Economia em expansão, povo na rua
Em junho, dezenas de milhares de pessoas, agrupadas em torno da Praça Taksim, mas também em toda a Turquia, desafiaram o governo e denunciaram os desvios autoritários do presidente Erdogan. Ainda que este tenha conseguido se recompor e a contestação tenha acalmado, o movimento de múltiplas facetas reflete mudançasTristan Coloma
(Polícia atira gás lacrimogênio sobre manifestantes na Praça Taksim, em Istambul, no dia 11 de junho)
Apulcu (escória): é assim que o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan qualifica os milhares de pessoas engajadas na revolta popular que desafia sua autoridade; um movimento nascido em resposta à brutalidade da intervenção policial contra os manifestantes que denunciaram a destruição do Parque Gezi, em Istambul, em 31 de maio de 2013. Desde então, as redes sociais adaptaram a palavra para o inglês (chapulling) e deram-lhe um novo significado: aquele ou aquela que luta pelos direitos de todos. E são muitos agora que reivindicam na Turquia sua vontade de “chapular”.
A situação traduz acima de tudo a profunda divisão da sociedade. Longe das caricaturas – mobilização limitada à defesa de algumas árvores do Parque Gezi, agitação juvenil –, ela revela um “fosso em termos de estilo de vida” que “cristaliza a figura de Erdogan”, observa Aysegul Bozan, cientista político da Universidade de Istambul. Aquele que, em 2002, representava a “ruptura”, relegando seus concorrentes à posição de retrógrados ultrapassados, reata com os velhos demônios nacionais: e lá o vemos bancando a vítima de uma conspiração internacional para desestabilizar o país.
Já no dia 1º de abril o primeiro-ministro turco não estava de bom humor: “Se a comissão parlamentar de reconciliação sobre a Constituição não conseguir redigir uma proposta de texto, o AKP [Partido da Justiça e Desenvolvimento] apresentará nosso próprio projeto”, declarou ele, imperioso, em um programa de televisão.
Como o coelho branco de Alice no País das Maravilhas, e apesar de se esforçar, Burhan Kuzu está atrasado. O chefe da comissão parlamentar multipartidária tinha, inicialmente, até o dia 31 de dezembro de 2012 para enviar o texto à Assembleia, mas lamenta: “Muito poucas questões chegaram a acordo”. Haverá ainda a possibilidade de elaborar uma Constituição para colocar a Turquia no caminho de uma certa maturidade democrática?
Separação de poderes, um obstáculo
No País das Maravilhas, a Dama de Copas apresentaria essa revisão como necessária para ratificar a mutação de uma sociedade decidida a cultivar em um mesmo movimento os preceitos morais oriundos de sua identidade muçulmana e sua aspiração a mais liberdade. Mas se Erdogan revela tal entusiasmo e ousa tal ingerência é porque “entrou em uma nova fase do poder”, avalia Elise Massicard, pesquisadora do Instituto Francês de Estudos Anatolianos. “Até 2011, o AKP dedicou-se a destruir os diversos contrapoderes, ou a assumir seu controle, como fez com as Forças Armadas e a Justiça. Essa lógica está praticamente concluída”.1 Praticamente, de fato… As prisões e os grandes julgamentos de militares, advogados, jornalistas, universitários e estudantes são inconstitucionais.
Em um país onde os contrapoderes são amordaçados, o partido majoritário de Erdogan milita por uma nova Constituição com o objetivo de impor um sistema presidencialista ou semipresidencialista. Mas, com o movimento de contestação popular de maio-junho, em grande parte provocado pela arrogância do primeiro-ministro, o projeto tem suscitado cada vez mais reticência dentro do próprio partido. Muitos quadros do AKP agora defendem mudanças constitucionais mais limitadas e sintonizadas com as expectativas da sociedade.
