"É um estado de exceção permanente"
Leia a integra da entrevista dada por José Arbex Jr para matéria “O Estado brasileiro contra o movimentos sociais”
De acordo com o doutor em História Social e jornalista José Arbex Jr, a repressão contra revoltas espontâneas e movimentos sociais deve ser analisada dentro da história brasileira. Leia a integra da entrevista para matéria "O Estado brasileiro contra os movimentos sociais"
Como você observa as manifestações de junho?
Bem. Em primeiro lugar eu acho que vocês têm que entender o que aconteceu em junho de 2013. E é muito difícil de ser compreendido porque tem razões de que chamo de história lenta e de momento conjuntural. As duas coisas se combinando. Vamos por partes.
Um texto muito importante para explicar isso foi da Rosa Luxemburgo, quando ela analisa dois fatos aparentemente sem explicação lógica. Ela pega em 1902 uma revolta local que começou no interior do Azebaijão, com uma categoria secundária de trabalhadores —imagina uma categoria tipo trabalhadores do couro do Piauí—. E essa movimentação em 1902 conquistou o apoio da sociedade local, expandiu-se regionalmente e foi ela que desembocou numa linha contínua de mobilizações até a revolução de 1905, que levou à criação do soviete de São Petesburgo, depois Petrogrado, depois Leningrado.
A Rosa Luxemburgo analisa isso, fala dessa manifestação, e aí ela fala assim: ao mesmo tempo, na Alemanha em 1910, sindicatos ultra-organizados das categorias mais importantes da Alemanha decretaram greve geral e não aconteceu absolutamente nada. Por quê? Por que é que no Azerbaijão uma mobilização começa numa categoria completamente secundária para a economia, sem nenhuma organização, sem nenhum partido e esse negócio cresce e vira o soviete de Petrogrado, a Revolução Russa de 1905? E, na Alemanha, uma organização metalúrgica super-organizada convoca uma greve geral e não acontece nada.
É impossível responder, de acordo com a Rosa Luxemburgo, sem você sacar o que está acontecendo nas camadas mais profundas da sociedade: um descontentamento, um sentimento de humilhação, de insatisfação, de inconformismo, que vai pegando as camadas mais profundas da sociedade e em um determinado momento aquilo eclode com uma força inacreditável, porque você não conseguia enxergar essa força. E ela [Rosa Luxemburgo] fala muito da humilhação, do sentimento de segregação econômica a que essa população é submetida.
Fazendo um paralelo com o Brasil, vamos pegar a categoria dos trabalhadores do petróleo, que em 1995 fizeram uma greve que durou 40 dias no governo FHC e não aconteceu nada. E estou falando dos trabalhadores do petróleo, que é a categoria de ponta da economia brasileira. Aí, em junho de 2013, estoura as jornadas de junho.
Eu quero fazer essa comparação. Na minha opinião o que aconteceu em junho foi a eclosão desse sentimento de uma população que está cansada de ser humilhada, que não suporta mais morrer na fila do SUS… Aquela palavra de ordem que pegou: 'nós queremos escola padrão Fifa', 'queremos saúde padrão Fifa', que para a gente que militava em 1970 na época da Copa do Mundo, a pior fase da Ditadura Militar, quando o Medici torturava e matava a dar no pau, teve a Copa do Mundo e o Brasil inteiro parou.
Você acredita em uma sequência destes protestos?
Na minha opinião, as jornadas de junho não acabaram. Nós vimos nos meses subsequentes como o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, não conseguia entrar no apartamento dele, durante a Copa nós vimos tanques de guerra passando pelas ruas de Recife para conter a população. Quer dizer, eu acho esse sentimento não acabou.
Eu acho que é o contrário, as jornadas de junho estão latentes, prontas para eclodir em alguma outra circunstância. E a elite brasileira sente isso, que é essa nova direita. É uma elite qual é a diferença entre você apoiar em tese a liberdade de expressão e no momento em que a liberdade de expressão se expressa, quando você se depara com ela, aí você é obrigado a se posicionar até que ponto você aceita a liberdade de expressão ou não. Porque uma coisa é você aceitar a liberdade de expressão no sentido mais abstrato, eu em princípio apoio a liberdade de expressão, outra coisa é quando essa liberdade se expressão se manifesta na rua na forma do povo que não quer mais ser humilhado. São duas coisas diferentes. Então, quando o povo não quer mais ser humilhado e se expressa na rua, aí a liberdade de expressão tem que ser limitada.
A maneira pela qual a elite brasileira trabalhou foi muito inteligente: classificou a liberdade de expressão como vandalismo. E isso tem um significado muito perigoso porque ela conseguiu fazer isso.
