É preciso votar a nova Lei das Migrações
Em entrevista, a antropóloga Bela Feldman-Bianco – professora da Unicamp, coordenadora do Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia e representante da SBPC no Conselho Nacional de Imigração – explica a necessidade de votar a Lei de Migrações e mostra como o Brasil continua atrativo para cidadãos de todo o mundo
O Brasil, historicamente um país de imigração, se tornou também exportador de migrantes pelo mundo. Ao mesmo tempo, novos imigrantes estão chegando da América Latina, da Ásia e da África, do Haiti e da Síria, os últimos com vistos humanitários. Você poderia analisar essa redescoberta do Brasil?
Não se trata propriamente de redescoberta do Brasil, mas de reposicionamentos do nosso país na economia política mundial em diferentes momentos do capitalismo global. A emigração dos brasileiros para diversos continentes começou a ocorrer no bojo da recessão econômica das décadas de 1980 e 1990, que atingiu diversos países da América Latina, assim como nações periféricas ou semiperiféricas de outros continentes. Argentinos, uruguaios, equatorianos, colombianos, assim como indianos e tailandeses, entre outros, migraram para os Estados Unidos ou para antigas metrópoles europeias.
No caso brasileiro, o início desses deslocamentos de pessoas para o exterior por questões econômicas está simbolicamente ligado ao confisco da era Collor (1990-1992) e suas políticas neoliberais. Terra estrangeira, um filme de Walter Salles lançado em 1996, retrata com perspicácia esse clima de confisco e a saída de jovens brasileiros sem documentação para Lisboa. Vale lembrar que, nesse mesmo período, o Brasil também passou a receber uma população do continente latino-americano, como bolivianos e exilados argentinos, uruguaios e chilenos.
Com 12 milhões de desempregados, por que o Brasil ainda atrai tantos migrantes?
Se, nas décadas de 1980 e 1990, a conjuntura global direcionou migrantes de antigas colônias para as ex-metrópoles europeias e os Estados Unidos, a grande recessão de 2008-2009 resultou num movimento inverso – da Europa para as antigas colônias. Ao mesmo tempo, emergem as migrações Sul-Sul, ou seja, entre países periféricos ou semiperiféricos. Nesse período, os projetos desenvolvimentistas do Brasil atraíram migrantes. Os haitianos, que são parte de um povo diaspórico, começaram a migrar para o Brasil após o terremoto de 2010, talvez não por acaso, já que a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) é comandada pelo país. Considerados “refugiados climáticos” e não se enquadrando nas regras para obtenção de refúgio concedido pelo Comitê Nacional para os Refugiados aos solicitantes que escapam de guerras ou outros conflitos políticos, os haitianos têm conseguido, por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), obter o visto humanitário para se deslocar para o Brasil. Embora os sírios sejam refugiados de guerra, o governo brasileiro também está lhes concedendo visto humanitário, de mais ágil obtenção. Mas vale observar que, no atual contexto de alto índice de desemprego, já há migrantes e refugiados, inclusive os que obtiveram visto humanitário, deslocando-se para outros países em busca de melhores oportunidades. No caso haitiano, por exemplo, estão ocorrendo dois processos simultâneos: um de reunificação familiar e outro de deslocamentos para outros países, por meio de redes diaspóricas, principalmente para o Chile e os Estados Unidos. Resta saber se, dada a mais recente crise humanitária no Haiti, atingido pelo furacão Matthew, novos contingentes de refugiados climáticos se dirigirão a um Brasil com 12 milhões de desempregados, mas que lhes concede visto humanitário, ou se suas redes sociais vão direcioná-los para outros países e continentes.
Por que a legislação brasileira precisa ser atualizada?
