É possível falar sobre corrupção a partir da esquerda?
A esquerda se distanciou ainda mais do sentimento geral da população, entrando numa hipertrofia discursiva isolacionista e vitimista, na qual fala de maneira compulsiva e desesperada para cada vez menos pessoas, atribuindo seu fracasso apenas à ação de agentes externosPablo Ortellado
Foto: Agência Brasil
Não foi exatamente surpresa quando duas pesquisas de opinião, uma do Datafolha e outra da Confederação Nacional das Indústrias, mostraram, no final de 2015 e início de 2016, que a corrupção tinha se tornado a principal preocupação dos brasileiros, a frente dos problemas na saúde e na segurança.1 As pesquisas mostravam que se consolidava uma tendência que vinha se desenvolvendo desde 2013 quando a agenda anticorrupção explodiu nas ruas e foi depois alavancada pelas ações espetaculares da operação Lava Jato.
Desde o começo deste processo, o alvo da indignação com a corrupção foi o PT que ocupou por todos esses anos a administração federal. Por isso, novos grupos da sociedade civil, de orientação liberal e conservadora, perceberam a extraordinária janela de oportunidade que se abria para explorar a insatisfação popular e dar-lhe direcionamento político, conseguindo em muito pouco tempo construir uma máquina de mobilização e propaganda que tem consolidado uma nova direita no país.
Desde o final de 2014, o resultado de uma eleição muito polarizada, casado com a indignação com os desdobramentos da operação Lava Jato, permitiu a esses novos grupos convocar e construir um tipo de mobilização a que o Brasil não estava acostumado, das classes médias lideradas por grupos de direita – coisa que só conhecíamos do noticiário sobre a Venezuela ou a Argentina.
A esquerda que orbita em volta do PT – inclusive aquela que orbita contra a própria vontade – reagiu a essa mobilização com um pouco de assentimento formal, um tanto de desdém por essas questões “menores” e “não estruturais” e um bocado de desqualificação.
Um pouco por que convinha a propaganda, um pouco por confusão conceitual, ela tomou a posição política dos convocantes dos protestos pela posição das pessoas mobilizadas e desprezou o elo de opinião que ligava as pessoas nas ruas com o resto da população brasileira. Com base nisso, difundiu o discurso desqualificador e essencialmente falso de que a indignação com a corrupção estava limitada a uma elite descontente com os avanços sociais dos governos petistas que travestia de combate a corrupção seu esforço por manter seus antigos privilégios de classe.
No entanto, como as pesquisas de opinião mostraram, havia muito desacordo entre a orientação política dos convocantes dos protestos e a opinião política das pessoas mobilizadas. Enquanto a posição das organizações convocantes era ultraliberal na economia e uma parte delas era muito conservadora nos costumes, as pessoas mobilizadas nas ruas defendiam fortemente o caráter público, gratuito e universal dos serviços públicos e eram razoavelmente tolerantes com os direitos dos homossexuais e das mulheres.2
Além disso, embora o processo de mobilização fosse praticamente circunscrito a classe média, pesquisas mostravam que havia um sentimento difuso de insatisfação com o governo Dilma e com a corrupção, que atravessava todas as classes. É muito difícil, numa sociedade socialmente cindida como a nossa, construir mobilizações transversais, porque as barreiras de classe bloqueiam os laços de sociabilidade necessários a convocação e a mobilização. O fato de apenas uma classe estar mobilizada não significava que ela não estava expressando um sentimento mais difuso e profundo, compartilhado pelos outros segmentos sociais.
Se essas circunstâncias permitiam que a esquerda desqualificasse as mobilizações anticorrupção para fins de propaganda, ela não devia ter se autoenganado para fins de estratégia.
