A universalização do acesso ao ensino superior no Brasil adota fórmula controversa
Mercado passou a recorrer aos cursos a distância como tábua de salvação. Ainda que o discurso seja universalizar o acesso, a prática tem se caracterizado pela qualidade duvidosa dos cursos ofertados, precarização da atividade docente, matrizes curriculares pasteurizadas e materiais didáticos muitas vezes deficientes e com conteúdo ultrapassado
O setor de educação (público ou privado, básico ou superior) é fundamental para o desenvolvimento do Brasil, na medida em que forma a força de trabalho que conduzirá grande parte da produção de riquezas do país por décadas e a partir do momento que é a principal ferramenta de ascensão social em uma país em desenvolvimento e repleto de mazelas sociais.
Se considerarmos os recentes dados censitários que comprovam que a população brasileira segue envelhecendo em ritmo acelerado e, por isso, apresenta uma quantidade decrescente de jovens a ingressar no mercado de trabalho, a formação dos “novos profissionais” de nível superior no país demanda ser de qualidade relevante. A pena é desperdiçarmos uma geração inteira e colhermos os frutos amargos desse erro por décadas.
Especificamente falando de ensino superior, o modelo brasileiro é bastante complexo e, da forma como foi concebido, muitas vezes acentua as desigualdades – embora ideologicamente sirva para o propósito oposto. Por exemplo, no Brasil, mais de 80% dos jovens estudam no ensino básico público, porém, quase o mesmo percentual, ao transitar para o ensino superior, precisa fazê-lo pagando mensalidades. Ou seja, o governo federal, responsável pelo ensino superior público, nunca conseguiu fazer a expansão do ensino superior público em níveis suficientes para atender às necessidades da nação.
Infelizmente, contudo, não há 80% de famílias brasileiras com capacidade financeira para arcar com esses custos. Reside nesse fato, portanto, a existência de uma dependência histórica de subsídios públicos ou privados para que o acesso de milhares de brasileiros e brasileiras ao ensino superior de qualidade seja possível. Ou as desigualdades serão ainda mais acentuadas.
Dessa forma, no Brasil, coube ao setor público não estatal (instituições comunitárias) ou ao setor privado, o preenchimento desse vácuo educacional. Muitas vezes são essas instituições que levam ao interior do país o avanço no padrão de desenvolvimento socioeconômico encontrado atualmente. Esse é o tamanho da importância em se pensar em preservar essas instituições, estimulá-las em direção à qualidade e incentivá-las a expandir suas atuações.
No entanto, não é o que se tem observado na última década.
O ano era 2015: o Brasil atravessava mais uma grave crise econômica e política. Os índices de desemprego estavam em elevação, as famílias aumentavam seus endividamentos, a população empobreceu mais com o achatamento da classe C e a capacidade de consumo de todas as classes sociais desabava.
No ensino superior, o governo federal, sem orçamento para manter as políticas públicas sociais, cortava drasticamente o acesso da população ao programa de financiamento estudantil (Fies) que, hoje, não chega a 5% do que foi em 2014.
Nos anos subsequentes, com relação ao ensino superior presencial, houve forte queda de ingressantes, guerra de preços, perda de margens operacionais das instituições privadas e públicas que cobram mensalidades, cortes de custos sucessivos e centenas de instituições, principalmente as isoladas no interior do país, começaram a ficar financeiramente deficitárias e inviáveis.
Ainda, em 2017 o governo federal criou o marco regulatório do EAD que, na prática, representou a quase absoluta ausência de regulação estatal nesta modalidade de ensino e que culminou num gigantesco desequilíbrio no setor. A partir desse momento, por meio de um crescimento exponencial e desordenado de polos de educação à distância pelo Brasil, esse mercado passou a ser amplamente dominado por vinte grandes grupos econômicos/educacionais que, em 2022, já detinham mais de 80% de todas as matrículas existentes no país, utilizando como estratégia comercial principal cobrar valores irrisórios de mensalidades.
Resumidamente, o mercado passou a recorrer aos cursos na modalidade a distância como tábua de salvação para atrair os estudantes que desapareceram em face ao cenário presencial supracitado. Ainda que o discurso seja universalizar o acesso à educação, levando o ensino superior aos recantos mais remotos do Brasil (o que é uma verdade), a prática tem se caracterizado muito mais pela qualidade duvidosa dos cursos ofertados, precarização da atividade docente, matrizes curriculares pasteurizadas, materiais didáticos muitas vezes deficientes e com conteúdo ultrapassado etc.
O que esse desequilíbrio causou no mercado do ensino superior brasileiro? (1) Demissão de quase um terço dos docentes, (2) falência de mais de mil instituições presenciais, (3) dificuldade financeira em centenas de instituições ainda ativas, (4) encerramento de um ciclo virtuoso de desenvolvimento socioeconômico local e regional de centenas de municípios cujas economias dependiam da existência das instituições de ensino localmente; e (5) milhares de egressos formados de maneira hipossuficiente para serem aproveitados pelo mercado de trabalho formal.
Em meio a esse cenário caótico, felizmente, temos assistido ao surgimento de relevantes iniciativas de prestação de educação superior na modalidade a distância e com preocupação legítima com a qualidade de formação dos egressos. São instituições de referências local e regionalmente que têm buscado servir de contraponto ao movimento nefasto de expansão não regulada da educação à distância brasileira. Essas instituições têm buscado atuar com produção atualizada e de qualidade do material didático, métodos de ensino diferenciados, valorização do professor e fiéis ao seu DNA de credibilidade, com matrizes curriculares e experiências pedagógicas relevantes.
Contudo, como dito anteriormente, todas essas centenas de instituições dividem, apenas, cerca de 20% das matrículas do segmento, o que dificulta o estabelecimento de ganho de escala necessário à construção de um modelo de educação a distância que realmente garanta a qualidade de formação do egresso.
Agora, cabe ao “novo” Ministério da Educação dizer a que veio e definir se atua da maneira legalmente estabelecida como agente regulador do mercado, realinha o equilíbrio entre as modalidades e as instituições de ensino (multiplicando os protagonistas desse mercado), delimita a atuação no segmento a distância em termos de cursos autorizados para essa modalidade ou se prefere fechar os olhos e aguardar o seu desgaste e posterior substituição, quer seja por meio das urnas, quer seja por meio de pressão política efervescente na sociedade, já inconformada com a gravidade que a situação do ensino superior no Brasil se encontra.
Grupos de trabalho, consultas públicas, simpósios, seminários etc. são excelentes formas de ouvir a sociedade. Mas no final da linha, a decisão final sobre o futuro desse mercado será uma decisão “solitária” do ministro.
Aguardemos… e oremos. Que vença o ensino superior de qualidade, que vença o Brasil!
Rodrigo Bouyer é avaliador do Inep e sócio da Somos Young.
Rodrigo, poderia citar quais são as instituições privadas que estão fazendo trabalho sério no EAD? Como estão valorizando os docentes? O setor privado precisa ser estimulado?! É importante dar nome aos bois…porque o que é possível observar a olho nu é que o EAD funciona como modalidade de certificação e não de formação. Os governos foram cúmplices, mas os empresários do setor exploraram a mercadoria educação até que, de educação, não sobrasse mais nada: nem formação, nem professor, nem conteúdo, nem avaliação, nem relação…nada!