Dívida ativa dos estados brasileiros: uma análise crítica
Por que a dívida ativa tem crescido de maneira exorbitante? O que tem dificultado ou mesmo impedido os estados de receberem seus créditos?
Os recursos públicos são essenciais para garantir à sociedade condições dignas de vida e de sobrevivência, sobretudo em conjunturas de crise e mais ainda ao haver uma pandemia. Esses recursos vêm principalmente dos tributos que as pessoas físicas e jurídicas devem pagar aos estados, constituindo o fundo público. O processo de construção dos estados e mesmo o desenvolvimento do capitalismo é estreitamente ligado ao recolhimento desses recursos.
Desde a antiguidade clássica até a Revolução Francesa, o não recolhimento do tributo implicava em severas sanções pelo soberano ou pela igreja, incluindo a prisão, a tomada do patrimônio e a não bênção de Deus. Entretanto, é possível perceber que a capacidade do soberano ou, em termos contemporâneos, do setor público de cobrar e isentar tributos, depende da correlação de força que governa a economia e a política de cada unidade territorial, seja ela um país, estado ou município.
Desse modo, a estrutura tributária de um país, seja ela regressiva ou progressiva, é resultado do conflito distributivo entre frações de classe dentro e fora das instituições estatais. As pessoas jurídicas, principalmente as empresas que têm o lucro como principal finalidade, encontram diversas formas de driblar o pagamento do tributo e, com isso, garantem os interesses privados em detrimento dos públicos. No Brasil, particularmente nos estados e Distrito Federal, uma das formas de medir as consequências dessas ações, o não recolhimento do tributo, é pelo estoque de dívida ativa.[1]
Os estoques desses créditos têm sido crescentes nos estados brasileiros, representando uma maior dificuldade do setor público de fazer essas cobranças. Chama a atenção o expressivo aumento da dívida ativa no Balanço Patrimonial dos estados brasileiros, passando de R$ 682,2 bilhões, em 2015, para R$ 896,2 bilhões, em 2019, totalizando 13,2% do PIB. Ainda no período de 2015 a 2019, o estoque da dívida ativa dos estados teve elevação de 31,4%. Se considerarmos também o estoque da dívida ativa não tributária, temos uma elevação, no mesmo período, ainda maior, de R$ 537,9 bilhões para R$ 931,8 bilhões, crescimento de 73,22%. Destaca-se o crescimento exponencial do estoque da dívida do Amapá (817,1%), Pará (142,1%), Mato Grosso (121,3%), Alagoas (107,6%), Mato Grosso do Sul (107,5%), Rio de Janeiro (96,1%), Espírito Santo (89,8%) e Maranhão (78,7%) em igual período. Diante disso surge o seguinte questionamento: por que a dívida ativa tem crescido de maneira exorbitante? O que tem dificultado ou mesmo impedido os estados de receberem seus créditos? Essas são algumas das perguntas que conduziram o projeto de pesquisa do “Atlas da dívida ativa dos estados e Distrito Federal”, da Fenafisco.
Na relação do PIB estadual com a dívida ativa dos estados, os dados são ainda mais alarmantes. Por exemplo; no Mato Grosso o estoque de dívida ativa chega a representar 33,24% do PIB estadual, enquanto esta relação alcança 22,27% em Goiás, 18,64% em Sergipe, 18,13% em Rondônia, 17,55% em São Paulo, 15,67% no Espírito Santo e 13,77% no Rio de Janeiro. São os estados em que a proporção atinge o maior nível. Ao analisar o somatório dos estoques de 2019 de todos os estados, São Paulo sozinho foi responsável por 35,69% do estoque da dívida ativa estadual, seguido por Rio de Janeiro (12,49%), Minas Gerais (7,79%), Mato Grosso (5,59%), Goiás (5,18%) e Rio Grande do Sul (5,11%), totalizando R$ 643,8 bilhões.
Destarte a isso, em catorze estados da federação a dívida ativa supera a arrecadação própria de impostos (ICMS, IPVA e ITCMD, Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação). Com destaque para o Distrito Federal e Rio de Janeiro, em que o estoque acumulado equivale a mais de 200% da arrecadação de impostos, e Mato Grosso, que está em quase 300%. Dos 26 estados mais o Distrito Federal, apenas três têm uma dívida ativa que representa menos de 50% da arrecadação. A existência da dívida ativa não é um mal em si mesmo. O problema efetivamente existe quando os estoques se acumulam e a capacidade do poder público em recuperar os créditos é morosa e limitada. Com isso, passam a comprometer a capacidade orçamentário-financeira dos estados de cumprirem as suas competências constitucionais.
