dos processos cada vez mais extremos de mudanças climáticas e aquecimento global já indicaram que, sem uma mudança estrutural de paradigmas e comportamentos, a própria sobrevivência da espécie humana no Planeta ficará ameaçada. A magnitude e a gravidade desses fenômenos exigem que repensemos profundamente as condições das relações entre seres humanos e meio ambiente, especialmente nas cidades onde, desde 2008, já vive a maioria da população global
A crise sanitária em curso é essencialmente a crise da cidade, isso é, uma crise das dinâmicas de produção do espaço nas cidades e do modelo hegemônico de ordenamento territorial. Originalmente determinada pelas mudanças das relações dos seres humanos com o meio ambiente – dados o padrão de urbanização dominante internacionalmente e as relações íntimas e predatórias entre urbanização, desmatamento, exploração de recursos naturais e novas práticas de agricultura -, a pandemia é um fenômeno essencialmente urbano, dadas a natureza do vírus e suas formas de transmissão. A propagação da doença acontece principalmente nas cidades e afeta especialmente a população urbana, agravando desigualdades socioeconômicas há muito existentes.
Em especial, a pandemia já evidenciou o laço histórico inseparável entre políticas de saúde e políticas de moradia. As condições de moradia – quer dizer, o conjunto de fatores incluindo localização, espaço físico, qualidade construtiva, qualidade arquitetônica e qualidade ambiental, existência de serviços e infraestrutura, bem como acesso a espaços e equipamentos públicos, áreas livres e áreas verdes – têm determinado quem é mais vulnerável; quem pode cumprir ditames de proteção e prevenção como lavar as mãos, observar distanciamento físico e adotar trabalho e ensino remotos; quem tem maior ou menor acesso a serviços de saúde; e quem corre maior risco de morte. A crise global de saúde está fundamentalmente relacionada com as condições de vida, trabalho e moradia nas cidades – a chamada “questão urbana” –, revelando em especial onde e como vivem os mais pobres nas cidades. Nos diversos países, moradores de assentamentos informais, cortiços, conjuntos habitacionais, áreas periféricas e bairros precários têm sido os mais duramente afetados.
A maior compreensão dos efeitos da pandemia provocou a necessidade de explicitar a dimensão do ordenamento territorial e a natureza das políticas de solo intrínsecas ao fenômeno, mas que nem sempre são devidamente reconhecidas. A crise global de moradia direta e indiretamente reflete as condições de ordenamento territorial, assim como a natureza da estrutura fundiária das cidades, que em última análise é o fator que determina as condições de acesso ao solo e à moradia. Dados existentes sobre os impactos da pandemia já indicam com clareza suas dimensões de raça, etnia e gênero, além de trazer à tona uma questão menos conhecida, qual seja, onde e como vivem os mais velhos nas cidades.
O fato é que a natureza da estrutura fundiária das cidades foi escancarada pela pandemia. O grande déficit habitacional identificado em muitas cidades com frequência coexiste com enorme estoque de construções públicas ou privadas vazias ou subutilizadas; um estoque enorme de terras públicas ou privadas com serviços e equipamentos, mas sem construções; pouca gente ocupando grandes espaços físicos, enquanto muita gente divide espaços cada vez menores; e com um número crescente de famílias vivendo em assentamentos informais e outras formas de moradia precárias, quando não nas ruas. Da França/Espanha/Itália à Inglaterra, dos EUA ao Brasil e outros países latino-americanos, tem saltado aos olhos o impacto da estrutura fundiária na maior ou menor probabilidade de alguém apanhar o vírus, ser hospitalizado, ser tratado – e morrer.
