E quem os chineses não surpreendem?
Em coletânea de colunas publicadas no jornal inglês “The Guardian”, Xinran se esforça para explicar as diferenças entre a China e o Ocidente – e acaba engrossando o coro dos atarantados pela complexidade e velocidade das mudanças naquele gigante asiáticoMarina Della Valle
A TV noticia que milhões de chineses cruzaram os braços por três minutos em luto pelas vítimas do grande terremoto do último 12 de maio, que contabilizava 69.130 mortos até terça-feira passada. O colega ao lado não resiste à piada: “Isso prova que eles realmente poderiam pular todos ao mesmo tempo”. A brincadeira é bem antiga, mas sobrevive. Afinal, “eles” -1,3 bilhão de chineses – e a China jamais cessam de surpreender os ocidentais, seja pela extensão de suas perdas ou de suas conquistas, pela diversidade de sua cultura milenar, pela complexidade de sua(s) língua(s), de suas transformações sociais, políticas e econômicas.
A julgar por O que os chineses não comem, coletânea de colunas publicadas no jornal inglês The Guardian, pela jornalista e escritora Xinran, a China também não cessa de causar espanto nos próprios chineses. Nascida em Pequim, Xinran vive na Inglaterra desde 1997. Volta para a China ao menos uma vez por ano e a cada viagem surpreende-se com a rapidez das mudanças na sociedade chinesa – e também com a persistência de velhos comportamentos que gostaria de ver esquecidos para sempre.
Xinran apresentou o primeiro programa de rádio chinês de aconselhamento pessoal. O programa, uma novidade no país, onde recato e discrição eram (e ainda são, em menor escala) exigidos das mulheres, foi um sucesso. Centenas de cartas mensais traziam relatos que mostravam uma China que muitos chineses desconheciam ou pensavam ser coisa do passado. Xinran investigou vários dos missivistas, e as histórias que recolheu geraram seus livros As boas mulheres da China e Enterro celestial (ambos publicados no Brasil pela Cia. das Letras). Miss Chopsticks, seu último livro, é baseado em lembranças de sua família. Todos se tornaram best-sellers internacionais.
A maioria das crônicas compiladas em O que os chineses não comem trata das diferenças entre a China e a Inglaterra, que Xinran muitas vezes descreve como “um abismo”. A extensão desse abismo, porém, faz com que o escopo dos temas vá das peculiaridades gastronômicas que deram título ao livro até questões levantadas por famílias ocidentais que adotaram meninas chinesas abandonadas por força da política de um filho só e das mães forçadas a abrir mão dessas crianças. Este último assunto obteve tanta repercussão que motivou a autora a criar uma ONG, a Mother Bridge, dedicada principalmente a prestar assistência a mães biológicas e adotivas e promover uma aproximação cultural entre elas.
Partilhando espantos
Xinran nasceu em uma família abastada, que foi separada e sofreu bastante com a ascensão de Mao ao poder e a Revolução Cultural. Um de seus assuntos principais é o papel da mulher na sociedade chinesa, que permeia suas crônicas na forma de personagens diversos, mas igualmente interessantes. Esse mosaico de vozes femininas chinesas esbarra inevitavelmente na dor, que aparece no desespero da camponesa que foi obrigada a abandonar a filha frente às meninas bem criadas que encontrou na cidade; no bilhete suicida de uma moça taxada de “má” por ter sido beijada na testa por um rapaz; no comentário da faxineira do hotel que avisa à autora que o chá que ela bebe custa o equivalente ao salário mensal de todos os membros da família dela. Apesar do teor espinhoso do assunto, Xinran se afasta de outra autora chinesa tornada best-seller internacional, Jung Chang, de Cisnes selvagens, na maneira cândida com que busca respostas, uma aparente ingenuidade que subitamente expõe diferentes texturas e aspectos de um fato. E apesar de a autora estar o tempo todo presente no texto, não há rancor em suas palavras – há, quando necessário, indignação.
Já em seus momentos mais leves, O que os chineses não comem aborda com bom humor os reflexos da cultura ocidental na China, como a comemoração do Natal (anunciado no começo por ambulantes como “Missa Maluca”) e os variados toques de celular em voga no país; as perguntas e noções dos ocidentais sobre a China e dos chineses sobre os ocidentais; e as experiências da autora ao enfrentar as diferenças culturais entre a China e a Inglaterra. Quando narra suas últimas viagens ao seu país natal, Xinran registra seu espanto com a velocidade das mudanças, a dificuldade de conciliar suas lembranças com o que vê no presente. Mas Xinran acredita fielmente na construção de pontes – palavra que usa com freqüência – entre a cultura chinesa e a ocidental, e é com graça que convida o leitor a passear pelos aspectos pitorescos das duas, partilhando espantos.
O que os chineses não comem