É possível a esquerda dialogar com os evangélicos no Brasil?
A afinidade entre evangélicos e a direita conservadora não é nova, e precisa ser entendida a fundo por todos aqueles que pretendem dialogar com esse público
O resultado do primeiro turno das eleições de 2022 revela aquilo que já deveria estar claro para qualquer analista político interessado no atual cenário brasileiro: a onda conservadora de direita tornou-se a força política mais influente dos últimos anos no país.
Prova disso é o “efeito Bolsonaro” nas eleições estaduais, na qual elegeram ao menos oito governadores já no primeiro turno (além dos seis que disputam o segundo turno), sem contar nos 99 deputados federais eleitos pelo PL e os pelo menos catorze senadores eleitos com apoio direto do presidente.
Eleitos com pautas conservadoras como “a defesa da família” e “contra a ideologia de gênero”, o sucesso de boa parte dessas candidaturas confirma uma tendência que muitos antropólogos já haviam previsto desde as eleições de 2018, quando se observou uma considerável aderência do eleitorado conservador para gramáticas moralistas, mas de um conteúdo essencialmente antiesquerdista e antiprogressista.
Na ocasião, muitos analistas concluíram que a eleição de Bolsonaro se tratava apenas de uma exceção na história política brasileira, que sofria os efeitos da crise econômica de 2015-2016 e do sentimento antipetista inflamado pela Operação Lava Jato. O conservadorismo era visto, portanto, mais como um apêndice ideológico, dentre tantos outros, dessa massa de eleitores insatisfeitos com o PT que aderiram circunstancialmente a Bolsonaro.
Pois bem. O resultado das eleições do primeiro turno de 2022 revela uma realidade bem diferente. Os candidatos eleitos mostram que não só o bolsonarismo continua sendo uma força política consistente – sendo mais uma vez o principal cabo eleitoral dessas eleições – mas também que o conservadorismo que o motiva, por mais eclético e multifacetado, ainda é majoritariamente evangélico.

O que explica o sucesso do bolsonarismo entre os evangélicos?
Para compreendermos como o bolsonarismo dialoga com os evangélicos, alguns fatores precisam ser levados em conta. Em primeiro lugar, o fator histórico: durante décadas, movimentos politicamente conservadores estiveram próximos dos evangélicos brasileiros, sobretudo entre os evangélicos pentecostais. Desde os anos 1950, pelo menos, com o surgimento do movimento das cruzadas evangelísticas – lideradas por missionários norte-americanos como Billy Graham e T. L. Osbourne – as igrejas brasileiras passaram por um intenso processo de aculturação dos valores e ideais ultraconservadores norte-americanos.
Isso equivale a dizer que pautas políticas conservadoras sempre vieram acopladas por uma visão religiosa de mundo, e quase sempre de cunho profético. Ou seja: a ideia de um “fim dos tempos” – ilustrada pela noção apocalíptica de uma guerra espiritual do bem contra o mal – é sistematicamente contextualizada pelo embate político entre conservadores e progressistas, de modo que o avanço do progressismo costuma ser automaticamente lido como uma espécie de prenúncio profético da “Grande Perseguição” que a Igreja de Cristo sofrerá antes da “batalha final”.
Não por acaso, é a partir desse trânsito entre missionários norte-americanos conservadores, de um lado, e igrejas evangélicas simpatizantes, de outro, que crentes tementes à Deus também passaram a se preocupar com temas políticos como a ascensão das esquerdas na América, a ampliação dos direitos civis a casais homossexuais, a descriminalização das drogas e do aborto, o “marxismo cultural”, a militarização da sociedade, dentre outros.
Dito de outro modo: o casamento entre evangélicos e conservadores fundamentalistas não é novo, e explica boa parte da gramática utilizada no atual discurso político a favor de Bolsonaro. Esse discurso é rotineiramente compartilhado dentro de uma estrutura de informação e comunicação complexa, que envolve desde perfis de influenciadores cristãos nas redes sociais a eventos promovidos por igrejas e movimentos evangélicos, nas células e nos grupos familiares.
É possível a esquerda dialogar com os evangélicos?
É preciso reconhecer que o triunfo do bolsonarismo entre os evangélicos acontece em meio a um cenário de certa resistência de alguns setores progressistas em dialogar com esse público religioso. Advogando o princípio que as pautas econômicas devem sobrepor às pautas morais, muitos articuladores demoraram a compreender que ao tentar isolar o ponto de vista religioso sobre a política, o que esses setores estão fazendo, na prática, é menosprezar um aspecto decisivo da vida cotidiana dessa população que hoje representa quase um terço do eleitorado no país.
Mas como se aproximar de um público tão fortemente engajado em pautas antiesquerdistas? O desafio, sem dúvida, não é pequeno. Sobretudo quando temos em mente o contexto histórico e as pautas recentes que passaram a adotar essa população.
Ainda assim, nem tudo está perdido. Talvez o ponto inicial para a esquerda encontrar os evangélicos seja lembrar que eles não são só crentes. Eles também são mulheres negras e trabalhadores pobres e periféricos, famílias que sofrem na pele as mazelas da pobreza, do trabalho informal e do racismo estrutural.
Se os evangélicos não são só evangélicos, também estaremos certos em concluir que a igreja não é só igreja. Qualquer morador de comunidade ou bairro periférico sabe que a igreja, para além do espaço de culto, é também um local estratégico de acolhimento e assistência das pessoas que enfrentam momentos de dificuldade, seja ela material ou espiritual.
Buscar diálogo com esse público hoje, portanto, significa muito mais que um mero esforço intelectual pelo diálogo inter-religioso e pela laicidade do Estado. Ao contrário: significa responder a uma necessidade urgente das esquerdas se aproximarem da realidade do povo pelo qual pretendem defender e representar. É isso ou estamos condenados a um Brasil terrivelmente evangélico, conservador e antiesquerdista.
*Rafael Rodrigues da Costa é sociólogo, mestre em Ciências Sociais pela Unifesp e pesquisador visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Psicologia Social na Faculdade FECAF.