É possível sair deste abismo?
Não se trata apenas de ideologia de direita, mas também de um projeto de Brasil, germinado no seio das elites. São saudosistas antipovo e antipluralidade, que não imaginam a coexistência dos sujeitos na sociedade senão por meio do autoritarismo ou pela produção de desigualdades. Se há saída para este imbróglio em que nos metemos, ele passa pela mobilização popular, mas não só.
Há alguns anos estamos vivendo como se um verdadeiro trator tivesse passado sobre tudo o que acreditávamos sobre conceitos que pensávamos básicos e universais, como o de democracia e a necessidade de sua manutenção para que pudéssemos viver bem como sociedade. O que aparentemente se revela como uma mudança instantânea tem suas raízes em processos mais longos e mais lentos, que foram tomando de assalto a percepção de que existia, no Brasil, um processo democrático sólido em curso.
Essa percepção parece ter ruído logo ali, em 2013, quando o Brasil foi às ruas por diferentes motivos, gritando contra a presença dos partidos, canalizando o sentimento de descontentamento, antes pulverizado, e lotando as ruas do país. É possível dizer que vimos ali nas Jornadas de Junho as maiores manifestações de nossa história. Considero importante partir daqui, pois foi nesse momento que muitos de nós começamos a perceber que algo estava diferente.
Logo depois, vivemos um processo de impeachment, produzido contra uma presidenta eleita e contra a instituição Presidência da República. Apoiado pelas elites e pelos representantes dos conglomerados de mídia e por parte da classe política, o golpe institucional, finalizado em 2016, deixou marcas profundas que seguem maculando a realidade com a demonstração de que o que vivemos anteriormente fora apenas um ensaio de democracia das elites.
É bem verdade que fica bastante difícil não analisar diretamente as movimentações institucionais até o impeachment como uma mostra clara de misoginia encrustada na sociedade, de um egoísmo típico das elites brasileiras, que buscam frear a ascensão e a presença das classes populares e das mulheres nos espaços anteriormente reservados apenas a elas.
Há sete anos, quem poderia imaginar que estaríamos vivendo no Brasil mais do que um ensaio de um Estado totalitário, mas uma adequação bem complexa de autoritarismo maquiado com a sombra de que as instituições mantêm seu pleno funcionamento? Aperfeiçoam-se, diariamente, os mecanismos de controle dos corpos e mesmo de apagamento daqueles e daquelas que não estejam enquadrados/as na aspiração pseudocristã de defesa das famílias e do status da branquitude – sistema formado pela presença do elemento branco, masculino, heteronormativo cristão-judaico. É assim que colecionamos os alarmantes dados que dão conta do alto número de mortes de jovens negros/as, que chegou a 75,5% do total de vítimas, segundo a edição do Atlas da violência de 2019, e de LGBTs, e do aumento constante dos casos de feminicídio.
Não é possível analisar o cenário que vem dando espaço ao avanço da ultradireita no Brasil sem encarar o caráter misógino, sexista e racista desses grupos, que conseguem amealhar apoio das elites a suas pautas conservadoras ou de austeridade. E aqui não falamos apenas do que vem do governo federal, mas daquilo que está instalado no seio dos movimentos liderados por influenciadores do YouTube, pelos esquemas de fake news e pelos novos “gurus”.
O Rio de Janeiro como laboratório do bolsonarismo
O Rio de Janeiro pode ser considerado o berço do que passamos a chamar de bolsonarismo e protagonizou, ao lado de São Paulo, a efervescência das pautas que têm produzido a popularização da extrema direita. É no Rio de Janeiro que Jair Bolsonaro e dois de seus filhos têm domicílio eleitoral e construíram suas carreiras políticas à base de ligação com agentes da segurança pública, em alguns casos envolvidos com as milícias que controlam territórios na capital e no interior e atuam como aparato paralelo ao Estado.
É ainda no Rio de Janeiro que vimos, em 2018, uma parlamentar negra ser brutalmente assassinada, no exercício de seu primeiro mandato. Marielle Franco não apenas se tornou símbolo de uma resistência negra, feminista e periférica, mas seu assassinato é também revelador das muitas pontas soltas no processo de militarização e recrudescimento da democracia. Mais ainda porque, quase dois anos depois, não se sabe muito sobre quem mandou matar Marielle e por quais motivos. Além disso, a investigação de seu assassinato parece ter dificuldade diante de fatos que ora parecem avançar, ora retroceder.
No Brasil, há hostilidade no ambiente político e morre e mata-se com frequência. Marielle não foi a primeira parlamentar assassinada no exercício do mandato, mas o foi na cidade do Rio de Janeiro, capital de extrema importância para o país, no exercício de seu mandato e durante uma intervenção do governo federal na segurança pública do Estado.