A finalidade desse projeto de pesquisa foi, portanto, elaborar um “Atlas da Dívida Ativa” na qual foi possível identificar os maiores devedores em cada estado, assim como as empresas que possuem valores representativos no montante total e chegam a acumular débitos em mais de um estado, as quais chamamos de “Barões da Dívida”,[2] lançado no Fórum Internacional Tributário (FIT), realizado no estado de São Paulo, entre os dias 20 e 22 de outubro de 2021. Fortunas estão sendo constituídas e multiplicadas por poucas e grandes empresas com o não recolhimento do tributo, isto é, do dinheiro público. Dessa forma, o trabalho da Fenafisco faz uma analogia aos poucos e grandes devedores do fisco como os “Barões da Dívida”, uma designação aplicável de modo geral aos capitalistas contemporâneos, aos grandes devedores do fisco estadual.
O “Atlas” visa apresentar as listas das mil maiores empresas devedoras de dívida ativa em cada Unidade da Federação (UF). Todavia, no levantamento dos dados, realizada nas páginas virtuais das UFs e com a ajuda da Fenafisco, não foi possível encontrar informações de todas as UFs. Dos 26 estados mais o Distrito Federal, são apresentadas as listas de maiores devedores de 17 delas (BA, ES, GO, MA, MS, MG, PA, PE, PB, RJ, RN, RS, RO, SC, SP, SE, TO). Dessas UFs, seis apresentam os dados integralmente em suas páginas virtuais (BA, PA, RJ, RS, RO, SC) e nove enviaram as listas após solicitação da Fenafisco (ES, GO, MA, MS, MG, PE, PB, RN, TO).
O trabalho de cunho exploratório utilizou de pesquisa documental, bibliográfica e estatística, tendo como principais fontes os documentos, trabalhos e bases estatísticas da Fenafisco, Tribunal de Contas dos Estados (TCE), Procuradoria Geral dos Estados (PGE), Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e Secretarias da Fazenda dos Estados (Sefaz). Para tanto, os dados manejados na pesquisa resultam da integração de diferentes bases de informação organizados ao nível estadual, com o objetivo de expressar, através de variáveis quantitativas e qualitativas, a dívida ativa estadual e sua evolução.
No trabalho, também foi levantada a seguinte problemática: os sucessivos Programas de Refinanciamento fiscal (Refis), assim como as operações de securitização de dívida ativa não são os melhores instrumentos para a recuperação de créditos tributários de contribuintes inadimplentes e, principalmente, de devedores contumazes. A taxa de recuperação dos créditos fiscais dos estados brasileiros, com dados de 2017, foi de apenas 0,61%, representando R$ 5,1 bilhões de um estoque anual de R$ 841,7 bilhões. Enquanto as famílias se endividam de modo imperativo por possuírem renda insuficiente para suprir suas necessidades básicas, as empresas se endividam muitas vezes por opção, visando o lucro e retirando dos governos grande parte dos recursos que deveriam constituir o fundo público e serem usados para as políticas públicas.
À primeira vista, o recebimento dos débitos tributários atrasados, através de parcelamentos dos Refis, representava a oportunidade de o governo aumentar suas receitas e diminuir as dívidas tributárias. No entanto, precisamos olhar o “avesso do tributo”. Em outras palavras, não é o Refis que contribui para a recuperação fiscal, e sim é o Refis que contribui para o crescimento dos estoques fiscais. Ainda que os devedores consigam fazer planejamento tributário, não se pode perder de vista que o orçamento estatal é a garantia fundamental para que o estado possa assegurar minimamente a seguridade social e os investimentos públicos em obras e ações estruturantes.
No período de 2015 a 2019, o estoque da dívida ativa dos estados teve elevação de 31,4%, alcançando o montante de R$ 896,2 bilhões. Considerando a soma da dívida ativa da União, dos estados e do Distrito Federal, temos o montante de R$ 3,3 trilhões. Em 2019, a participação conjunta da dívida ativa da União e dos estados e Distrito Federal representou 44,59% do PIB do país, de R$ 7,4 trilhões. Acrescentando a dívida ativa dos municípios, chega a quase 50% do PIB nacional. Essa foi uma problemática que norteou o projeto de pesquisa da Fenafisco.