Você tem hoje amplos setores da classe média que hoje acreditam que, de fato, a liberdade de expressão só deve ser respeitada quando se dá nos marcos da ordem institucional. Você tem uma parte da população brasileira que se assustou com aquilo que viu nas ruas. E a classe média assustada, na minha opinião, é o que levou o Alckmin a ganhar no primeiro turno aqui em São Paulo. É o susto que a classe média levou e que a mídia soube, de uma maneira extremamente competente e bem articulada, transformar em uma convicção. Então, defendemos a liberdade de expressão, a liberdade de manifestação, desde que não afete o patrimônio ou a ordem constituída. E isso foi transformado em um senso comum. Hoje em dia é muito difícil você defender em qualquer lugar o direito que tem a juventude de destruir a vitrine dos bancos.
Isso diz respeito à conjuntura agora. Mas eu acho que tem um outro componente deste processo que é a história lenta, que é o Brasil do latifúndio. E este Brasil do latifúndio —dos pequenos grupos que controlam as terras no país, a mídia e os bancos— está ligado à história lenta do Brasil. E eu acho que a história lenta do país não suporta a emergência da indignação popular. A elite brasileira só tem uma resposta para a indignação popular é o sangue. Quer dizer, é isso o que nós vimos em Canudos. Canudos é a mais profunda revolta brasileira, mais do que Palmares…
Então, eu acho que o que houve em 13 de junho, de lá para cá, foi o encontro do Brasil conjuntural com o Brasil histórico, neste sentido da história mais lenta, que vai se arrastando durante séculos e que em um dado momento o descontentamento da população, o sentimento de indignação se combinou da história lenta com a história breve brasileira. Do ponto de vista do Brasil. Mas eu não acho que, por sua vez, este movimento esteja desligado da Praça Tahir. Porque, na verdade, existe uma grande movimentação mundial. […] Para Marx, o limite do capital é o capital. E acho que o que aconteceu em junho e julho é o encontro destes três momentos: da conjuntura brasileira, da história lenta do Brasil e do internacionalismo do capital. Essas coisas se juntaram aqui no Brasil de uma forma fantástica, e é isso o que explica 2 milhões de pessoas nas ruas nas jornadas de junho e que, na minha opinião, não acabou ainda. Esse processo ainda vai voltar a eclodir.
Como você explica, então, que o Partido dos Trabalhadores (PT) foi forjado em lutas do tipo faça coro com a repressão exigida pelas elites brasileiras?
Pois é. O problema é esse. O problema é a defesa da ordem institucional. Quando eu digo que os três momentos históricos se encontraram, o que eu quero dizer é o seguinte: estamos vivendo um momento no país em que o Brasil em desordem foi para a rua. Canudos era a desordem. Canudos questionava toda a estrutura da República que foi criada pelo decreto militar do Deodoro da Fonseca. A face desse pessoal que foi para a rua agora representa os últimos estamentos da sociedade brasileira, a parte mais miserável, aquela que não é organizada, o pessoal que não tem carteira de trabalho, ao passo que os partidos representam a ordem institucional. Este dilema do PT não é de hoje. O PT sempre foi o partido do funcionalismo público. O PT nunca chegou nos rincões brasileiros. Quem chega nos rincões brasileiros é o bolsa família. E isso marca uma diferença entre lulismo e petismo. O cara que recebe o bolsa família vota no Lula, sem nenhum intermédio do PT.
O PT mesmo nunca foi o partido das massas brasileiras. Ele foi de um certo setor das massas organizadas, que é o sindicalismo do ABC e depois o funcionalismo público.
Agora, como começam os processos revolucionários? Quando mais setores da sociedade vão ganhando simpatia com o núcleo reivindicatório, que é o processo que a Rosa Luxemburgo descreveu. Ou seja, a revolução acontece quando esses setores da população que nunca foram organizados vão para a rua. Isso é a revolução, não é a dos setores organizados.
Então, o que é que aconteceu no Brasil? Essas camadas mais profundas da sociedade brasileira foram para o pau. E é isso que está metendo medo nos caras. É isso que está metendo medo no PT. O PT é um partido da ordem institucional.
Como é que você entende essa mudança até chegar a 2 milhões de pessoas, se em um primeiro momento tentavam deslegitimar o movimento dizendo que eram “filhos da classe média” e depois assumiram que vinham essas pessoas que não estavam organizadas?
A luta do MPL se soma a um descontentamento geral, que se soma a um crescente de greves e outros movimentos no Brasil.
Na minha opinião, o que está em curso hoje no Brasil é o medo que tem a elite, a classe média brasileira e mesmo um partido da ordem, que é o PT, quando vê de frente a face do Brasil, que é a face do Brasil profundo, que é Canudos, que é o cara que morre na fila do SUS, que é o morador da favela que fala: ‘eu não vou mais ser humilhado, ninguém vai me espancar mais’. Quando a face desse cara começa a aparecer, aí acabou a liberdade de expressão, aí acabou direitos humanos, aí a conversa é outra.
Mas não é irônico que essas pessoas, do Brasil profundo, se revoltem justamente no momento em que o governo está nas mãos de um partido que minimamente reconheceu os direitos dessas pessoas que, por exemplo, antes passavam fome e agora não passam mais?
