Discursos e práticas “salvacionistas” sobre as energias limpas reforçam racismo ambiental
Na resistência às injustiças climáticas, mulheres negras têm articulado estratégias de comunicação e luta pelo bem viver. Confira no artigo de abertura do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
No final de 2023, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) identificaram, pela primeira vez, características de clima árido no Brasil, mais especificamente no Norte da Bahia. De acordo com o estudo conjunto, o aquecimento global deve ampliar a aridez em quase todo o território nacional, com exceção da região Sul, onde se observa uma tendência de aumento das chuvas.
É fato que os câmbios climáticos em curso têm trazido severos impactos ao conjunto da população brasileira, mas os grupos em situação de maior vulnerabilidade são ainda mais afetados, revelando a urgência de políticas públicas mitigadoras.
“Os relatórios recentes do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, na sigla em inglês] sublinham que as comunidades menos responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa são as mais prejudicadas pelos impactos adversos das mudanças climáticas, evidenciando a necessidade de equidade na resposta global ao desafio climático”, alerta Soraya Tupinambá, pesquisadora e integrante da Terramar, organização cearense que compõe a Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
A afirmação de Soraya põe em xeque visões cristalizadas que responsabilizam igualmente territórios e populações pelas mudanças climáticas. “Os efeitos mais severos e devastadores da crise climática, como ondas de calor intensas, enchentes, secas, ciclones e perdas agrícolas, afetam de forma desproporcional os países e comunidades do Sul Global, especialmente as populações mais vulnerabilizadas, a exemplo das periferias urbanas, da população negra, dos povos e comunidades tradicionais e indígenas”, diz.
Porém, nem todos os países aceitam a existência de injustiças climáticas nesse processo de câmbios. É o que enfatiza Tâmara Terso, mulher negra, antirracista, ativista climática, associada ao Intervozes e colaboradora da rede Vozes Negras pelo Clima. “Esse entendimento ainda não existe, sobretudo para os países do Norte e os grandes produtores de petróleo”, acrescenta.
Outro grande desafio apontado pela ativista é a necessidade desse reconhecimento chegar ao sistema financeiro global. “Os acordos e as políticas vão depender do convencimento dessas nações que, por sua vez, vão depender de um convencimento também do setor financeiro global de que as finanças devem ser pensadas para a promoção da vida na Terra e não para sua destruição, como vem sendo hoje”, explica.
Racismo ambiental
Em países profundamente desiguais como o Brasil, as mudanças climáticas ampliam o espectro das iniquidades de gênero, raça, classe, território, geração, dentre outras. Isso é o que indicam estudos como o desenvolvido pela Associação de Pesquisa Iyaleta, intitulado Sumário estratégias para planos nacionais de adaptação: um caso Brasil (2023). A pesquisa também chama a atenção para a importância da intersecção das políticas de mitigação com direitos fundamentais, como acesso à saúde, à água e à moradia.
“Pensar justiça ambiental sem recorte de raça e gênero é pensar uma justiça para a elite burguesa, é marginalizar e invisibilizar a realidade”, frisa Simone Lourenço, pedagoga, educadora popular e membra da coordenação executiva do Fórum Suape Espaço Socioambiental.
Essa invisibilização apontada por Simone é reforçada pela dificuldade de acesso às tecnologias de informação e comunicação. Um direito fundamental na atualidade, é outro indicador de cidadania e de possibilidade de participação ativa atravessado pelas desigualdades estruturais. De acordo com a TIC Domícilios 2023, embora o acesso à internet no Brasil tenha aumentado, 58% da população só o faz pelo celular. Majoritariamente, esse grupo é composto por pessoas das classes C, D e E, sendo 64% negros/as.
A pesquisa demonstra que esse grupo não adota medidas de segurança digital (65%), não consegue duplicar documentos (68%), não usa uma planilha de cálculo (94%) ou qualquer linguagem de programação (98%). Também se trata de uma parcela mais vulnerável aos processos de desinformação: 63% das pessoas que usam exclusivamente o celular para acessar a internet não checam as informações que recebem.
Esses números apontam para uma dificuldade de uso e apropriação das ferramentas digitais por boa parte da população, sendo uma barreira, inclusive, para a produção e difusão de informação e comunicação qualificadas que promovam o combate à desinformação de temas urgentes, como as mudanças climáticas e seus impactos nos territórios.
A ativista e pesquisadora Tâmara Terso aponta ainda que não é possível falar sobre justiça socioambiental sem discutir racismo, especialmente, racismo ambiental. “As injustiças climáticas no Brasil e no mundo são envelopadas por uma intencionalidade de diferenciar as populações por seu caráter étnico, de gênero, de território e geracional. E essa diferenciação acontece sob o jugo da imposição de violações de direitos sobre essas populações”, acrescenta.