A questão urbana na América Latina
Não é por acaso que vários dos países latino-americanos – Brasil, Peru, Argentina, Equador, México, Colômbia – estão dentre os mais afetados pela pandemia. Há muito tempo uma reflexão sobre a produção do território e os desafios da gestão das cidades tem aproximado os países latino-americanos – região onde a urbanização já se consolidou há décadas. Dentre muitos outros, pobreza, desigualdade, informalidade, clientelismo e patrimonialismo são temas comuns a esses países, e há muitas décadas tem havido na esfera latino-americana todo um rico debate acadêmico comparativo, bem como uma instigante produção institucional sobre a “questão urbana”. Em que pesem as mudanças políticas cíclicas e os conflitos em torno dos projetos de hegemonia das elites regionais, as discussões e decisões sobre ordenamento territorial, planejamento urbano e gestão pública nos diferentes países latino-americanos têm incorporado em alguma medida diversos elementos das experiências, leis e políticas dos demais países da região, através do intercâmbio sempre renovado entre acadêmicos, gestores públicos e ativistas sociais.
Contudo, ainda que desde meados do Séc. XX a maioria dos países latino-americanos tenha abraçado, explicita ou indiretamente, nominal ou concretamente, o ideário da “função social da propriedade” – princípio jurídico central das leis e politicas urbanas e ambientais -, na área jurídica essas trocas sobre as questões das cidades no âmbito latino-americano ainda são menos consolidadas – muito embora as frequentes mudanças legais que têm ocorrido nos diferentes países sejam sempre a expressão desse contexto mais amplo de discussão teórica sobre a politica territorial.
Há diversos paralelos possíveis, por exemplo, na evolução cronológica e conceitual das ordens jurídico-urbanísticas da Colômbia e do Brasil; da mesma forma, princípios, mecanismos, e instrumentos jurídico-urbanísticos adotados no Brasil têm servido de inspiração para as reformas jurídicas mais recentes em países como o Equador e a Argentina. No entanto, o debate sistemático entre os juristas e urbanistas da região ainda precisa ser expandido. Ainda prevalece uma visão tradicional do Direito entre os demais profissionais do urbanismo – visto como mero “instrumento técnico”, quando não mero “instrumento de dominação”. Com o devido respeito pelo instigante movimento da Sociologia do Direito em alguns contextos, ainda há pouco escopo no campo dos estudos urbanos latino-americanos para uma reflexão mais ampla e crítica sobre os aspectos legais, políticos, materiais e simbólicos do Direito visto enquanto processo sociopolítico e arena de explicitação e alguma resolução de conflitos.
Se a área dos “estudos urbanos” há muito se encontra consolidada na América Latina, tem sido uma alegria acompanhar o crescimento, sobretudo nas últimas três décadas, da (sub-)área dos “estudos jurídicos sobre a cidade”, especialmente através do Direito Urbanístico, com a criação de diversas instituições, a definição e o cumprimento de agendas de ensino, pesquisa e extensão, e muito ativismo sociojurídico e sociopolítico. Ainda que em países como Brasil, Colômbia e Argentina esse movimento seja mais consistente, também em outros países tem crescido o número de juristas que trabalham com as muitas questões da cidade. De modo geral, me parece justo afirmar que os juristas têm incorporado o conhecimento produzido pelos estudos urbanos em suas análises com mais vigor do que os urbanistas têm incorporado o conhecimento produzido pelos estudos jurídico-urbanísticos.
Por essa razão, ainda é preciso fazer um esforço maior no sentido de aproximar juristas e urbanistas da região para incluir uma dimensão sociojurídica sólida na compreensão dos processos urbanos e ambientais, contribuindo assim para a constituição de uma linguagem verdadeiramente interdisciplinar que permita analisar criticamente os principais papéis compridos pela ordem jurídica na determinação do padrão dominante de urbanização na região – bem como sugerindo ações que possam levar à promoção de mudanças significativas na qualidade da ordem jurídico-urbanística para aproximá-la das realidades urbanas e das necessidades sociais dos diversos países.
