E se tivéssemos acreditado nas Nações Unidas em 1990…
Sob a bandeira das Nações Unidas, o envio de capacetes azuis tende a se generalizar. Mas com qual finalidade? Para evitar qualquer desvio, seria conveniente ao menos aplicar à risca a Carta de São Francisco. Em 1990, por exemplo, o curso da crise do Golfo teria sido mudado…
Imaginemos… uma manhã de novembro de 1990, os cinco delegados dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas se encontram na residência do representante do Reino Unido para preparar uma reunião à tarde. Eles redigem a Resolução n. 678, “Iraque e Kuwait”, autorizando o uso da força. No texto, eles põem peso nas palavras: “aplicando-se o Capítulo VII”, “autoriza os Estados-membros… a usar de todos os meios necessários”. O contato é permanente entre os governos: os “aliados” agirão em conjunto, a Rússia dará seu aval, a China se absterá. O texto está pronto. Os delegados estão relaxados. Eles tomam café da manhã juntos e chegam serenos à sessão em curso, da qual os dez membros não permanentes vão servir de avalistas para uma gigantesca operação militar contra o Iraque, já largamente preparada no campo.
Mas o Conselho é aberto com um trovão: um dos representantes dos membros não permanentes revela que sete deles tiveram uma reunião paralela pela manhã e definiram sua posição: eles também condenam a anexação iraquiana do Kuwait e são a favor de uma ação internacional com base no Capítulo VII, mas exigem a aplicação escrupulosa da Carta de São Francisco como marco legal dessa ação.1 Porém, de seu ponto de vista, não houve a aplicação correta do Artigo 42, que só permite a ação armada se “o Conselho de Segurança estimar” que medidas econômicas são inadequadas. Eles exigem um relatório circunstancial e público sobre os efeitos atuais e previstos do embargo.2 De outro lado, o projeto de resolução do Conselho de Segurança (§ 4) que pede aos Estados envolvidos que informem regularmente as disposições tomadas lhes parecia uma ruptura com os artigos 43 e 50, em particular com a constituição prévia de forças armadas das Nações Unidas (Art. 43),3 com a exigência de que o Conselho de Segurança estabeleça os planos para o uso dessa força armada (Art. 46)4 e que convide a essas reuniões todos os membros das Nações Unidas não membros do Conselho de Segurança e que forneceriam forças armadas para esse propósito (Art. 45). O orador conclui que, como essas condições não foram satisfeitas, os sete Estados envolvidos votarão contra o projeto de resolução dos membros permanentes.
As decisões do Conselho de Segurança (que é composto de quinze membros, cinco permanentes e dez não permanentes) devem ser aprovadas (Art. 27) por nove votos (entre os quais os dos cinco membros permanentes). O veto de sete membros não permanentes não deixa mais do que oito Estados em favor da resolução, que então não pode ser adotada. A notícia cai sobre os teletipos, e o mundo inteiro anuncia: “Obstrução de minoria no Conselho de Segurança”.
O choque psicológico e político desperta a Assembleia Geral em sessão ordinária por semanas, e esta se pronuncia a favor de uma reativação do Comitê de Estado-Maior das Nações Unidas e da negociação, sob os auspícios desse mesmo comitê, dos acordos necessários para a constituição de forças armadas.5
Engajado demais no braço de ferro com o Iraque, o governo norte-americano é forçado a se conformar com as condições impostas, a ponto de o governo francês, seduzido pelo legalismo dos membros não permanentes, aliar-se a eles, e seu presidente, em um discurso de grande impacto midiático, declarar naquela mesma noite: “Toda a Carta das Nações Unidas, mas nada que não seja a Carta”.6
A situação então se modifica profundamente. O secretário-geral da ONU se sente investido de uma nova legitimidade. O embargo é seguido com grande cuidado. É elaborado um relatório muito detalhado sobre as condições incertas de seu sucesso. Acordos militares precisos são concluídos, especificando quais são as forças colocadas à disposição do Conselho de Segurança. O Comitê de Estado-Maior está pronto a exercer suas funções de comando comum.
Uma ação militar é finalmente decidida para pôr fim à anexação do Kuwait. Ela é inteiramente gerida pelo Conselho de Segurança e o Comitê de Estado-Maior. Os combates são estritamente concentrados contra tropas iraquianas presentes no Kuwait.7 A opinião pública internacional, incluindo os países árabes, alia-se a essa ação coletiva. O Kuwait é libertado. Não houve nenhum combate no Iraque nem morte de civis entre a população iraquiana.8 O embargo contra esse país é retirado.
Grande esperança
Uma grande esperança se instala em todos os povos. Se a “segurança coletiva” é possível em um caso desse gênero, as seguranças alimentar, econômica, sanitária e ambiental não seriam também?
O fim da Guerra Fria traz então seus frutos, e um espírito público internacional é colocado em prática em respeito escrupuloso aos procedimentos prévios quando são adequados e com a preocupação de sancioná-los ou de reformá-los quando não o são.