O Estatuto do Estrangeiro, datado de 1980, é baseado em “segurança nacional” e considera os imigrantes “caso de polícia”. Inúmeros artigos dessa legislação estão em contradição com a Constituição de 1988, sendo um atentado ao processo de redemocratização do Brasil. Basta lembrar o inquérito iniciado pela Polícia Federal, em março de 2016, contra a atuação sindical de uma professora italiana concursada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com base na atual legislação migratória. O artigo 107 do estatuto impede aos estrangeiros o direito de manifestação política e sindical. Essa mesma investigação deixou de considerar o artigo 5º da atual Constituição brasileira, segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de nenhuma natureza.
Para contornar “engessamentos” causados pelo Estatuto do Estrangeiro, o CNIg tem atuado por meio de resoluções pontuais, atendendo a uma série de demandas relacionadas aos imigrantes e até emigrantes. Essas resoluções, que extravasam questões laborais, têm sido essenciais, mas não resolvem por si sós a ausência de uma lei com foco nos direitos humanos.
Quais são os pilares da nova Lei das Migrações?
A nova lei atualmente em discussão é um amálgama de pelo menos três anteprojetos de lei: o PL n. 5.655/2009, conhecido como projeto Lula; o PLS n. 288/2013, de autoria do senador Aloysio Nunes; e o Anteprojeto de Lei das Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, formulado em 2014 por uma “comissão de especialistas”, criada no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça. A última versão (PL n. 2.516/2015), revisada pelo relator, o deputado Orlando Silva, e aprovada no âmbito da comissão especial da Câmara de Deputados responsável pela análise do projeto que cria a nova Lei das Migrações, já constou da pauta do Congresso Nacional várias vezes, mas não chegou a ser discutida e votada. Há urgência em sua aprovação, especialmente porque se trata de uma legislação mais humana e justa, que considera os migrantes como sujeitos de direitos, apesar de apresentar anacronismo no que se refere ao aumento da securitização. Paradoxalmente, nessa nova lei, ao mesmo tempo que a permanência de imigrantes no país é facilitada, a entrada é dificultada e a possibilidade de expulsão, ampliada. Espera-se que o foco nos direitos humanos seja mantido e, concomitantemente, que as seções e os artigos relativos à securitização e à expulsabilidade sejam drasticamente reduzidos e descartados. A história das migrações para o Brasil indica que não existe fundamentação alguma para considerar imigrantes a priori como “problema” nem para criminalizá-los de antemão. Na verdade, o índice de criminalidade é bastante baixo, já que são pessoas à procura de uma vida melhor. Ao contrário, especialmente os imigrantes e refugiados de pele negra são os que têm sido alvo de manifestações racistas e xenofóbicas, inclusive com violência física e até assassinatos.
Se vários segmentos da sociedade civil, inclusive os próprios imigrantes e refugiados, estão atualmente mobilizados em prol da aprovação dessa nova lei de migrações, que focaliza os migrantes como sujeitos de direitos, não podemos esquecer que suas lutas por direitos e contra a violação destes, contra o racismo e a discriminação de gênero ocorrem também no cotidiano: na burocracia da Polícia Federal, nas mobilizações por moradia, trabalho decente, na saúde, educação, por seus saberes e por participação política. Nesse sentido, vale observar que uma legislação mais humana e justa pode direcionar políticas migratórias de acolhimento baseadas em direitos humanos.
Na ausência do Estado, Igreja e sociedade civil seguirão como responsáveis pela complexa questão migratória brasileira?
Para além de políticas de acolhimento, há a necessidade de políticas de acompanhamento. Apesar de a Constituição de 1988 garantir direitos fundamentais, o país carece de políticas públicas. Por isso, grande parte das responsabilidades do Estado continua a cargo das Igrejas e ONGs e dos próprios coletivos e redes sociais de imigrantes e refugiados.
Certamente uma grande vitória das mobilizações desses ativistas, em São Paulo, foi a criação da Coordenação de Políticas Imigrantes na Prefeitura e, mais recentemente, o reconhecimento dessa instância enquanto política de governo, e não de gestão. Trata-se de uma luta de muitos anos, que finalmente se tornou realidade durante a atual gestão e se espera que continuará na próxima. Além do mais, como imigrantes e refugiados vivem em cidades, seria essencial que essa experiência, que inclui políticas transversais, fosse conhecida e levada a cabo em outros municípios. O Brasil daria um exemplo ao mundo.