Desde sua vitória no dia 3 de novembro de 2002, o partido do governo tem aumentado continuamente suas porcentagens eleitorais. Mas, mandato após mandato, o regime abusou de sua hegemonia tensionando rumo à autocracia. Como prova, num discurso em Konya, no dia 17 de dezembro de 2012, Erdogan declarava que a “separação dos poderes” constituía um “obstáculo” à ação de seu governo. Um déficit democrático bem distante das intenções afirmadas em 2002. Ao lançar o AKP, a ala reformista do Partido da Prosperidade, banida em razão de seu suposto islamismo, Erdogan queria ocupar a centro-direita do espectro político. E optou por defini-lo como culturalmente conservador, politicamente nacionalista e economicamente liberal.
Para Bozan, “o AKP aproveitou o descrédito dos partidos existentes. Ele conseguiu atrair não apenas uma grande parte da massa eleitoral apoiando várias formações na tradição da Visão Nacional [movimento islamita], mas também eleitores de centro-direita que não costumavam apoiar tais partidos. Os intelectuais liberais e alguns social-democratas, viram no AKP o poder civil capaz de transformar as opiniões da base popular na perspectiva de uma democratização do país”.
Se a aura de Erdogan sobreviveu a dez anos de poder é porque seu balanço revela grandes avanços. Em primeiro lugar, a economia registrou bons resultados em termos dos padrões liberais. O crescimento anual foi de 7% em média, entre 2000 e 2010; a inflação foi derrubada e os investimentos diretos estrangeiros (IDE) passaram, em dez anos, de US$ 1,2 bilhão para quase US$ 20 bilhões; e a desigualdade foi reduzida. O programa nacional de adesão à União Europeia ampliou as liberdades individuais. O “processo de regulação” da questão curda tem demonstrado a capacidade do primeiro-ministro de afastar os nacionalismos mais radicais, que se manifestavam até mesmo em seu próprio campo.2 Por fim, as reformas também ajudaram a eliminar a influência das Forças Armadas, que haviam derrubado quatro governos desde 1960. Com isso, o partido podia continuar sua luta contra a grande burguesia laica e apresentá-la como uma luta entre o povo e a elite.
Para metade da população, a figura de Erdogan personifica essa luta de classes e a promessa do fim da exclusão. De acordo com um relatório do instituto de pesquisa turco Konda, os eleitores do AKP elegeram por ampla maioria o dirigente do partido (57%), mais que o próprio partido, nas eleições de junho de 2011.3
“Os militantes trabalham para transformar a opinião pública e produzir soluções individuais para os problemas de todos”, observa a pesquisadora em ciência política Dilek Yankaya. “Se você precisa se casar com um bom muçulmano, eles o apresentam. Se precisa de carvão, ou é hospitalizado, recebe apoio. Os benefícios são oferecidos de acordo com as necessidades de cada um, em troca recebem votos.”
Já os cientistas políticos André Bank e Roy Karadag avaliam que “o AKP é simultaneamente uma força motriz para subtrair o mercado à intervenção do Estado e um vetor de reintegração dos excluídos. Ele propaga assim valores pró-capitalistas e sociais ao mesmo tempo”.4 Na estratégia eleitoral do partido, a política de redistribuição facilita o estabelecimento de uma forma de neoliberalismo social, sobrepondo um “populismo controlado”5 ao princípio da solidariedade muçulmana.
O Estado abre mão de suas obrigações sociais em favor de atores privados próximos ao partido, principalmente os Tigres da Anatólia. Essa nova geração de homens de negócios, oriundos sobretudo das regiões rurais da Anatólia e inscritos na tradição conservadora e devota, reúne-se no Musiad.6 A poderosa associação de industriais e homens de negócios independentes também se tornou parceira patronal do islamismo político e, por fim, do AKP. Ela simboliza a vingança da “Turquia de baixo” sobre a elite laica. “As políticas aplicadas por Erdogan”, analisa Yankaya, “são a forma ideologizada do sistema de valores da burguesia anatoliana: trabalho, família, religião. Uma ideologia burguesa convencional.”7
Quando o AKP nasceu, seis meses antes das eleições de 2002, ele representava, aos olhos da maioria dos turcos, o único meio de contestar a captura dos poderes econômicos e políticos pelos “turcos brancos”, oriundos da grande burguesia de Istambul e da casta militar. O partido dava a impressão de garantir a ligação entre a mesquita e o espírito empreendedor. Erdogan forjou para si próprio uma imagem de político religioso, capaz de adaptar-se à globalização. A força do AKP reside em sua capacidade de apresentar-se como o partido do povo, ao mesmo tempo que aplica uma política muito liberal.