A concomitância dos fatos parece trazer à tona o agravamento da situação brasileira e apontar para muitas possibilidades. É possível sair deste abismo? Caminhamos para a construção de uma democracia ou estamos vivendo seu pulsante ocaso?
Da perspectiva de uma mulher negra, de origem periférica e neste momento parlamentar no estado do Rio de Janeiro, é um tanto assustador que as propagadas bases sólidas da democracia tenham sido erguidas sobre tão frágeis solos que parecem desmoronar. Estamos sob ataque, já há algum tempo.
O estado do Rio de Janeiro vive uma política genocida que se alia diretamente aos rumos do Executivo federal. O governo de Wilson Witzel e suas polícias têm produzido, numa população específica, o terror. Quem morre são jovens, mulheres e crianças negras, periféricas e faveladas. Temos o mesmo grupo populacional como vítima de morte por armamento pesado, pelo Estado, que tem um discurso extremamente violento, de abate de pessoas.
No início deste ano de 2020, a população da cidade do Rio de Janeiro sofre também com o sucateamento do serviço de distribuição e tratamento das águas. Não é demais dizer que o racismo ambiental, que submete toda uma população a viver com esgoto nas torneiras, alia-se a uma administração que acredita na privatização de bens de consumo comum e vem sucateando os serviços públicos com vistas à entrega ao setor privado. A política de morte e de desmonte da administração pública tomou as esferas de governo e o debate público como solução para questões que deveriam ser observadas pelo prisma do aumento ou diminuição da desigualdade.
Mas o que esperar do estado em que, há alguns anos, se convive com um processo cotidiano de militarização dos corpos como política de governo? Há anos o Rio de Janeiro mantém bastante vivo o mito das classes perigosas e elege facilmente seus alvos. Fato é que o que temos observado é a institucionalização de um discurso conservador, racista e misógino.
Esse é um dos grandes períodos deste tempo na sociedade brasileira. Convivemos com o absurdo e vemos o escárnio e o escracho público como políticas de comunicação, como fatores relevantes para a elaboração de políticas públicas e linha de governo. Temos lidado cotidianamente com o absurdo e temos de criar diálogos e respostas ao absurdo. Isso é um perigo.
Desmonte como prática do Estado
Diante do absurdo, combatemos com o quê? As verdades não são em si mesmas suficientes, e o que antes era razoável passou a ser passível de ponderação coletiva. Para além disso, estamos construindo as mobilizações de forma a conter abusos injustificáveis. Temos no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios um trator que passa por cima do que existe e ainda cria um cenário de incapacidade de mobilização.
Primeiro, criou-se o descrédito diante da mobilização e da construção coletiva; depois, atropelou-se a vida cotidiana com um sem-número de medidas absurdas, cortes inexplicáveis e pautas que até parecem cortinas de fumaça, mas que estão no escopo do que esse governo tem como projeto político: destruir o que está de pé para ver o que vai surgir. Esse governo tem aparência e modus operandi de colapso, constantemente levando o país para uma corda bamba, difícil de segurar.
É mais um resultado do histórico colonial das relações no Brasil que ainda se manifesta tanto na manutenção do racismo e dos privilégios quanto na administração pública. O que agora vemos de modo escancarado é o encontro do colonialismo com atores que se reivindicam de extrema direita e reproduzem em âmbito inédito ações que geram retrocessos em todas as áreas da vida dos/as brasileiros/as.
Foi assim que se perpetrou, por meio de emenda constitucional, um teto de gastos que vem sufocando as contas públicas e não apenas reduz os investimentos, importantes para garantir uma economia aquecida, como também provoca maior precariedade na oferta dos serviços públicos e na aplicação de políticas públicas.
No último ano temos observado o desmonte setor a setor reforçado pelo presidente Bolsonaro e seus porta-vozes, que parecem não querer deixar pedra sobre pedra e têm como horizonte e perspectiva apenas as ruínas. O problema é que, no meio de todo esse processo, temos o aumento vertiginoso do número de desempregados, o retorno das pessoas à miséria, uma população vivendo na precariedade e as ruas sendo ocupadas como moradia. É indigno que a sociedade brasileira se acomode a conviver com esta realidade sob a justificativa de que a culpa é de governos anteriores.
Logo no início de 2019 tivemos a campanha pela aprovação de uma reforma da Previdência que ampliou as disparidades na contribuição e na obtenção dos benefícios, pensada com base em uma lógica de mercado, e não de Estado. Um ataque sério e intenso ao tripé da seguridade social, tendo as condições da economia como salvaguarda para a retirada de direitos e a manutenção dos privilégios de algumas categorias, como a dos militares.
Não é que não fosse necessária uma reforma ou que as contas públicas apresentassem o melhor dos quadros, mas a toque de caixa votou-se um projeto para agradar a setores da sociedade e em detrimento de outros. O debate público amplo foi deixado para trás, restringindo-se aos meios de comunicação, ainda assim de modo bastante enviesado.
