É impossível perdoar um pecado eterno contra a constituição brasileira
Quem respeitaria o direito de um país que permitisse que pais e mães abandonassem seus filhos e continuassem a gozar do status jurídico de pai e mãe?
Há pecados imperdoáveis, blasfemar contra o Espírito Santo, por exemplo, pois quem os comete põe a si mesmo fora do alcance das leis de Deus. Um pecado imperdoável nega frontalmente a autoridade de Deus, como fez Satanás, cujo destino já está traçado. Ao cometer tal pecado a pessoa escolhe, livremente, ficar fora do alcance da infinita misericórdia do Senhor, tomando uma atitude da mais extrema arrogância.
“Em verdade vos digo: todos os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, e também todas as blasfêmias que proferirem; mas quem blasfemar contra o Espírito Santo jamais terá perdão, é réu de pecado eterno.” (Marcos 3:28-29; cf. Mateus 12:31-32 e Lucas 12:10)
Por assim dizer, perdoar um pecado imperdoável não pode depender da boa vontade, da misericórdia, do amor de Deus ou de seus sacerdotes. Fazer isso seria uma impossibilidade absoluta. Afinal, não se pode perdoar quem não reconhece, no fundo do seu coração, a autoridade de quem tem poder de perdoar e a gravidade dos atos cometidos. Um sacerdote que insistisse em uma ideia satânica como essa estaria contribuindo para o descrédito, para a destruição de Lei de Deus aos olhos dos homens.
Neste caso, o sacerdote estaria falando falsamente em nome Dele para falsamente perdoar alguém que não se arrependeu, que não reconhece Sua autoridade. Desta forma, estaria expondo a Deus e toda a Cristandade ao escárnio da multidão ao dizer, ainda que falsamente, que Deus perdoaria a quem não aceita Sua autoridade; que Deus se curva diante dos arrogantes que não se submetem à sua Lei.
Não é preciso nem dizer que Deus jamais faria ou autorizaria que alguém fizesse algo que contrariasse Sua autoridade. Dizer ou pensar algo assim é evidentemente ridículo, não faz sentido algum. Se é verdade que a vontade de Deus será sempre misteriosa, a sua autoridade não pode ser. Ela deve aparecer clara, cristalina, inequívoca para os crentes. Aceitar a autoridade de Deus e de sua Lei é imprescindível para quem tem fé, e a fé é a condição necessária para a salvação.
Há outros casos em que as leis se preocupam como o problema da sua própria destruição, leis divinas e leis humanas. Casos que podem nos ajudar a compreender o problema da anistia, pois exigem um raciocínio semelhante para serem plenamente compreendidos.
Por exemplo, há faltas de um pai ou de uma mãe de família, as quais nem o Judiciário, nem ninguém tem o poder de perdoar. Apontar tais faltas e puni-las é de interesse público, pois estamos falando de menores que merecem proteção de todos nós, inclusive contra violências ocorridas no seio das famílias. O servidor público, o Juiz que deixasse de tomar providências para responsabilizar os infratores estariam traindo seus deveres e poderia, inclusive, ser punido por isso.
Nesse caso, também não se trata de boa vontade, de misericórdia, de amor ou de senso de justiça. O perdão se torna impossível porque o pai ou a mãe destruiu a sua própria autoridade e colocou em risco a autoridade da instituição da família diante de toda a sociedade.
Tais pais ou mães, com suas ações ilegais, deixam claro que renunciam de fato à sua condição de pai ou mãe, destruindo a própria autoridade e negando as leis que regulam as famílias em geral. Manter filhos ou filhas sob o poder de alguém que, por exemplo, os abandonou, significaria oferecer ao escárnio público todos os demais pais e mães que cuidam bem dos seus filhos e ameaçar a autoridade dos chefes de todas as famílias que existem.
