Eclipse - Le Monde Diplomatique

LITERATURA

Eclipse

por Maria Valéria Rezende
31 de agosto de 2008
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Ela dava a volta por um lado da casa, ele partia correndo na direção oposta, mas era no armário de tia Argentina que acabavam os dois, fundidos naquele silêncio e naquela imobilidadeMaria Valéria Rezende

Senta-se na cama e abre a caixa de madeira marchetada, presente dele para os 15 anos dela. Aliás, o único presente de verdade que ele mesmo escolheu, não comprado pela mãe para ele dar.

Ana Clara examina meio distraída as muitas páginas arrancadas de revistas, todas com fotografias dos artistas de cinema vestidos na farda branca da marinha americana, que inundaram os filmes da década pós-guerra. Num canto da caixa, uma latinha de pastilha Valda, meio enferrujada, e uma fotografia em branco e preto de um grupo de crianças, mero instantâneo sem nenhuma arte, em que duas cabecinhas estão emolduradas por um canhestro círculo de tinta vermelha.

Folheia tudo aquilo como se fosse um livro várias vezes lido e relido. Já não são gestos nem lembranças que emocionem, apenas um hábito para passar o tempo cada vez que deseja eclipsar-se da sala, trancando-se no seu quartinho. Lá fora, a festa já vai a pleno vapor, esperando-se apenas a chegada de Murilo e Beatriz para cantar-se parabéns, apagar-se o bolo e o conjunto de chorinho começar a tocar. Bodas de ouro dos avós, tinha de ser chorinho.

Nem se lembra do antes. Nas suas mais longínquas memórias ele está sempre. Todo o resto de sua infância perdeu-se numa nebulosa indefinida. Ele é sua lembrança mais antiga e nítida.

O que lembra é a maravilhosa sensação de completude, de realidade densa e excludente de todo o vago mundo que ficava de fora daquele armário, quando ali metiam-se os dois, ela e Murilo, nas brincadeiras de esconder. Ninguém mais, em todo aquele bando de crianças que invadia a chácara dos avós nas férias, teria a estapafúrdia idéia de esconder-se no guarda-roupa de tia Argentina, nem sequer de entrar em seu quarto. Tão esquisita, brava que ela era! Pois teve-a Murilo, talvez por viver longe e não conhecer bem a fama da tia bruxa.

Ele abria com cuidado a porta do quarto quando Ana Clara, buscando também esconderijo, dobrou a esquina do corredor e o viu. Murilo lhe fez sinal de que se calasse e o acompanhasse.

Inaugurou-se assim a experiência mais fundamental de sua vida, a única vida real que viveu até hoje. O guarda-roupa era pequeno, escuro e cheirava a mofo. Murilo, muito crescido para sua idade, ocupava quase todo o espaço lá dentro e ela só cabia porque ele a enlaçava com os dois braços e a apertava bem junto dele. E suspendia-se o tempo, a luz, o movimento, o som. Os dois imóveis, ela sentindo o calor do corpo dele, a delícia do cheiro dele, suor, hortelã e sabonete Eucalol, a umidade da franja de cabelo dele empapada de suor contra a testa dela. Só isso, até que ouvissem os gritos dos outros chamando por Murilo. E isso era tudo, a concentração suprema da felicidade. Os dois, no escuro.

Desde então, sem que nunca trocassem uma palavra a respeito, foi sempre assim enquanto perdurou entre eles a brincadeira de esconde-esconde, que o passar do tempo fatalmente haveria de soterrar. Ela dava a volta por um lado da casa, ele partia correndo na direção oposta, mas era no armário de tia Argentina que acabavam os dois, fundidos naquele silêncio e naquela imobilidade.

Fora dali, apenas algum olhar cúmplice, de vez em quando, mais nada. Só uma vez, quando perdeu o primeiro dente, sem nada explicar, ele lhe entregou a latinha de pastilha Valda com o dentinho tilintando lá dentro. Um ano depois, foi a vez dela presenteá-lo, sempre sem palavras, com o seu primeiro dente perdido, acondicionado num lindo saquinho que Natália tinha jogado na cesta de papéis do quarto das meninas, de plástico branco, com folhas verdes e flores vermelhas e a palavra “tampax” impressas. Era lindo o saquinho, que se fechava puxando um cordão de seda, e Murilo beijou-o antes de escondê-lo no bolso da calça.

Fim das férias, ele partia para São Paulo, ela voltava para a casa na cidade, a escola, e nada sabiam um do outro até o encontro do verão seguinte na chácara e no guarda-roupa de tia Argentina. De repente, sem que se soubesse bem porque, já ninguém mais falou em brincar de esconder. Depois do jantar, Murilo e ela, naturalmente, debruçavam-se na balaustrada da ponta mais escura da varanda, em silêncio, para ver a lua e as estrelas. Uma vez, apenas, ele lhe disse que ela estava da cor da lua, “Você é como a lua, Ana Clara, Ana Escura, Ana aparecendo, Ana se escondendo…”.

Dois anos depois ele deixou de vir nas férias: estava se preparando para o exame da escola da Marinha. Foi então que ela começou a colecionar as fotografias de artistas fardados de branco e a, pouco a pouco, compreender o que significava para ela o laço silencioso que a juntava a Murilo. Levou um susto enorme quando ouviu alguém dizer que casar-se com primo não podia, era pecado, além de perigoso para a saúde dos filhos do casal. Depois de dias de angústia, perguntou: Mamãe, Murilo é meu primo? E soube que não era propriamente primo, de sangue: era o neto de tia Clarinha, que fora a melhor amiga de Vovó e morrera muito cedo. Esperou, aliviada. Nos quinze anos dela, Murilo não veio, mas mandou a caixa de presente. Fez questão de escolher ele mesmo, disse Vovó.

Na festa de bodas de prata de tio Cláudio, ele, afinal, apareceu. Festão! Até Beatriz, a prima do Rio de Janeiro, viria para a festa, aquela Beatriz pouco conhecida, exibida, estabanada, que dizia que os primos daqui eram “do interior”, embora os ofendidos se cansassem de explicar que isto era uma ilha no mar, nem sequer estava no continente, como é que podia ser “interior”? Beatriz, sempre bronzeada, muito mais do que nós, não sabíamos por quê, se o sol daqui é o mesmo de lá. Beatriz era dourada, puro sol.

Murilo chegou trajando a farda branca de guarda-marinha. Lindo. Ana Clara estava feliz com seu vestido cinza com reflexos prateados. Cor de lua. Murilo beijou-a de leve no rosto mas, como sempre, guardou silêncio. Ficaram os dois assim, imóveis, calados, ela de olhos fechados para reviver a felicidade do armário. Êxtase.

Ana Clara voltou a si com um murmúrio em crescendo que encheu a sala. E viu a moça dourada, de vestido amarelo como um girassol, ou melhor, o próprio sol. Eram os outros que se voltavam para ela, que se acercavam, moviam-se acompanhando os movimentos dela. Murilo também. Foi a ele que Beatriz escolheu: Murilo! Que lindo está de farda! Veio direto de Angra para cá? Por que não me disse que vinha, podíamos ter vindo juntos. Ele virou-se inteiramente para Beatriz.



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