Dos militares para a Irmandade
No Egito, o presidente Mohamed Morsi conseguiu marginalizar o Exército, que ainda mantinha os amplos poderes de que gozava durante o governo Hosni Mubarak. Contudo, ele ainda precisa enfrentar outras oposições e a rejeição suscitada pela Irmandade Muçulmana em uma parte da sociedadeAlain Gresh
(Presidente Mohamed Morsi empossa o novo ministro da Defesa Abdel Fatah Sissi, em 12 de agosto )
“Domingo, 12 de agosto de 2012, às 10 horas da manhã, os dois membros-chave do Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA), Hussein Tantaui, ministro da Defesa, e Sami Annan, chefe do Estado-Maior, foram convocados para o palácio presidencial. Confinados em uma sala ‘de segurança’, eles não podiam nem mesmo usar o celular. Enquanto esperavam, o presidente Mohamed Morsi, em uma sala adjacente, dava posse ao novo ministro da Defesa, o general Abdel Fatah Sissi. Poucas horas antes, o Diário Oficial publicara um decreto anulando a declaração constitucional adicional adotada entre os dois turnos da eleição presidencial pelo CSFA, que se outorgava mais poderes a fim de se colocar ‘ao abrigo’ de uma vitória de Morsi. Em seguida, o presidente foi até os dois generais e anunciou que eles tinham sido demitidos. O estupor deles rivalizava com sua impotência.”
Narrada por um parente do presidente, a cena marca o fim da situação de dualidade de poder vigente no Cairo desde que Morsi tomou posse, em 30 de junho de 2012. Todo mundo estava convencido: um equilíbrio tão instável só poderia acabar por se quebrar. “A imprensa nacional publicava as declarações de Tantaui em seis colunas, e as do presidente em duas”, cita indignado Abdel Moneim Abul Fotuh, candidato derrotado na eleição presidencial. “Antes de concordar em formar o governo, Hicham Kandil [o primeiro-ministro] já havia solicitado previamente a aprovação dos militares!”
Um tigre de papel
“No fim das contas, o CSFA não passava de um tigre de papel.” A velha fórmula maoísta agora está florescendo nas ruas do Cairo. No entanto, algumas semanas antes, ninguém imaginava Morsi colocando as mãos em uma instituição que dominava o Egito desde a derrubada do rei Faruk I pelos “oficiais livres”, em 23 de julho de 1952, e que regia a vida política desde a saída do presidente Hosni Mubarak, em 14 de fevereiro de 2011.
No primeiro turno da eleição presidencial, realizada em 23 e 24 de maio, Hamdin Sabbahi, de tendência nasserista, Abul Fotuh, dissidente da Irmandade Muçulmana, e alguns outros candidatos de esquerda que tinham participado ativamente da revolução de 25 de janeiro de 2011 haviam obtido 40% dos votos. Mas suas divisões haviam deixado isolados na corrida para o segundo turno o general Ahmed Shafik (23,6%), representante do antigo regime, e Morsi (24,8%), representante da Irmandade Muçulmana. Enquanto Sabbahi não tinha dado uma orientação de voto, Fotuh por sua vez havia apoiado Morsi, junto com várias forças, entre elas o Juventude 6 de Abril e figuras como o blogueiro Wael Ghonim e o escritor Alaa el-Aswani, autor do inesquecível O Edifício Yacoubian,1 crítico impiedoso dos muçulmanos, que assim justificou seu voto: “Não estávamos com Morsi, nós apoiávamos a revolução”. O primeiro objetivo era colocar o Exército de escanteio.
Relutante, o CSFA aceitou o resultado do segundo turno, mas o jogo ainda não tinha sido jogado. A nomeação do novo gabinete, dominado por figuras do antigo regime, só poderia fazer crescer a impressão de que Morsi reinaria, mas não governaria. O general Tantaui, presidente do CSFA, declarou em 15 de julho de 2012 que não iria permitir que uma “facção” (leia-se a Irmandade) tomasse conta do Egito. Convocações para o protesto, em 24 e 25 de agosto, contra o novo presidente foram lançadas, e o diário Al-Dustour chegou a defender um golpe de Estado.2
Vãs esperanças. A legitimidade estava agora nas urnas e nas ruas, como evidenciado pelas longas filas de cidadãos à espera sob sol escaldante, no final de junho, para colocar seu voto na urna e indicar seu presidente. Na noite da proclamação dos resultados, multidões alegres e coloridas – muitas vezes jovens, ora usando uma máscara dos Anonymous, ora exibindo um cartaz da Irmandade – festejavam menos a vitória de Morsi que a derrota do antigo regime e o triunfo do sufrágio universal.
O novo presidente, que era visto como um maçante apparatchik sem carisma, iria demonstrar uma habilidade real. Depois de assumir suas funções, nos diversos comandos militares, ele pôde avaliar que o Exército era atravessado por correntes subterrâneas. Uma geração de oficiais cinquentenários aspirava a desempenhar um papel mais importante; a sacudir a tutela da “geração de 1973” – uma referência à guerra de outubro de 1973 contra Israel –; e a atacar os males que gangrenavam tanto sua instituição quanto o resto do país: a falta de profissionalismo, o favoritismo e a corrupção.