Além de um poder moral e religioso, o poder do pai e da mãe sobre filhos e filhas também é regulado pelo direito, tal é a importância da família para a nação brasileira. Assim, diz o Código Civil brasileiro em seu artigo 1.638 que, por exemplo, perderá por ato judicial o poder familiar, o pai ou a mãe que castigar imoderadamente o filho (inciso I), deixar o filho em abandono (inciso II) e entregar de forma irregular o filho a terceiro para fins de adoção (inciso V).
Como se vê, o direito protege tanto as crianças, quanto a autoridade de pais e mães e da família em geral. Não se pode permitir que um falso pai ou uma falsa mãe permaneça juridicamente exercendo poder sobre seus filhos depois de praticar atos que negam a sua autoridade. Fazer tal coisa, no limite, poderia destruir a autoridade de todo o pai e de toda mãe de família. Afinal, quem respeitaria o direito de um país que permitisse que pais e mães abandonassem seus filhos e continuassem a gozar do status jurídico de pai e mãe?
Também nesse caso, o que poderíamos chamar, por comparação, de pecados eternos contra o poder da família, são impassíveis de perdão. Perdoar colocaria em risco a proteção da família como instituição e as leis do país, que se tornariam ridículas aos olhos de todos.
E vale insistir nesse ponto: o Juiz, o servidor público que se deixasse levar pela boa vontade, pela misericórdia, pelo amor, pelo senso de justiça para perdoar, neste caso, estaria cometendo uma violência inominável contra todos os bons pais e mães de família, contra a instituição da família e contra as leis do seu país. E estaria incentivando a arrogância de falsos pais e falsas mães que poderiam se sentir acima das leis, autorizados a fazer as maiores barbaridades com seus filhos.
Em seu depoimento à justiça brasileira, a cabeleireira Débora Rodrigues, que participou dos atos no dia 08 de janeiro passado e pichou a estátua da Justiça localizada diante do STF, não se refere a si mesma como cidadã brasileira. Ela fala de si mesma como patriota. Faz questão de se identificar como patriota para mostrar que faz parte de um grupo que atribui a si mesmo uma qualidade que, aparentemente, essas pessoas julgam que nós, que eu, José Rodrigo Rodriguez, simples cidadão brasileiro, não possuo. Mas, se eles e ela são os patriotas nós, que não fazemos parte deste grupo, seremos por lógica simples, os não-patriotas.
É verdade que em seu depoimento, disponível no Youtube, Débora pede perdão ao estado de direito. Mas, ao mesmo tempo, diz que o Juiz está errado: ela não teria cometido crime algum. Fala de seus filhos, fala de sua família, chora para comover o juiz, afinal, pois está encarcerada, imersa no desespero da salvação, mas não nega nenhum dos fatos que lhe foram atribuídos. Em atitude soberba, julga saber melhor do que o Judiciário o que eles significam.
Uma pessoa arrogante, que fala de maneira arrogante para se colocar, na condição de patriota, acima das instituições. Uma pessoa que acredita saber mais do que o Juiz e pede… Pede não, exige, o perdão de nossas instituições.
Débora não está fazendo nada de diferente da liderança maior dos patriotas, Jair Messias Bolsonaro. Ele também não pede, ele exige anistia. Jamais demonstra arrependimento, também não nega os fatos que lhe foram atribuídos, apenas acredita saber melhor do que o Judiciário o que eles significam. Ele também alega não ter cometido crime algum, portanto, a anistia no fundo, não seria exatamente um perdão. Aos seus olhos e aos olhos de Débora Rodrigues, trata-se exigir do Estado de um julgamento pelo Congresso no lugar dos Juízes.
O ex-presidente quer que a anistia funcione como um julgamento que substitua o julgamento dos Juízes, aos quais ele não atribui autoridade competente para julgá-lo. Ele pede perdão, mas em atitude de afronta ao estado democrático de direito. Jair Bolsonaro primeiro, julga estar acima das leis, segundo acredita ser capaz de interpretá-las melhor do que as autoridades competentes e, terceiro, exige escolher o Juiz que deveria poder julgá-lo.