Entre 1985 e 2010, a Turquia ganhou US$ 41,98 bilhões em suas operações de privatização, e, desse montante, mais de US$ 34 bilhões vieram a partir de 2002. O ano de 2010 foi “histórico” nessa área, chegou a dizer o chefe da Administração de Privatizações turca (OIB), com US$ 10,4 bilhões de ativos transferidos ao setor privado. “A população não identifica os efeitos das políticas neoliberais. E quem está consciente deles não vê uma solução alternativa”, lamenta Bozan.
Dependência da União Europeia
Segundo números fornecidos pela Confederação dos Sindicatos Progressistas da Turquia (Disk), a taxa de desemprego chega a 17,01%. Oficialmente, não excede 10%. Os salários na indústria teriam caído 15,9% entre 2002 e 2011. Uma realidade mascarada pelas promessas de Erdogan durante a campanha para sua reeleição, na primavera [do Hemisfério Norte] de 2011. Ajudado por seu poder de persuasão e por um PIB no pico de crescimento (11,5% no primeiro trimestre de 2011), ele previu uma taxa de desemprego em breve reduzida para 5% e a ascensão iminente da Turquia à décima posição no ranking das economias mundiais – em 2012, o país ocupava a 17ª posição. Mas, com a duplicação do PIB entre 2000 e 2010, Erdogan pode debochar da “Europa em contração”, diante de uma “Turquia em expansão”.
Apesar da retórica de emancipação dos dirigentes turcos em relação à União Europeia, o país tira uma parcela significativa do crescimento de sua integração a esse espaço econômico ocidental; está necessariamente ligado a ele. Embora os dirigentes destaquem que em 2011 a participação das exportações para essa área foi reduzida a 46%, eles omitem que, em valores absolutos, essa participação aumentou 22% (ver boxe). Sempre em busca de novos mercados, as empresas turcas demonstram um “otomanismo econômico” no mundo árabe. Mas a capacidade financeira desses novos clientes não pode substituir os mercados tradicionais. A União Europeia continua sendo responsável por 75% dos investimentos realizados na Turquia (contra 6,1% dos Estados Unidos e 6,1% dos países do Golfo, entre 2008 e 2011).
O sucesso econômico de Ancara pode ser mais frágil do que parece, pois depende do influxo de capital estrangeiro. Tanto que os indicadores e projeções pintam um horizonte sombrio: crescimento desacelerado, conta-corrente deficitária,8 desaceleração das exportações para a União Europeia – ela mesma em recessão – e fragilidade das receitas fiscais castigadas pelas fraudes e o trabalho não declarado, contração do consumo interno em razão do aumento do endividamento familiar (70% do PIB).
E se a prosperidade passar pela redução das desigualdades sociais e o estabelecimento da justiça fiscal? Resta convencer o governo a arriscar reformas impopulares junto aos empresários. Para ver o desprezo que o primeiro-ministro demonstra em relação aos manifestantes da Praça Taksim, reunidos em meados de junho pelos dois principais sindicatos de trabalhadores, o patronato do conservadoríssimo Musiad continua sendo, aos olhos do poder, seu mais valioso aliado.
BOX:
Em números
− População ativa: 28 milhões, para 76,5 milhões de habitantes.
− Desemprego: 9,4% em março de 2013.
− Taxa de sindicalização: 5,9% em 2010 (9,5% em 2002).
− Crescimento: 2,2% em 2012 (8,5% em 2011).
− Inflação: 6,2% no final de 2012, contra 10,4% no final de 2011.
− Balança comercial: deficitária em 62 bilhões de euros. Em 2012, os dois principais clientes da Turquia eram a Alemanha e o Iraque. Rússia, Alemanha e China são seus principais fornecedores. Em 2010, as exportações turcas para a União Europeia totalizaram US$ 52,7 bilhões, enquanto as importações chegaram a US$ 72,2 bilhões.
Fonte: Instituto de Estatística da Turquia (Tüik
Tristan Coloma é jornalista.