Do mal precisa ser queimada a semente
Não por acaso, diz Milan Kundera que “para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história”. Para os que cultuam o inculto, restam os estilhaços da história sem culpa embalados por atordoantes cantigas que sequestram nosso hino nacional em amostras covardes de um falso patriotismo piegas
Meu avô foi um daqueles diversos homens e mulheres que construíram Brasília. Saído do sertão de Pernambuco, sua ideia era alimentar a família, mas suas fotos, seja na pedra fundamental do Hotel Nacional ou em um acampamento improvisado no que viria a ser o plano piloto, mostram um orgulho inequívoco de fazer parte da história nacional.
O sonho e orgulho de JK, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e dos anônimos que jazem nas paredes, no concreto, no silêncio imperturbável de uma capital milimetricamente programada foi abalado pela insensatez fanática de uma ceita que teima contra a democracia há meses.
O comportamento “jonestowniano” da turba ensandecida cujos cérebros foram fragmentados por notícias falsas, desinformação e um lunatismo, ora pitoresco, ora perigoso, ficou evidente. Sobraram facadas para Di Cavalcanti, os cacos para Bruno Giorgi, a destruição para Rui Barbosa, a pichação para Athos Bulcão e a vergonha estilhaçada para diversos presentes internacionais obtidos ao longo dos anos um número incerto de obras de arte.
O primeiro exemplar da Constituição de 1988 foi decepado aos gritos daqueles que sequer sabem interpretar seus princípios mais básicos. Nada mais vulgar de se assistir do que aqueles que clamaram nos últimos quatro anos por ignorância recebendo-a em estado mais puro.

Não por acaso, diz Milan Kundera que “para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história”. Para os que cultuam o inculto, restam os estilhaços da história sem culpa embalados por atordoantes cantigas que sequestram nosso hino nacional em amostras covardes de um falso patriotismo piegas.
As instituições precisam reagir fortemente. Que se busquem os culpados e que os terroristas sintam o rigor da lei que teimam em negar. Resumindo, em uma lição de Karl Popper, é preciso parar de tolerar os intolerantes, e isso vale para o Ministro da Defesa do atual governo, para os governadores e prefeitos e, principalmente, para o ex-presidente fugitivo e sua gangue “pseudopatriota”.
Precisamos reconstruir nossas memórias, recolher os cacos, contabilizar o que restou, remendar nossa democracia, punir exemplarmente e seguir, mas nunca esquecer. Que fique claro: a destruição vai ser reconstruída, mas os pedaços devem ser expostos em todos os museus desse país para que as futuras gerações não sejam apoderadas por qualquer ridículo tirano.
O Brasil precisa confrontar sua ditadura militar, dessa vez com coragem e sem anistiar a memória dos torturadores, sem esconder os esquemas de corrupção e a incompetência das forças armadas. É preciso punir aqueles que exaltam o período de trevas da nossa história, a exemplo do que faz a lei alemã ao tratar do nazismo. Em memória dos que se foram, mas principalmente em atenção aos que virão.
Por fim, distante da advogada eleitoralista ou da mestranda em Ciência Política, aqui termina o texto a cidadã brasileira com lágrimas nos olhos por tudo que foi perdido no domingo, seja pela nossa história, memória, arte, cultura, mas também pelas famílias daqueles que foram cooptados e zumbificados pelo bolsonarismo. Fico com a certeza, porém, de que “o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações… do mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente” (Nelson Cavaquinho/Élcio Soares).
Luísa Leite é advogada eleitoralista e mestranda em Ciência Política (UFPE). Pós-Graduada em Direito Público pela ESMAPE e em Eleitoral pelo TRE de Pernambuco.