Doenças graves e tratamentos superestimados por médicos e pacientes
Pacientes com câncer avançado têm sido geralmente descritos como superestimando a probabilidade de sua sobrevivência a longo prazo e têm muitas vezes acreditado que o propósito das opções de tratamento oferecidas é curá-los
Pacientes com câncer avançado que estão em quimioterapia paliativa não têm prognóstico de cura – e nem de sobrevida longa na imensa maioria dos casos.

Isso não significa que algumas pessoas não viverão cinco, dez ou até mais anos, a despeito de suas doenças avançadas. Pessoas com as mesmas doenças viverão tempos diferentes, com e sem tratamento, e nem sempre será possível estabelecer a relação de causalidade entre uma coisa e outra.
Quando se fala em resultados de estudos sobre medicamentos e outras tecnologias em saúde, muitas pessoas confundem o que eles querem dizer. É comum que se acredite que, diante de um problema grave de saúde, há apenas duas opções: tratar ou morrer.
No entanto, muitas vezes não há tratamento efetivo e, mesmo assim, isso não significa morrer, ao menos não imediatamente ou em curto prazo.
Quando falamos que determinado medicamento pode dar uma sobrevida global de três meses a um paciente, por exemplo, ele não vive três meses se iniciar o tratamento ou morre se não iniciar. Ele vive, possivelmente, a depender da resposta ao tratamento, três meses além do que viveria sem ele.
Em 2003, os pesquisadores Elisa Gordon e Christopher Daugherty publicaram um artigo de nome bem provocativo: Hitting you over the head,[1] algo como “te acertando na cabeça”. No texto, os autores destacavam que, “até o momento, vários estudos que tentaram examinar as próprias perspectivas dos pacientes com câncer avançado sobre seus prognósticos descobriram que eles têm uma compreensão inadequadamente mensurada de sua probabilidade de sobrevivência. Pacientes com câncer avançado têm sido geralmente descritos como superestimando a probabilidade de sua sobrevivência a longo prazo e têm muitas vezes acreditado que o propósito das opções de tratamento oferecidas é curá-los”.
Você poderia pensar: mas 2003 está longe, é passado. As coisas devem ter mudado muito de lá para cá.
Infelizmente não.
A afirmação que os pesquisadores faziam quase vinte anos atrás, no sentido de que as opções de tratamento para os pacientes com câncer metastático são, geralmente, limitadas e têm, quando muito, potencial para benefícios terapêuticos apenas marginais (aumento de sobrevida geralmente inferior a três meses), não se alterou de forma significativa.[2]
Isso não quer dizer que ser diagnosticado com câncer é uma sentença de morte. Para começar, o que chamamos de câncer não é uma doença. Mais de cem doenças diferentes possuem em comum a característica fundamental do crescimento anormal das células, o que as faz pertencer a esse grande guarda-chuva chamado câncer. E, dentre essas muitas doenças, existem muitas com bom prognóstico, especialmente quando precocemente diagnosticadas.
Contudo, infelizmente, essa não é a realidade para a significativa maioria dos pacientes que descobrem cânceres metastáticos.
E os pacientes não sabem disso. A sociedade não sabe disso.
Um dos principais estudos sobre esse desconhecimento foi publicado em 2011. A finalidade da pesquisa era compreender as percepções dos pacientes acerca do prognóstico e dos objetivos do tratamento nos casos de pacientes metastáticos com câncer de pulmão de não pequenas células. Apesar do diagnóstico de câncer terminal, um terço dos pacientes participantes do estudo afirmou, em seu início, que seu câncer era curável e a maioria – mesmo quando reconhecia que o câncer não era curável – afirmou que o objetivo do tratamento era “livrar-se do câncer”.[3]
O estudo demonstrou que essa visão equivocada da maior parte dos pacientes os conduz a escolhas inadequadas. Se eu acho que serei curado, é provável que use meu tempo para me tratar, no lugar de fazer outras coisas que eu faria se soubesse que ele está acabando mais cedo ou um pouco mais tarde. Eu abro mão de parte do meu presente pelo futuro que imagino ter.
No entanto, se eu sei que não tenho essa perspectiva de futuro, há grandes chances de que eu só faça o mesmo tratamento se ele não ocupar muitas horas dos meus dias, se ele não me deixar enjoada, com mal-estar, se ele não me privar de coisas que eu gostaria de fazer antes de partir. Se, no fim das contas, ele não fizer com que eu me lembre o tempo todo da minha doença; com que eu me torne a minha doença.
No meu doutorado, eu conversei com quase cinquenta pacientes, brasileiros e alemães.[4] A maior parte deles estava iludida sobre o seu prognóstico. Por mais que soubessem estar acometidos por uma doença agressiva, cujo nome a maior parte ainda tinha dificuldade de reproduzir, o fato de que ainda estavam – ou tinham a expectativa de estar[5] – em tratamento os impedia de compreender que isso não alterava o fato de que seus cânceres muito provavelmente evoluiriam, com ou sem quimioterapia, para um desfecho fatal.
Especialmente para aqueles pacientes que se encontravam clinicamente bem – a maior parte deles, tanto na Alemanha, quanto no Brasil –, a morte não se apresentava como algo próximo ou possível. Eles se viam como as demais pessoas em termos de longevidade, só que dependiam de um tratamento médico.