As mobilizações anticorrupção eram a expressão de um mal-estar profundo da sociedade brasileira que assistia perplexa às crescentes cifras de bilhões de reais desviados de sua principal empresa pública. Enquanto a esquerda respondia com desqualificação dos adversários e um infantil discurso de “a corrupção é estrutural ao sistema e os outros partidos que estiveram no poder também se envolveram com ela”, os novos grupos de direita canalizavam sozinhos a indignação popular, convertendo o sentimento anticorrupção em antipetismo e o antipetismo em antiesquerdismo até transformar em corrupto qualquer um que se dissesse de esquerda.
Por dois anos, o sentimento que mais crescia na sociedade brasileira só encontrou respaldo nos grupos de direita. Ao contrário da esquerda, eles entenderam que era preciso respeitar o sentimento das pessoas e transformar essa indignação bruta e selvagem, dando-lhe direção política. Foram assim, aos poucos, consolidando um populismo de direita, moralista e antipetista que acredita que os governos progressistas multiplicaram as falcatruas por todo o Estado brasileiro, travestindo de direito social a corrupção e o privilégio dos grupos apadrinhados. Afinal, essa foi a explicação política que foi oferecida pelos únicos grupos que realmente tentaram organizar a insatisfação da população. E embora essa tarefa tenha recebido o valioso apoio de alguns meios de comunicação, o mérito desta conquista se deve mais a ação militante das novas organizações da sociedade civil que trabalharam de maneira hábil e inovadora nas redes sociais.
Essa situação, no entanto, não era inevitável. O discurso anticorrupção nunca foi privilégio da direita, como lembra a memória recente da agenda petista dos anos 1990 (a “bancada ética”) ou como mostra o exemplo internacional do Podemos, na Espanha. A prisão de grandes empresários era uma oportunidade para ligar a corrupção do Estado com a corrupção das empresas, chamando a atenção para o papel dos corruptores. Os esquemas de financiamento de campanha desmascarados poderiam ser utilizados para promover a reforma do sistema de financiamento eleitoral que amarram os candidatos aos interesses das empresas. E a divulgação espetacular de documentos e provas pelos promotores da Lava Jato poderia impulsionar e radicalizar as políticas de transparência e controle social que tinham sido recentemente inauguradas.
Mas tudo isso só seria eficaz para a opinião pública se o emissor do discurso se descolasse dos alvos das investigações. Era preciso que o PT cortasse na carne, se separando e condenando com firmeza os antigos companheiros que tivessem fortes evidências contra si. Ou ainda, era preciso que setores da sociedade se descolassem do partido para fazer as denúncias com distanciamento crítico, mostrando que a sociedade civil de esquerda não era condescendente e apadrinhada pelos esquemas de corrupção, como fazia crer o discurso que se convertia em senso comum. Sem essa separação crítica, qualquer tentativa de discurso sobre reforma política, transparência, independência dos órgãos de investigação e controle social parecia para a opinião pública apenas cinismo dos investigados e dos seus protegidos.
A situação se tornou ainda mais grave com a polarização política em torno do golpe/impeachment. Com o antagonismo que esvaziou o campo político de posições independentes, era impossível que grupos de esquerda promovessem um discurso anticorrupção sem serem imediatamente acusados de passar para o outro lado e fazer o jogo do inimigo. Com isso, a esquerda se distanciou ainda mais do sentimento geral da população, entrando numa hipertrofia discursiva isolacionista e vitimista, na qual fala de maneira compulsiva e desesperada para cada vez menos pessoas, atribuindo seu fracasso apenas à ação de agentes externos.
Mas ainda há saída. A oposição às manobras dos congressistas para se salvarem da Lava Jato está sendo conduzida por parlamentares da esquerda não petista e por dissidentes do PT, o que fornece um oportuno ponto de partida para uma esquerda corajosa que queira se desvencilhar do abraço do afogado. Para isso, ela precisa, por um lado, se separar e se distanciar criticamente do PT e, por outro, respeitar e acolher o sentimento de indignação da população com a corrupção, dando a ele respostas políticas consistentes com os valores de justiça social e defesa do patrimônio público.
Pablo Ortellado é professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.