Economia solidária 1
A opção dos trabalhadores pela cooperação, pela autogestão e pela democracia se aplica a todos os âmbitos da sociedade civil e, em breve, pode corresponder melhor às necessidades das novas forças produtivas. Sem a preferência pela competitividade, talvez o emprego assalariado seja paulatinamente abandonado
Durante o século XX, o capitalismo se adaptou à democracia política e completou sua expansão global. Neste apogeu mais recente, ensejou uma revolução digital e, ao mesmo tempo, um regresso à fase ‘selvagem’ de sua própria história, em que a competição entre os países e dentro deles quase não conhece limites. Em conseqüência, o desemprego tende a ser crônico e maciço e as condições de trabalho se tornam cada vez mais atrozes, inclusive para executivos e trabalhadores especializados. Acrescente-se ao quadro a crise ecológica, que não se limita ao aquecimento global, e torna-se fácil entender porque a ânsia de que o capitalismo seja substituído por outro sistema socioeconômico é compartilhada por cada vez mais gente.
Ao mesmo tempo, a alternativa socialista assumiu, para muitos, a forma de uma economia central planejada, rígida e ineficiente, coroada por sufocante totalitarismo político. O fracasso estrepitoso deste modelo, marcado pela queda do muro de Berlim, em 1989, abriu um hiato que, com o passar do tempo, se tornou urgente preencher: se o capitalismo revela crescente incapacidade para resolver os principais problemas com os quais se defronta a humanidade, o que colocar em seu lugar? A resposta que faz sentido – e por isso ganha cada vez mais atenção – é substituir a competição de todos contra todos, o individualismo e a busca incessante de lucro pela ajuda mútua na produção e no consumo e a solidariedade no enfrentamento dos desafios ambientais, no bojo de um sistema que preserva e amplia a liberdade individual, mas também elimina a miséria e a desigualdade.
A opção que hoje corresponde a estas características é a economia solidária, que antes de ser um sistema teórico, surge dos esforços coletivos de trabalhadores, vitimados pela crise social, para forjar estratégias de sobrevivência baseadas na cooperação, autogestão e democracia, não só na política, mas também na escola, na família, na igreja e demais instituições da sociedade civil. Ela aplica às atividades econômicas os valores e os métodos da revolução feminina, da libertação sexual, das lutas contra a opressão das crianças e jovens, dos idosos, das minorias raciais e étnicas discriminadas, e assim por diante.
É verdade que a economia solidária surge como reação à exclusão social, à penúria, à perda do auto-respeito e da esperança, o que leva alguns a encará-la como uma compensação às injustiças do capitalismo, tornando-o menos insuportável. Portanto, graças à economia solidária, o sistema deixaria de ser ameaçado pela revolta de suas vítimas. Esta conclusão está errada por três motivos:
1. A economia solidária não está fadada a permanecer sempre marginal. Seu progresso a leva a penetrar em novas áreas: a produção cultural popular, mas também refinada, a informática (pelo software livre e pelas plataformas wiki de colaboração ilimitada), a investigação científica (os trabalhos publicados de autoria coletiva sobrepujando os de autoria individual), a tecnologia avançada, etc. O capitalismo pode ser confrontado com um modo de produção cujas relações sociais de cooperação talvez correspondam melhor às necessidades suscitadas pelas novas forças produtivas, desenvolvidas pela inteligência coletiva, do que suas típicas relações sociais de competição individual.
2. Nem a história e nem lógica comprovam que as revoluções sociais são conduzidas pela revolta de desesperados, mas sim pelos que são perdedores no sistema dominante, portadores de uma outra economia e, portanto, de um outro mundo, e possuidores de recursos para implantá-lo, nos vazios que as crises do sistema dominante deixam disponíveis.
3. Supondo que a disputa do poder de Estado continue sendo democrática, mesmo com distorções decorrentes da desigualdade de fortuna, é bem possível que a economia solidária avance na disputa das políticas públicas e, dessa forma, no acesso ao fundo público.
É ocioso discutir como o capitalismo será derrubado. Se a democracia e as liberdades civis forem preservadas, não é provável que esse sistema seja eliminado por meios políticos. Não enquanto houver alguns que preferem ter um emprego e obedecer e outros que têm empregados e mandam. Como o assalariamento é um contrato voluntário entre desiguais, não faz sentido proibi-lo. Talvez ele venha a ser paulatinamente abandonado, à medida que a experiência de vida em economia solidária torne as preferências pela competição e pela desigualdade cada vez mais raras.
*Paul Singer é doutor em Sociologia pela USP e Secretário Nacional de Economia Solidária.