A doença parecia algo contornável.
Recentemente, li o texto de um paciente com câncer, publicado no The Guardian. Embora já tenha lido muitos relatos semelhantes, a sinceridade de Elliot Dallen, de 31 anos – e que morreria pouco tempo depois de escrever essas palavras – comoveu-me de uma forma diferente.
Narrando como era a experiência de ser um paciente com uma doença terminal durante a pandemia, Elliot contou que iniciou um tratamento experimental para impedir que o câncer roubasse todos os nutrientes e a energia de que seu corpo precisava.
Ele disse que seus dias se resumiam a sair do quarto para a sala, sentindo como se estivesse gripado e com confusão mental:
“Quase imediatamente eu percebi que eu simplesmente não podia fazer isso. A vida para mim é sobre viver, não apenas contar os anos. E essa droga tornou viver quase impossível. Eu entendi que precisava aceitar o inevitável: que não havia mais tratamento. Eu pensei que essa compreensão me faria sentir completamente livre. Eu estava errado. Sem nada mais pelo que lutar, era realmente uma questão de esperar. A batalha se tornou emocional e mental. Isso me forçou a refletir.”[6]
O que Elliot estava dizendo é que o tratamento poderia até impedi-lo de morrer mais rápido. Mas que também poderia fazer com que não vivesse ou vivesse de uma forma pior até que a morte chegasse.
Abrir mão do presente pela expectativa de futuro é algo naturalmente aceitável para muitos de nós. Porém, abrir mão do presente por um futuro que só existe na ilusão pode representar, na verdade, abrir mão do fim da vida – que será vida até o fim – e de todas as possibilidades que cada dia pode trazer.
Cynthia Araújo é escritora, advogada e pesquisadora. Nasceu em Petrópolis (RJ), em 1984, e mora em Belo Horizonte desde 1997. Formada em direito pela UFMG, ela se tornou membro da Advocacia-Geral da União dois anos depois de se formar. Mestre e doutora pela PUC-Minas, com doutorado-sanduíche na Universidade de Vechta (Alemanha), sua tese, “Existe direito à esperança? Saúde no contexto do câncer e fim de vida”, foi indicada pelo programa de pós-graduação da PUC-Minas ao prêmio Capes de Teses 2020. Em 2021, foi convidada para expor sua pesquisa no 9º Simpósio Internacional Oncoclínicas e Dana Farber Cancer Institute. É autora do livro A vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta, lançado recentemente pela editora Paraquedas.
[1] GORDON, Elisa J.; DAUGHERTY, Christopher K. ‘Hitting You Over the Head’: Oncologists’ Disclosure of Prognosis to Advanced Cancer Patients. Bioethics, v. 17, n. 2, p. 142-168, 2003, p. 145, tradução livre.
[2] Cito algumas referências que me permitem fazer essa afirmação: 1) WISE, Peter H. Cancer drugs, survival, and ethics. BMJ; v. 355, p. 1-4, 9 nov. 2016; 2) DAVIS, Courtney et al. Availability of evidence of benefits on overall survival and quality of life of cancer drugs approved by European Medicines Agency: retrospective cohort study of drug approvals 2009-13. BMJ, v. 359, 18 set. 2017; PRASAD, Vinay. Do Cancer Drugs Improve Survival or Quality of Life? BMJ, v. 359, 4 out. 2017.
[3] TEMEL, Jennifer S. et al. Longitudinal Perceptions of Prognosis and Goals of Therapy in Patients With Metastatic Non–Small-Cell Lung Cancer: Results of a Randomized Study of Early Palliative Care. Journal of Clinical Oncology, v. 29, n. 17, p. 2319-2326, 10 jun. 2011.
[4] ARAÚJO, Cynthia P.; GARCIA, Ana Cláudia M.; JÚNIOR, Munir M. “The Expectations of Metastatic Cancer Patients Regarding Palliative Chemotherapy: A Brazilian-GermanQualitative Study”. Palliative and Supportive Care, Universidade de Cambridge. Disponível em: https://doi.org/10.1017/S1478951522001766. Em 2023, Cynthia publicou o livro, também baseado em sua pesquisa de doutorado, Palliative Treatment For Advanced Cancer Patients: Can Hope Be a Right?, pela editora Springer Nature.
[5] Todos os pacientes com quem conversei nos dois hospitais brasileiros e no hospital alemão estavam em tratamento. No entanto, em Hamburgo, também conversei com pacientes em casa. Embora se tratasse de pacientes aparentemente em cuidados paliativos exclusivos, alguns deles ainda acreditavam poder iniciar tratamento quimioterápico. Uma das pacientes me disse expressamente que esperava retomar a quimioterapia – embora estivesse na fase final da doença, acamada e muito debilitada – e outra disse que tinha acabado de receber o diagnóstico e aguardava as orientações sobre o início do seu tratamento. Acho interessante registrar que dois dos pacientes com quem conversei em casa moravam sozinhos e tinham plena autonomia.
[6] Traduzi o texto para o perfil no Facebook @mortesemtabu. O original foi publicado em inglês no jornal The Guardian em 7 de setembro de 2020 e está disponível em https://amp-theguardian-com.cdn.ampproject.org/c/s/amp.theguardian.com/commentisfree/2020/sep/07/terminal-cancer-live-cancer-life-death, acesso em 7 de setembro de 2021.