Lições para além das fronteiras
É com esse espirito de prover informação e contribuir para a aproximação entre juristas e urbanistas brasileiros e latino-americanos, bem como de forma a atualizar o campo da discussão jurídica contemporânea sobre as politicas fundiárias, urbanas e habitacionais na região, que o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) está promovendo uma série de webinários sobre os desdobramentos que têm acontecido em diversos países – reformas jurídicas e constitucionais, novas leis, projetos e programas, ações variadas – especialmente no contexto da pandemia. Até agora já tiveram participações de colegas urbanistas e juristas da Argentina, Peru, Equador, Colômbia, México, Chile, Uruguai e Costa Rica. Em cada webinário, além da discussão geral sobre cada país, a proposta foi explorar aspectos específicos das experiências dos demais países que pudessem ser de interesse especial para juristas e urbanistas brasileiros.
O caso da Argentina destacou os processos de produção informal do espaço urbano e os desafios das políticas de regularização de assentamentos informais consolidados, bem como apresentou os termos principais do novo Plano Nacional do Solo Urbano. Se a discussão sobre a informalidade da produção habitacional é recorrente na América Latina, o enfrentamento de uma de suas causas principais – isso é, a natureza excludente da questão fundiária – é bem mais raro, e por essa razão devemos todos acompanhar os esforços do novo governo argentino ao reconhecer de maneira pioneira a centralidade da questão do ordenamento territorial e das políticas fundiárias para efetivamente democratizar as condições de acesso ao solo e à moradia nas cidades, bem como para minimizar os processos de produção informal do espaço.
Os convidados do Peru também abordaram a questão da informalidade fundiária e habitacional, mas de forma a explorar uma questão de enorme relevância para o Brasil: qual deve ser a natureza dos programas de regularização de assentamentos informais consolidados. O Peru se tornou referência internacional pelo seu programa nacional de regularização dominial em massa, na linha proposta pelo influente economista Hernando de Soto, e milhões de títulos de propriedade foram entregues aos moradores. No entanto, a falta de incorporação de uma dimensão urbanística minimamente adequada nos programas de regularização foi certamente um dos principais fatores que têm determinado as consequências dramáticas da pandemia.
Aprendemos também com as possibilidades e dificuldades da aplicação do marco jurídico-constitucional do Equador – a inspiradora Constituição de 2008, que dentre outros princípios inovadores reconheceu o “buen vivir”, a função socioambiental da propriedade e o direito à cidade -, bem como as disputas que têm ocorrido em torno da revogação parcial ou total da Lei de Ordenamento Territorial, Uso e Gestão do Solo, que já tinha se tornado uma referência para os demais países da região. Da experiência equatoriana sobressaem os diversos e poderosos conflitos envolvidos sociopolíticos nos processos de ordenamento territorial, com o que a formação, amadurecimento e renovação de atores e instituições sociais é de fundamental importância para que as lutas urbanas levem à promoção de reformas significativas que sejam efetivamente implementadas.
O caso da Colômbia tinha uma proposta algo original: enquanto a experiência de política de solo urbano e gestão territorial do país tem sido internacionalmente aclamada pela maneira com que instrumentos técnicos, jurídicos e financeiros têm sido utilizados, especialmente no campo da recuperação e da gestão da valorização imobiliária; há pouca discussão sobre a participação e a qualidade política dos processos decisórios colombianos sobre as questões urbanas. A proposta de reconhecer a “Proteção aos Direitos dos Moradores” como princípio central da política pública em Medellín é de grande importância, especialmente por indicar que com frequência soluções técnicas podem e devem ser repensadas de forma a permitir a permanência das comunidades nas áreas onde vivem. Por sua vez, as estratégias nos projetos originais de reajuste de terrenos em Bogotá, com interessantes mecanismos de envolvimento das comunidades afetadas, sugerem cenários de maior construção de consenso sociopolítico – e menor judicialização de conflitos.
Do México, pudemos trazer a discussão sobre as políticas formais e informais de produção habitacional no país ao longo de décadas, inclusive a enorme produção habitacional de interesse social nos últimos anos, sendo que destaque foi dado à recente proposição de uma nova Política Nacional do Solo no país. Um aspecto especial da experiência mexicana é a discussão sobre o processo de ocupação informal e mercantilização nas áreas urbanas e peri-urbanas das terras comunais das comunidades indígenas – ejidos – resultantes da Revolução de 1917: em tempos em que tantos têm abraçado a noção emancipatória do “comum”, é importante refletir sobre as condições necessárias para que os ideais da solidariedade coletiva e da gestão territorial comunitária não sejam comprometidos.