O Conselho de Segurança aperfeiçoa o mecanismo de manutenção da paz e examina com cuidado todos os casos de ameaças contra a paz ou de ruptura da paz, incluindo violações em massa dos direitos humanos. Ele distingue, então, sob bases motivadas e depois de um trabalho com o Comitê de Estado-Maior, os casos em que as forças de manutenção da paz são suficientes e aqueles em que é justificada uma ação armada com objetivo de punir um Estado ou com fins humanitários, com base no Capítulo VII da Carta.9
Mas paralelamente, e conforme o Artigo 26 da Carta, o Conselho de Segurança assume a responsabilidade pelas questões de regulação dos armamentos (estas “devem se desviar apenas o mínimo de recursos humanos e econômicos do mundo”).10
Enfim, a Assembleia Geral, estimulada por essa renovação, trabalha no projeto de criação de uma nova instituição especializada, o programa da Organização das Nações Unidas pelo Desarmamento-Desenvolvimento (Onudd), articulado a uma proposta de reforma das instituições financeiras mundiais, de maneira a fundá-los sobre um princípio democrático (um Estado, uma voz), e à criação de uma Organização do Comércio Internacional baseada em outros princípios que diferentes daqueles da Organização Mundial do Comércio (OMC).11 As reformas administrativas e orçamentárias das Nações Unidas, tanto reclamadas, são por fim operadas.12
Para coroar o edifício e sob a base do Artigo 109 da Carta, a Assembleia Geral (maioria de dois terços) e o Conselho de Segurança (nove membros quaisquer) pedem uma conferência geral de revisão. Cada um sabe que, se esse pedido é possível sem o acordo dos membros permanentes, por outro lado, estes retomam seu poder específico quando da revisão, que, uma vez preparada, não pode entrar em vigor sem ter sido ratificada por eles. Porém, o novo clima é tal e o sentimento frágil do nascimento de um mundo novo é tão exaltante, que a supressão da categoria de membros permanentes é aceita como base dessa revisão.13
“Mas paralelamente, e conforme o Artigo 26 da Carta, o Conselho de Segurança assume a responsabilidade pelas questões de regulação dos armamentos.”
Paralelamente, muitos países que ainda não o tinham feito, apressam-se em aceitar a jurisdição obrigatória da Corte Internacional de Justiça de Haia.14 A França, que tinha denunciado a cláusula de jurisdição, volta atrás. A Corte é reorganizada em câmaras especializadas, e sua autoridade é reforçada. Ela é encarregada de controlar a legitimidade de atos tomados por órgãos da ONU com relação ao próprio texto da Carta.15 Seu papel é estendido ao controle jurisdicional de arbitragem internacional. A delimitação das fronteiras entre o Iraque e o Kuwait é levada, por um pedido de parecer, diante da Corte, pois o Conselho de Segurança reconheceu ao mesmo tempo a necessidade de ajustar a questão e sua incompetência de fazê-lo.16
Tudo isso era possível, mas não aconteceu, nem na conjuntura descrita nem na preparação da intervenção na Somália, ou ainda, e sobretudo, para consertar esgarçaduras posteriores à dissolução da Iugoslávia ou acalmar uma escalada de violência no Cáucaso. Por quê? Houve nesse sistema mundial aspectos bem diferentes:
• certas regras e mecanismos levam consigo efeitos perversos e devem ser modificados (direito de veto na ONU, procedimento nas instituições financeiras);
• regras saudáveis e válidas foram inaplicadas ou contornadas (todo o mecanismo de manutenção da paz);
• outras foram construídas nas três primeiras décadas de existência da ONU, quando o bloco dos Estados socialistas fazia ecoar uma voz frequentemente positiva (ação em favor da descolonização) ou em seguida quando os países do terceiro mundo, impregnados pelo entusiasmo de jovens soberanias, mostravam-se criativos e exigentes (nova ordem econômica mundial, soberania permanente sobre as riquezas naturais, reforço do direito dos povos).
“A delimitação das fronteiras entre o Iraque e o Kuwait é levada, por um pedido de parecer, diante da Corte, pois o Conselho de Segurança reconheceu ao mesmo tempo a necessidade de ajustar a questão e sua incompetência de fazê-lo.”
O que fazer
Para mudar as coisas, a via é estreita e reside em dez proposições, das quais é preciso convencer as jovens gerações, que, por todo o mundo, dominarão o século XXI e terão talvez a coragem de sacrificar seus interesses individuais para a construção de uma sociedade solidária.
De uma parte, será preciso inventar um sistema internacional radicalmente novo, cujo espírito visionário ainda não foi esboçado, para imaginar as articulações necessárias entre os indivíduos e os grupos de diferentes dimensões em suas relações entre eles e também seus laços com os territórios.
Isso vai acontecer sem dúvida pela superação do mecanismo de agressão – legítima defesa concebida para ajustar relações interestatais e que a crise dos assuntos do direito internacional torna inoperante.
Será preciso também dar mais conteúdo à palavra “paz” e submetê-la a garantias de uma cidadania universal (a definir) e à articulação (a encontrar) entre essa cidadania de base e outras ligações continentais ou nacionais.