Pode parecer estranho para quem observa de fora ou que se faça este exercício, mas não se trata apenas de ideologia de direita ou de extrema direita nem apenas de um caráter fascista, mas também de um projeto de Brasil, germinado no seio das elites e que toma corpo por meio de figuras que antes habitavam o submundo da política brasileira ou estavam adormecidas desde o fim da ditadura militar.
São saudosistas antipovo e antipluralidade, que não imaginam a coexistência dos sujeitos na sociedade senão por meio do autoritarismo ou pela produção de desigualdades. Não apenas isso, mas também a conformação do padrão colonial de convivência com a desigualdade que vai sustentar o popular discurso meritocrático do vencedor. Se há saída para este imbróglio em que nos metemos, ele passa pela mobilização popular, mas não só. Ele passa ainda pela transformação dos espaços de decisão com a presença daqueles e daquelas a quem, historicamente, isso foi negado.
Para mudar o jogo
Para ir além e vislumbrar um novo horizonte possível, é preciso trabalhar duro. Tudo está em disputa, e a disputa torna-se ferramenta de luta política. Estamos diante da possibilidade de discutir amplamente qual é o modelo de sociedade que queremos construir e no qual queremos viver. Este momento pode ser observado de muitas formas, e uma delas é enxergá-lo como uma oportunidade de avanço civilizatório.
É duro ter de trocar as rodas com o carro em movimento, mas acredito que temos muito o que aprender com os massacrados e as massacradas deste país, que enxugam o suor de seu rosto e produzem um dia novo para os seus, ou ainda com as mães que perdem diariamente seus filhos e, no dia seguinte, são obrigadas a lutar. Digo obrigadas porque ou lutam ou são engolidas por uma imensa dor e solidão por não compreenderem por que o Estado, que deveria resguardar a vida de seus filhos, é quem os mata.
É da lida da vida que a gente vai encontrar novos horizontes. Muito se fala sobre a construção de alianças amplas das esquerdas, de oxigenação desse campo político. Eu acredito nessa necessidade, mas ela só será possível se houver a humildade de ouvirmos os oprimidos desta nossa sociedade. As pautas e os discursos de nossas esquerdas alcançam muito bem as camadas médias que conseguiram estudar e até chegar à universidade, mas ainda estamos distantes da população brasileira que não terminou o ensino fundamental.
Operamos sobre a máxima de defender os direitos do outro, mas a lógica é que o outro compreenda essa defesa e lute do nosso lado. É defender os direitos com o outro. Temos a necessidade de novas epistemologias, novas pedagogias, para chegarmos às bases da nossa população. Há barreiras muito bem definidas, massificadas e sustentadas pelo racismo e pelo machismo. Ou o que explica o baixo número de mulheres e negros/as na política?
Aqueles que sentem e sofrem cotidianamente os efeitos deste tempo nefasto estão também cansados. Nós sempre olhamos em busca de alguém que pudesse fazer algo que nós não podíamos, mas cada vez mais temos de ser nós ali e em todos os lugares. Representação e ação coletiva como chaves para superarmos cada um dos retrocessos. Ainda é difícil vencer os preconceitos tão massificados, generalizados, que tiveram enorme adesão no senso comum. Não dá para enfiar goela abaixo nossos discursos e práticas, mas dá para compartilhar qual é o projeto de sociedade que queremos.
Partimos de uma sociedade pautada na subserviência, na desumanização do outro; de uma sociedade em que é possível encontrar empregados que defendem a perda de direitos para manter o sustento de suas famílias. Esses processos são muito novos para aqueles que formulam o pensamento nas esquerdas. Estamos chegando a esses espaços para criar, para apresentar novas perspectivas, e com a expectativa de virarmos o jogo.
Longe de ser pessimista, prevejo um caminho um pouco mais longo, embora trabalhe todos os dias para que cheguemos ao horizonte de nossos sonhos de justiça e equidade na sociedade. Mas não é mais possível que formulemos programas, teses e campanhas sem compreender que os abismos foram ampliados, que existem necessidades urgentes e que, antes do voto, temos sujeitos e suas angústias.
É hora de canalizarmos angústias, organizarmos sonhos, estarmos unidas e unidos na construção deste projeto igualitário e justo, em que as liberdades são a experiência cotidiana, e não de transgressão. É tempo de transgredirmos com nossos sonhos. Nós nos apresentamos a essa luta, que é coletiva e deve ser comum. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, dizia que, para a luta ter sentido, é preciso manter a dimensão do sonho. E, neste momento, pode até parecer pouco, mas precisamos juntas e juntos manter viva a capacidade de sonhar.
*Mônica Francisco é deputada estadual (Psol-RJ).