Na análise da pesquisa, esteve presente a discussão acerca de como as relações sociais de poder são fundamentais para compreender os crescentes aumentos nos estoques de dívida ativa dos estados assim como a concentração de porcentagens expressivas desses estoques em poucas e grandes empresas. Com a dívida ativa, riqueza pública que se respalda nas receitas estatais não recebíveis, o sistema tributário brasileiro se converteu num regime especial de tributação que favorece devedores contumazes de tributos.
Se por um lado é possível perceber, por exemplo, a morosidade do processo de inscrição e de cobranças dessas dívidas (a Justiça Estadual leva em média sete anos e dez meses para baixar um processo de execução fiscal),[3] por outro, desenvolvem-se estratégias em escritórios de advocacia especializados em direito tributário para reduzir, postergar ou não pagar os impostos devidos. Por isso é necessário entender que a formação, evolução e morosidade na cobrança da dívida ativa são determinadas por relações sociais de poder, dentro e fora das instituições estatais.
Quanto maior a empresa, mais recursos ela possui para encontrar brechas na legislação e para contatar um setor especializado na análise e contestação de pagamento de tributos. Ainda nesse ponto, o crescimento da dívida ativa não tem desempenho importante para a demanda agregada. Assim, por um lado, o crescimento da dívida ativa dos estados ampliou o grau de exploração privada do fundo público das economias estaduais. Por outro, gerou acumulação e valorização sem que isso signifique uma ampliação qualitativa da produção e da circulação de mercadorias pelo interior do Brasil. Em grande medida, o crescimento da dívida foi puxado pela grande empresa voltada para o atendimento do mercado nacional e mundial.
Muitos economistas, advogados e demais especialistas manifestam preocupação com a dívida pública nacional, ainda mais em tempos de crise sanitária e econômica. Quando se trata da expansão do serviço da dívida pública e dos mecanismos de controle de sua sustentabilidade intertemporal, que envolvem acordos com o FMI e reformas econômicas, impõe-se ao administrador público o dever de motivar alterações no financiamento (juros, longevidade, perfil do indexador etc.) e limitar as despesas (especialmente por meio do contingenciamento de empenhos). Porém, o que dizer da dívida ativa nacional e estadual? Essa é uma questão que também permeia o estudo.
Ocorre que o impacto da dívida ativa tributária e não tributária, num contexto de pressão por aumento de gastos públicos em ações sociais e programas de investimentos, engendrados pelo ciclo depressivo que alimenta a crise fiscal e financeira dos estados e do país, amplia as contradições entre capital e trabalho. Padrões mínimos de gastos públicos não podem ser programados para padrões ínfimos que prejudiquem a qualidade da educação, descumprindo as obrigações legais contidas no Plano Nacional de Educação, e os serviços de saúde pública.
À luz do que foi apresentado, percebe-se o quanto a dívida ativa estadual vem comprometendo a capacidade dos governos estaduais em estabelecer políticas públicas de desenvolvimento econômico, regional e social com respeito ao meio ambiente. Para tanto, considerando a atual situação econômica, no contexto da pandemia e do alto potencial de impacto financeiro para os cofres públicos dos créditos inscritos em dívida ativa, é importante que as Administrações Tributárias de cada estado aperfeiçoem a estrutura, a gestão e a governança das instituições para identificar possíveis fragilidades internas e externas que impactem na ineficiência dessa cobrança.
Juliano Giassi Goularti é doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp.
Talita Alves de Messias é bacharela em Economia (Unesc), mestra em Economia Política Internacional (UFRJ) e doutoranda em História (Unisinos).
Este artigo integra um projeto de pesquisa da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco).
[1] A dívida ativa somente é regularmente inscrita pelo estado depois de esgotado o prazo para pagamento fixado na lei ou por decisão final proferida em processo regular na área administrativa. Esses estoques caracterizam recursos públicos que estão em poder da iniciativa privada pelo não pagamento de obrigações legais. É uma fonte de receita que deveria ser destinada à transformação em política pública.
[2] No site https://baroesdadivida.org.br/ estão inseridas todas as empresas que possuem registro de dívida acima de R$ 1 bilhão nas unidades federativas pesquisadas.
[3] Os governos estaduais deixam de recuperar milhões ou até mesmo bilhões de reais em dívidas tributárias todos os anos em razão da lentidão e ineficácia da Justiça na cobrança de ações de execução fiscal.