A redução das barreiras migratórias poderia estimular um aumento da produção interna dos países e, por consequência, a redução da pobreza em todo o mundo?
A questão migratória é mesmo muito complexa. Para além da necessidade da aprovação dessa nova lei, temos de levar em conta que o Brasil se alinhou à nova ordem mundial e à agenda global no combate ao tráfico de drogas, ao tráfico de seres humanos e ao contrabando – o que inclui a aprovação de uma lei antiterrorismo e, por conseguinte, um maior controle de fronteiras. Essa é uma questão que demanda muita atenção e mobilização, já que se trata de uma política de criminalização de imigrantes e de judicialização da questão migratória que está sendo exportada por agências multilaterais em nível global. Com a continuada vigência do Estatuto dos Estrangeiros e essas políticas globais, estamos no pior dos mundos. A Polícia Federal pode acionar o Estatuto dos Estrangeiros (como o fez no caso da professora italiana da UFMG), as políticas globais que o Ministério da Justiça há tempos referenda reificando a noção de tráfico de pessoas e a lei antiterrorista, que foi usada para deportar o físico argeliano contratado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Vale lembrar que, no cenário europeu, restrições à circulação começaram a se expandir ainda no final da década de 1980 com o Tratado de Schengen, que criou categorias duais, diferenciando cidadãos comunitários (com direito à entrada e circulação e cidadania plena na comunidade europeia) e cidadãos extracomunitários. Esses cidadãos extracomunitários também são distinguidos por meio de categorias duais: os “legais” ou “regulares” (migrantes documentados e, portanto, com direitos à entrada e circulação na União Europeia e às políticas interculturais) e os “ilegais” ou “irregulares” (migrantes sem os adequados documentos e sem direitos à entrada no espaço comunitário europeu). Nos Estados Unidos, historicamente país de imigrantes e cujas leis oscilaram entre a abertura e o fechamento dos portões de imigração de acordo com os fluxos da economia, a associação entre migrantes e terrorismo iniciou-se em 1996, com a bomba de Oklahoma, e se intensificou no pós-setembro de 2001. Se as legislações migratórias de diferentes países do globo historicamente diferenciaram os migrantes “desejáveis” dos “indesejáveis”, desde a década de 1990 começou a prevalecer nos países centrais a equação entre migração, terrorismo e tráfico, legitimando a produção da ilegalidade intrínseca às suas políticas draconianas. Nem os refugiados de guerra escapam dessa conceitualização e da imanente discriminação e xenofobia. A fronteira transformada em campo de batalha, dramaticamente simbolizada por muros de segurança, como a que separa os Estados Unidos do México, se torna metáfora de uma globalização da desesperança. Ao mesmo tempo, floresce dessa produção da ilegalidade uma lucrativa indústria das migrações.
Qual é a relação entre essas políticas e o neoliberalismo?
A meu ver, existe uma relação intrínseca entre essas e as atuais políticas e ideologias neoliberalistas, marcadas pela flexibilização do capital e do trabalho e pela terceirização. Concordo com as análises da socióloga holandesa Saskia Sassen, indicando o surgimento de uma nova lógica de expulsões na atual conjuntura do capitalismo global, que está aumentando o número de despossuídos, considerados descartáveis. No âmbito das migrações, como mostra o sociólogo argentino Eduardo Domenech, a partir das décadas de 1980 e 1990, juntamente com o processo de regionalização da política migratória ligado à constituição de um regime global de controle das migrações internacionais, as políticas de regulação tecnocrata de fluxos migratórios engendraram novas formas de organizar e classificar os fluxos migratórios, adotadas também pelos países latino-americanos. As antigas categorias e classificações de indesejáveis foram subsumidas nas “novas ameaças” estabelecidas pela comunidade internacional, como o narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de pessoas e a migração indocumentada.