E a ocasião surgiu. Ela chegou mais rápido do que o esperado, com o ataque desfechado em 5 de agosto por um grupo jihadista a um posto militar em Rafah, no Sinai. Dezesseis soldados foram mortos a sangue frio. O comando conseguiu escapar e percorrer impunemente cerca de 15 quilômetros em território egípcio, antes de ser destruído em poucos minutos pelo Exército israelense quando tentava cruzar a fronteira. Esse fiasco mortal em relação à segurança permitiu ao novo presidente colocar de lado o CSFA.
Sem uma gota de sangue, assim se virou uma página da muito jovem revolução egípcia: o Exército voltava aos quartéis. Ele certamente continuará a ter peso nas escolhas sobre segurança (incluindo o Sinai) ou regionais (relações com Israel e, claro, com os Estados Unidos), mas não vai mais assumir todos os poderes.
Um conjunto de reformas
No entanto, a transição política está longe de terminar: uma nova Constituição está sendo elaborada; ela deverá ser aprovada até o final de novembro, depois submetida a um referendo e abrir caminho para novas eleições legislativas, tendo o Parlamento sido dissolvido pela Alta Corte em junho de 2012. A algumas centenas de metros da Praça Tahrir, em uma sala do Majliss al-chura (o Senado), a comissão encarregada de sua redação realiza a sessão na presença de muitos jornalistas. No edifício, decorado com afrescos do Egito faraônico com figuras femininas seminuas, se acotovelam o ex-secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, para quem “as questões religiosas não são da competência da Constituição”, e Naddar Bakkar, o muito midiático porta-voz do partido salafista Nour; mulheres com lenços e outras com os cabelos ao vento; generais e alguns jovens revolucionários (poucos); sacerdotes coptas e representantes da Universidade Al-Azhar; um camponês de galabiyya (roupa tradicional) pedindo ajuda para a agricultura etc. Dá para pensar que estamos em qualquer assembleia parlamentar, e, apesar das profundas divergências, uma atmosfera amigável prevalece durante os debates, dirigidos com voz firme por Hossam el-Gheriany, um respeitado juiz.
No centro das discussões: o papel da charia, em especial o artigo 2º da Constituição. Em 1971, o presidente Anuar Sadat teve de incluir esse parágrafo que afirmava que a charia, a lei islâmica, seria “uma das principais fontes da legislação”. Por uma alteração em 1980, ela tornou-se “a” principal fonte da legislação. Na Assembleia Constituinte, os salafistas pediram que se substituísse “a charia” por “os princípios da charia”, uma formulação mais vaga que teria permitido desvios perturbadores. Então, depois de haver renunciado a isso, exigiram que não fosse mais o Supremo Tribunal Constitucional a julgar a conformidade de uma lei com a charia,3 mas sim o Al-Azhar, a mais alta autoridade do islã sunita. “Seria uma ‘xiitização’ do Egito”, observa ironicamente um participante. “Essa reforma daria a uma instância religiosa a última palavra sobre as leis do país, como no Irã.” Um absurdo para os salafistas, profundamente hostis ao xiismo. O Al-Azhar, por sua vez, também se recusou a desempenhar esse papel.
Um compromisso surgirá daí? Como comenta um observador hostil aos muçulmanos, “Morsi tem interesse em que a Constituição seja equilibrada, para não criar problemas para sua presidência. Se todos os não muçulmanos deixassem a comissão para protestar, isso seria muito ruim para ele”.
Esses debates estão longe de empolgar a opinião pública, mesmo que envolvam princípios importantes, tanto sobre a religião quanto sobre a igualdade entre os cidadãos, ou entre homens e mulheres. Indiretamente, alinham-se outras questões. A Irmandade vai confiscar o poder? O Egito iria se transformar em um novo Irã?
A confraria suscita uma forte rejeição em amplos setores da população – rejeição essa que, ao contrário do que acreditam muitos de seus membros, não é apenas o resultado de uma campanha de desinformação. Notavelmente estruturados, com militantes dedicados que muitas vezes passaram pelas prisões, os membros da Irmandade são considerados às vezes, inclusive por crentes praticantes, como cínicos, envolvidos em esquemas políticos e mais preocupados com os interesses de sua organização que com os do país. Mesmo os salafistas os criticam duramente, acusando-os de querer “oprimir em nome da religião aqueles que eles desprezam”.4 Se seu papel na revolução não é contestado – ainda que tenham pegado o bonde andando –, seus compromissos com o CSFA ao longo de todo o ano de 2011 lhes valeram muitos ressentimentos. Sua decisão de apresentar um candidato para a eleição presidencial, violando seus compromissos anteriores, aumentou ainda mais as suspeitas.