A partir da experiência chilena, discutimos as relações possíveis entre as políticas urbanas e habitacionais e os processos e conflitos sociopolíticos recentes, assim como as principais propostas que estão surgindo para o tratamento das cidades no próximo processo constituinte do país. Os eventos recentes têm mostrado como as políticas urbanas e habitacionais chilenas não conseguiram diminuir as condições históricas de segregação socioterritorial, renovando velhos e gerando novos conflitos socioeconômicos e socioterritoriais que vieram à tona no período imediatamente anterior à pandemia – e que foram agravados pela crise sanitária.
As políticas de produção habitação do Uruguai têm destacado, ao longo de quase um século, um processo ainda pouco explorado no Brasil: a ação das cooperativas habitacionais, que ao longo de mais de 50 anos têm efetivamente contribuído para oferecer condições de acesso à terra e à moradia para os mais pobres, assim como para o fortalecimento dos processos de mobilização social e coesão comunitária. Dois outros aspectos originais da experiência do Uruguai têm sido a articulação conceitual, jurídica e institucional entre a ordem urbanística e a ordem ambiental, bem como a maneira como a ordem jurídico-urbanística e ambiental do país tem sido diretamente relacionada com a ordem do Direito Internacional, incorporando os termos de tratados, convenções e cartas internacionais para enfrentar os desafios dos processos de mudança climática e aquecimento global.
Finalmente, o caso da Costa Rica destacou o compromisso histórico e bem sucedido do país de promover recuperação da cobertura vegetal, estimular a biodiversidade, reduzir emissões de gases, minimizar impactos dos desastres extremos e apostar na economia verde: o país está anos à frente do Brasil e demais países da região. A parceria entre o setor estatal e o setor comunitário na produção habitacional de interesse social ao longo de décadas tem sido fundamental, ainda que insuficiente, e há demandas de revisão das leis urbanísticas para permitir maior densidade de ocupação, maior integração das políticas territoriais com as políticas de transporte e mobilidade, bem como uma solução mais adequada para o planejamento metropolitano.
A relevância dessa série – que inclusive resultou em uma recém lançada publicação – foi o fato de que, infelizmente, desde 2016 o Brasil tem vivido um processo sistemático e crescente de desmonte da ordem jurídico-ambiental promissora, ainda que incipiente, que tinha sido construída no país ao longo de três décadas de mobilização sociopolítica e mudança institucional. Se no passado recente era o Brasil com seu premiado Estatuto da Cidade e suas experiências progressistas de gestão municipal que chamava a atenção dos colegas e observadores latino-americanos, agora cabe a nós brasileiros prestar muita atenção em uma série de processos promissores que têm acontecido nos outros países da região, especialmente de forma a incorporar os avanços possíveis quando o movimento cíclico voltar a nos favorecer.
Além disso, continuar contribuindo para ampliar e renovar a agenda de reflexão sobre a ordem jurídico-urbanística dos países latino-americanos é fundamental, aproximando ainda mais colegas admirados e queridos, bem como oferecendo informação crítica e propostas construtivas para todos aqueles comprometidos com os processos de reforma urbana, reforma jurídica e construção de cidades justas e saudáveis na região. Para muitos da minha geração, a integração da América Latina é um sonho comum, um projeto a construir. Um sonho utópico talvez, um projeto elusivo com certeza, mas especialmente em tempos de escuridão seguimos na luta renovada para sua realização, sem esquecer jamais que
“Lo que brilla con luz propia
Nadie lo puede apagar
Su brillo puede alcanzar
La oscuridad de otras cosas”
Edésio Fernandes é jurista, urbanista e membro da DPU Associates em Londres.