Soraya Tupinambá pontua que, além de serem as populações mais atingidas pelos impactos dos danos ambientais causados em nome de um suposto progresso, pessoas negras, indígenas, periféricas e outros grupos minorizados socialmente também são os que menos usufruem de possíveis benefícios. Como exemplo evidente desse processo, ela menciona a implantação de megaempreendimentos de energia eólica e solar no país, pautas que ficam de fora da cobertura jornalística na mídia hegemônica, ou mesmo são atravessadas pela desinformação.
“Por um lado, prejuízos e efeitos indesejáveis são direcionados aos povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, pequenos/as agricultores/as, mulheres e demais comunidades tradicionais, que têm o seu modo de vida, as relações culturais, espirituais e socioprodutivas desestruturadas e muitas vezes inviabilizadas. Por outro lado, as grandes empresas seguem aumentando as taxas de lucratividade e colhem os benefícios econômicos desses empreendimentos”, diz.

Energias limpas: um termo questionável nos discursos oficiais e midiáticos
De acordo com dados da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEOLICA), o Brasil ocupa o 6º lugar no ranking de capacidade instalada de energia eólica no mundo, com 1.016 parques eólicos instalados e 10.941 aerogeradores em operação, com uma concentração de quase 90% no Nordeste. Bahia, Rio Grande do Norte, Piauí e Ceará são os líderes nacionais em produção de energia eólica.
Se a justificativa para essa expansão é o discurso de geração de emprego, renda e desenvolvimento, o que os dados escondem são os impactos causados pelos megaempreendimentos. Um discurso muito reforçado pela cobertura do tema realizada pelo jornalismo das grandes empresas de comunicação.
Entre os impactos ambientais, a pesquisadora Soraya Tupinambá destaca: alteração da paisagem, degradação do ambiente, redução da disponibilidade de água, perturbação da fauna, erosão do solo, alterações no ecossistema, desmatamento e fragmentação. Já os impactos sociais incluem perda de território, mudanças na disponibilidade de bens comuns, afetação das relações nas comunidades locais, impacto das estradas sobre moradia, problemas de saúde humana, conflitos pela terra e contratos de arrendamento injustos, mudanças na economia local, migração populacional, afetações a partir do desenvolvimento de infraestruturas, empregabilidade e o fenômeno do abandono parental – os chamados “filhos do vento”.
Diante disso, Maryellen Crisóstomo, jornalista e ativista quilombola do Tocantins, ressalta que é urgente que as populações mais atingidas pelas mudanças climáticas – e pelas soluções apresentadas para o combate a elas – façam parte das mesas de negociações nos espaços decisórios. “Pelo que se tem desenhado na discussão climática, adaptação e mitigação não são para as populações estruturalmente marginalizadas. Para essas está previsto perdas e danos e sofrimento. Porque o debate não está racializado”, acrescenta.
Não está racializado, como denuncia Maryellen, nem é pautado na mídia de forma crítica. Essa é uma das conclusões da pesquisa “Energias Limpas: o que a mídia silencia”, realizada pelo Intervozes, que analisou 566 matérias sobre os empreendimentos das chamadas energias limpas, publicadas entre os anos de 2021 e 2023 nos seguintes veículos de abrangência nacional e local: Agência Brasil, Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Meio Norte (PI), Diário do Nordeste (CE), Tribuna do Norte (RN), Jornal da Paraíba (PB), Jornal do Commercio (PE) e A Tarde (BA).
A pesquisa aponta que a cobertura analisada privilegia o discurso hegemônico e salvacionista de que a transição energética, em especial praticada pelos empreendimentos das eólicas e das fazendas solares, é o principal meio de mitigar o aquecimento global. Mais de 80% das matérias são consideradas favoráveis a esses negócios verdes, porém menos de 5% das fontes ouvidas são as comunidades diretamente afetadas.
Outro dado importante tem a ver com a presença, no discurso jornalístico, do termo “energia limpa” como sinônimo do produto gerado pelos empreendimentos eólicos e fotovoltaicos. Se existe centralização das coberturas nas vozes dos governos e empresas, se mais das metade das matérias se situam nas editorias de economia e negócios, se em aproxidamente 90% dos conteúdos não são pautados (ou mencionados) os impactos socioambientais gerados, é possível deduzir que há um enviezamento ideológico pró-mercado verde e que o uso do adjetivo “limpo” é questionável.
Sem que a multiplicidade de vozes tenha espaço, o jornalismo tradicional superficializa o debate e não responde a quem beneficiará a implantação dos empreendimentos, nem aborda as consequências da sua forma de operação na natureza e nas populações, colaborando com as estruturas simbólicas que sustentam as práticas de racismo ambiental e injustiças climáticas, as quais têm sido denunciadas pelas populações afetadas e pelos movimentos sociais.