Nesse contexto, as deportações da atualidade se tornaram parte substantiva de um regime de controle das migrações que articula (e não separa) “securitização” e humanitarismo. Mas o humanitarismo não só é insuficiente, como também tende a tratar migrantes e refugiados como “vítimas” passivas, e não como pessoas. Nesse contexto, as diferentes formas de expulsão (rejeições nas fronteiras, devoluções, retornos assistidos e voluntários) se tornaram parte de estratégias para combater os novos indesejáveis: não por acaso, exatamente aqueles imigrantes considerados, pelo dogma tecnocrata, como ameaças potenciais que nem sequer oferecem vantagens para a ordem estabelecida e são, portanto, descartáveis.
Levando em conta a atual guinada conservadora em várias partes do globo, essas políticas estão acirrando o racismo e a xenofobia contra imigrantes e refugiados. Mas, ao mesmo tempo, elas também resultaram na formação de movimentos sociais contra esse status quo, formados por diferentes segmentos da sociedade civil (mulheres, negros, Igreja, sindicalistas, imigrantes e refugiados) que lutam por uma “cidadania universal”, “nem um direito a menos para os imigrantes” e por um “mundo sem fronteiras” e, portanto, sem muros. O Fórum Social Mundial das Migrações, surgido em 2004, é um exemplo global dessas mobilizações. Julgo que essas mobilizações e suas demandas são essenciais e resultam pelo menos em algumas vitórias.
Essas políticas discriminatórias também afetam as populações locais, não é mesmo?
Sim, temos de levar em conta que essas políticas de controle e disciplinamento não se restringem aos migrantes transnacionais. São dirigidas também às populações urbanas das favelas e periferias das grandes cidades, assim como a indígenas e outras populações tradicionais. O etnógrafo Gabriel Feltran, por exemplo, ressalta que, até a década de 1970, os moradores das periferias e favelas eram classificados como “trabalhadores”, ao passo que hoje são considerados “criminosos” e “marginais” pelas políticas globais urbanas recorrentemente exportadas. As políticas de controle e até assassinatos no Rio de Janeiro e em São Paulo seguem esses padrões globais. Portanto, o paradigma da securitização, infelizmente, é mais abrangente nestes tempos de primazia do capital, como mostram os casos das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Vivemos conjunturas difíceis, mas sempre há mobilizações e, no processo, algumas vitórias contra o status quo. No passado, o fascismo e o nazismo foram derrotados. Dessa era sinistra, surgiu o humanismo pós-Segunda Guerra Mundial, simbolizado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, com especial atenção aos refugiados. Paradoxalmente, esses direitos estão sendo transgredidos na própria Europa, especialmente no que tange aos refugiados. Mas, mais cedo ou mais tarde, as mobilizações contra essa situação eventualmente acabarão por derrubar muros. Esse é o processo da história. Como observa o historiador Sandro Mezzadra, precisamos considerar as migrações como um movimento social que faz parte das estruturas sociais, culturais e econômicas e, portanto, como força criativa dentro dessas estruturas. Há, desse modo, uma relação dialética entre essas políticas de controle e disciplinamento e as mobilizações sociais de migrantes, refugiados e outros deslocados.
O grande problema dos movimentos sociais da atualidade são sua fragmentação. São movimentos que se globalizam, mas focalizam questões específicas: ecológicos, indígenas, migratórios, refúgio, e assim por diante. Aparentemente, é sobretudo no nível local que esses movimentos dialogam e se unem. Assim, as transformações têm mais chance de se dar em nível local, a partir das cidades, por isso a importância de políticas locais mais humanas e justas, que reconheçam a importância das migrações (forçadas ou não) para as cidades, não somente no quesito trabalho, mas também do ponto de vista cultural, gastronômico e das artes. As cidades se tornam mais interessantes e cosmopolitas com a inserção de imigrantes e refugiados na vida cotidiana. São Paulo, como outras metrópoles, serve como exemplo.
Rodrigo Farhat é jornalista.