Eu acho lógico. Porque, se você é tratado como um cão sempre, você acaba se acostumando a ser espancado. Agora, no momento em que você começa a receber alguma coisa… quando alguém sai de uma situação extrema e começa a conquistar certos direitos, ele não quer perder estes direitos. Ele quer mais direitos. Eu acho perfeitamente natural.
Agora, qual é o limite disso? É o capital financeiro, porque, se você continuar cedendo os direitos para a classe trabalhadora, chega uma hora que o capital fala: ‘o cidadão, nós não estamos brincando aqui, a mais-valia existe. Ganho real do salário mínimo em uma crise mundial do capital, você está louco?’. Então, chega uma hora que o capital vai e fala: ‘não, acabou a regalia’. E o povo: ‘ah, não, nós queremos mais. Por que é que nós vamos parar por aqui?’. Eu acho perfeitamente natural, normal.
Do ponto de vista popular, eu jamais aceitaria voltar a uma situação anterior. De jeito nenhum. Imagina, faz dez anos que nós estamos acostumados ao pleno emprego. Quando voltar a ter desemprego de novo, aí a coisa vai começar a ficar feia. O Trotsky dizia: ‘o único direito que o trabalhador tem é o direito ao emprego’.
O Lulismo seria uma maneira de gestão do status quo para evitar os conflitos de classe no Brasil. Mas junho e julho não mostraria que o lulismo bateu no teto?
Eu acho que o Lulismo bateu no teto naquele sentido que eu falei anteriormente: o capital agora vai começar a cobrar a fatura. Você está na crise mundial que você está e tem um país do terceiro mundo dando ganho real ao salário mínimo. Isso, do ponto de vista do capital, não tem a menor sustentação. Isso não tem como proseguir. Não tem como o Barack Obama conseguir aprovar o aumento de 50 centavos de dólar no salário mínimo dos Estados Unidos, enquanto o Lula dá o aumento do salário mínimo no Brasil.
Em que medida o descontentamento com o Lulismo batendo no teto não está relacionado com manifestações de ódio e intolerância em vez de atos como os de junho e julho de 2013?
Está totalmente relacionado. Quando surgiu o fundamentalismo religioso moderno? No final do século XIX. Por quê? Porque veio a revolução industrial. Com a revolução industrial veio a revolução dos costumes, veio a revolução da moral. Então você tem a revolução dos costumes, de valores sedimentados ao longo de séculos, é lógico que eu vou, se sou um sujeito conservador e temo pela minha família por tudo o que está acontecendo, eu vou me agarrar naquilo que eu considero o porto segunro das minhas convicções para enfrentar as minhas mudanças. Então, estou vendo um monte de gente que julgavam asquerosa indo para a rua, exigindo seus direitos e arrebentando banco, o racismo para essas pessoas aparece como uma solução.
Você acha que o Estado brasileiro vai responder com a mesma truculência a novos grupos políticos que entrarem em cena?
Depende. Se a esquerda não souber responder, nós vamos ter corrente de massa fascista no Brasil.
Nós já passamos da fase da criminalização da pobreza. Nós já não estamos nessa fase. O Brasil hoje é exportador de tecnologia de repressão a movimentos urbanos. Por que é que eu digo isso? Em primeiro lugar, se você pegar as operações no Morro do Alemão [no Rio de Janeiro], as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], elas são herdeiras diretas da Minustah, que é a operação do exército brasileiro no Haiti.
Oficiais brasileiros são treinados por oficiais israelenses e oficiais dos Estados Unidos, armados por Israel e pelos EUA, que se especializaram em operações urbanas tendo como laboratório a Palestina. Então, há vínculo direto entre as táticas para reprimir as populações nos morros do Rio e aquilo que se faz na Palestina.
Atualmente, tem uma força da ONU [Organização das Nações Unidas] que atua no Congo com 26 mil soldados e que é a primeira vez que uma força da ONU tem permissão para interferir nos conflitos locais —é uma força de paz da ONU—, é a maior força organizada na história da ONU e quem comanda esta força é um general gaúcho.
Então, o Brasil já passou da fase da criminalização da pobreza. O que existe é uma operação de guerra contra a pobreza. E aí eu não sei direito se a expressão melhor é extermínio, limpeza étnica, guerra civil, eu não sei qual é a melhor expressão. Mas certamente não é a criminalização da pobreza. Já estamos um grau acima. E isso que eu estou falando não é palavra minha. O principal coordenador da Minustah, ele mesmo fala que as UPPs no Rio de Janeiro foram criadas em Porto Príncipe. Isso você combina com expediente de mandato de busca coletiva, que dá poder para a polícia intervir em qualquer caso situado no morro só porque está situado naquela região. Quer dizer, é a punição coletiva, que é totalmente inconstitucional, porque a Constituição garante a inviolabilidade do lar. Isso não é criminalização da pobreza, isso é guerra. É um estado de exceção permanente.