É possível encontrar um denominador comum entre os interesses das empresas e das comunidades?
As populações afetadas pelos empreendimentos eólicos e fotovoltaicos no Nordeste fizeram no ano passado visitas à Brasília e ações de denúncia pública contra o modelo de transição energética que o Brasil está adotando. A partir da pressão dos movimentos sociais e das comunidades atingidas, a Secretaria-Geral da Presidência da República instituiu, em setembro de 2023, a Mesa de Diálogos “Energia Renovável: direitos e impactos”, que conta com representações de diversos ministérios e da sociedade civil.
De acordo com a assessoria da Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas, por meio de nota, a Mesa busca articular também outros atores sociais e governos estaduais para mediar diálogos e mitigar os impactos dos empreendimentos nos territórios. Foram realizadas escutas e visitas na Paraíba e Pernambuco. As próximas ações devem acontecer, segundo a assessoria, nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Bahia.
“Todas as atividades previstas têm o objetivo de subsidiar o governo federal na busca por ajustes e adequações de regulamentações ou de outros atos normativos que possam incidir na implementação dos empreendimentos de energias renováveis”, informou a assessoria da Secretaria Nacional.
A abertura de canais de diálogo é avaliada por Soraya Tupinambá como uma diferença do governo Lula em relação ao anterior, mas ela alerta para a necessidade da realização de transformações reais a partir das escutas das comunidades. “Esperamos do governo federal e do setor empresarial mudanças concretas em direção à sustentabilidade e à adoção efetiva das soluções acordadas, com resultados em marcos cronológicos muito significativos para a sociedade civil brasileira, o encontro do G20 em novembro de 2024 e a COP 30 em Belém em 2025”, assinala.

Poder falar, poder decidir
Dentre os espaços decisórios internacionais sobre mudanças climáticas, alguns dos mais importantes são as Conferências das Partes sobre Mudanças Climáticas, as COPs. A última delas, a COP28, foi realizada em dezembro de 2023, em Dubai, nos Emirados Árabes.
Numa iniciativa inédita, uma rede composta por onze mulheres negras brasileiras, representantes de diversos biomas atingidos pelos câmbios climáticos, esteve presente no espaço que reuniu líderes mundiais na discussão sobre o clima. A Rede Vozes Negras pelo Clima, organizada pela Anistia Internacional, conta com lideranças como Simone Lourenço e Maryellen Crisóstomo, e também com a colaboração de Tâmara Terso.
“Quando a Vozes Negras pelo Clima chega à COP28, a proposta é garantir e apresentar a diversidade de vozes, a participação”, explica Maryellen. Ela acrescenta, no entanto, que, embora essa presença tenha sido muito importante, estar de fora dos espaços decisórios ainda é uma grande barreira.
“As formas de influenciar são fechadas apenas para diplomatas. E, por sua vez, as diplomacias têm dificuldade de construir uma política de diálogo efetiva com as populações”, acrescenta Tâmara Terso.
Simone Lourenço acredita que a COP ainda é focada nos pactos e acordos para manutenção da lógica capitalista, o que dificulta a atuação de coletivos populares. “A experiência da COP foi importante porque furamos a bolha. Mas, ao mesmo tempo, nos frustramos em perceber o quanto esse espaço não nos representa e como os interesses estão focados no capital”, pondera.
Maryellen e Simone apontam ainda que essas críticas à COP feitas pelas organizações e movimentos populares não encontram espaço na mídia hegemônica. Para Simone, essa mídia não tem interesse político em dar visibilidade àquilo que a coloca em indisposição com quem a financia. Concordando com ela, Maryellen defende que essas críticas estão presentes apenas nas mídias contra-hegemônicas ou segmentadas.
“Os contrapontos da COP você vê na mídia segmentada, independente, que, ainda bem, consegue acessar o espaço. Não creio que devemos esperar uma mudança no foco da cobertura da mídia empresarial, porque quem faz lobby na COP, faz na mídia, e dificilmente conseguiremos derrotar isso. Nosso meio de informação é a mídia segmentada, ponto”, acredita Maryellen.
Mesmo diante desses desafios, as três ativistas acreditam que a participação da Rede Vozes Negras pelo Clima na COP contribui para que as vozes das populações diretamente atingidas estejam nesses espaços, não apenas denunciando o racismo ambiental, mas, sobretudo, apontando soluções para a crise climática.
Alfredo Portugal é comunicador e educador popular, jornalista, doutorando em Educação pela UFBA e mestre em Educação do Campo pela UFRB; e Nataly de Queiroz Lima é jornalista, doutora em Comunicação pela UFPE e professora universitária. Ambos são integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.