Será que ser patriota significa isso? Significa manter a soberba para colocar em risco, três vezes, para negar, três vezes, a autoridade de nossas leis?
O ex-presidente e a cabeleireira não foram investigados por qualquer crime. Foram investigados e serão julgados por um pecado eterno contra o estado de direito brasileiro. Os fatos que praticaram negam frontalmente a autoridade do estado de direito e, como no caso da blasfêmia contra o Espírito Santo e dos pecados eternos contra a família, não podem ficar impunes. Mais do que isso, são materialmente impassíveis de perdão.

O que está em jogo não é o ser humano Jair Messias Bolsonaro, o ser humano Débora Rodrigues ou qualquer outra pessoa acusada de participar da trama golpista e dos atos de 08 de janeiro. Está em jogo a autoridade das leis. É evidente que estamos diante de uma mãe, de um pai, é evidente as famílias, os filhos estão sofrendo com tudo isso. No entanto, infelizmente, nesse caso, as autoridades não podem se deixar levar pela boa vontade, pela misericórdia, pelo amor, pelo senso de justiça e simplesmente resolver perdoar.
Se houver alguma injustiça no cálculo da pena de Débora, que seja corrigida pelo Judiciário: é evidente que sua participação nos fatos não pode ser jamais comparada com a participação do ex-presidente. É fundamental que ela e Jair Bolsonaro sejam julgados com amplo direito de defesa. Dito isso, cabe observar, totalmente inadequado utilizar a anistia, esse favor do Estado que pode ser concedido a alguém, com a finalidade de substituir uma sentença que é de competência do Judiciário.
Ainda mais para perdoar pessoas arrogantes que não se apresentam como cidadãos brasileiros, mas como patriotas, e exigem um tratamento especial da República. Exigem um perdão que deveriam estar pedindo humildemente. Seguem negando a autoridade do Estado e das leis em uma atitude aberta de afronta.
Estas pessoas arrogantes, Débora Rodrigues e Jair Messias Bolsonaro, este, que ainda não reconheceu sua derrota nas urnas, que não respeita a autoridade da Presidência da República, que nega a autoridade da Polícia Federal para investigá-lo, que nega a autoridade dos Juízes para julgá-lo, que exige, não pede, anistia. Estas pessoas que exigem o perdão de autoridades que, no fundo de seus corações, consideram desprezíveis.
Não faz sentido algum perdoar quem nega a autoridade daqueles que são competentes, que têm o poder de perdoar. Insistir na ideia da anistia, neste caso, significaria premiar a soberba e expor o estado de direito ao mais completo ridículo. Ademais, por sua impossibilidade material, o perdão seria um fato juridicamente inexistente, irrelevante para o direito. Perdoar, nesse caso, é impossível.
A Constituição brasileira, evidentemente, não utiliza a linguagem do perdão, mobilizada neste texto apenas para facilitar a compreensão do instituto. No entanto, é claro — não é sequer preciso dizer — que não faria sentido algum conceder anistia a pessoas que negam a autoridade do Estado e acreditam que conspirar contra a Constituição e agir nesse sentido não constitui crime. A possibilidade de concessão de anistia, prevista na Constituição, só pode ter como objetivo preservar a lei — e não promover a sua destruição.
Assim como perdoar a blasfêmia contra o Espírito Santo contribuiria para destruir a autoridade da Lei de Deus diante de seus fiéis; assim como perdoar um falso pai e uma falsa mãe por atos violentos cometidos contra os seus filhos contribuiria para destruir a autoridade da lei da família diante da comunidade, anistiar pessoas que arrogantemente desafiam a autoridade do Estado, ou seja, das pessoas competentes para conceder a anistia, contribuiria para destruir a autoridade da Constituição e do estado democrático de direito brasileiro. Na verdade, essa proposta de lei de anistia não passa de uma proposta de lei do golpe.
José Rodrigo Rodriguez é jurista e professor brasileiro, docente da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).