Sua aura acabou empalidecendo: Morsi recebeu 5,7 milhões votos no primeiro turno das eleições presidenciais, enquanto seu partido, o Partido da Liberdade e da Justiça (PLJ), tinha granjeado quase o dobro nas eleições parlamentares no final de 2011-início de 2012.5 E, no segundo turno, o general Chafiq recebeu 12 milhões de votos: um resultado que reflete mais a rejeição à Irmandade do que uma nostalgia do antigo regime.
No centro do Cairo, num bairro construído no século XIX e cujos edifícios lembram a arquitetura haussmanniana e a antiga influência cultural francesa, fica o Café Riche. Badalado lugar de encontro de jornalistas e intelectuais, ele teve seu tempo de glória nos momentos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, quando ali se reuniam em uma de suas salas – dotada de uma entrada secreta – os revolucionários que exigiam a independência do país.
Esse é o lugar onde está instalado o doutor Mohammed Abul Ghar, ginecologista a quem se atribuem maneiras civilizadas, que tem bem uns 70 anos. Presidente do Partido Social-Democrata, ele retornou do Cabo, onde foi realizado o Congresso da Internacional Socialista. Ele relembra sua constante batalha contra a Irmandade: “Não votei em Chafik nem em Morsi, mas a vitória de Chafik teria levado à violência e a uma nova insurreição, dessa vez dirigida pela Irmandade. É do interesse de todos que eles cheguem ao governo, onde vão ter de agir. Vão cometer erros e tomar medidas impopulares”.
“O islã é a solução”
Poucos dias antes, Morsi confirmava a assinatura, daqui até o final do ano, de um acordo para um empréstimo do FMI de um montante de US$ 4,8 bilhões, a uma taxa de 1,1%. Membros da Irmandade e salafistas, que denunciavam o princípio desse acordo alguns meses antes, justificam essa desobediência à proibição islâmica das taxas de juros com argumentos que se poderiam qualificar, debaixo de outros céus, de jesuíticos…
“O islã é a solução.” Por décadas, o slogan da confraria permitiu-lhe evitar se pronunciar sobre a maioria das questões vitais – mesmo que ela estivesse alinhada com o presidente Mubarak para liquidar a reforma agrária.6 Agora no poder, ela não pode mais negar as duras realidades da situação econômica e social deteriorada, como evidenciado pelas numerosas greves nas fábricas, na educação e nos hospitais. Hoje, a Irmandade não tem outra solução a propor senão o liberalismo econômico reconhecidamente menos corrupto do que o de Mubarak.
A grande chance de Morsi continua sendo a divisão da oposição. Com o passar dos dias, esta se organiza nas coalizões mais díspares, cujas figuras de proa passam sem pudor de uma para a outra. Até Hamdeen Sabbahi, o candidato que tinha conseguido galvanizar uma parte da opinião progressista durante a eleição presidencial, encontra dificuldades para apresentar um programa coerente. Como nota um observador, “o comitê central de sua Corrente Popular inclui representantes de partidos liberais, socialistas, nasseristas, que não estão de acordo sobre nada: nem sobre o papel do setor privado, nem sobre o lugar da justiça social, nem sobre as relações com os Estados Unidos e Israel”. Como construir um sistema democrático – o que não é possível sem a integração da Irmandade na política –, ao mesmo tempo que se afirma um programa social e de política externa independente? A esquerda até hoje não resolveu esse dilema.
O caminho para a Irmandade, no entanto, está longe de ser balizado. Os desafios econômicos e sociais são gigantescos; o antigo regime mantém sólidas posições no aparelho de Estado, e é difícil mudar da noite para o dia estruturas e mentalidades – como ensinar a um policial que detém uma pessoa que sua primeira tarefa, na delegacia, não é bater nela? O presidente anistiou todas as pessoas presas pelos militares por razões políticas, mas será que ele vai conseguir lutar contra as persistentes violações dos direitos humanos?
A Irmandade aborda essas batalhas como uma organização, em que, pela primeira vez, a fidelidade incondicional ao murchid (o guia da confraria) não é mais garantida.7 Em março, foram precisos três dias de reuniões do Majlis al-chura, a mais alta instância da organização, para confirmar sua participação na eleição presidencial – e mais: por uma pequena maioria. Pela primeira vez em sua história, a Irmandade experimentou importantes cisões, com a criação do movimento de Abul Fotuh ou a do partido Wasat (“o centro”), para não mencionar as gerações mais jovens.
Muitos obstáculos a um domínio da organização sobre o Estado semelhante àquele que ela tinha conseguido impor ao presidente Mubarak. “Para garantir uma hegemonia sobre o Estado, a Irmandade iria precisar de um projeto”, explica Alaa al-Din Arafat, diretor de pesquisas do Centro de Estudos e Documentação Econômica, Jurídica e Social (Cedej) do Cairo. “Em 1952, os ‘oficiais livres’ foram capazes de construir a hegemonia e reunir as elites em torno do objetivo da independência nacional e da construção de uma economia independente. Sadat, quando tomou o poder, usou a derrota de 1967 e propôs a abertura econômica e um sistema multipartidário. A Irmandade não tem um projeto global – nem mesmo em assuntos internacionais – que lhe permitiria juntar-se aos diversos escalões do aparelho de Estado.”
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).