Editais de cultura no Paraná: campo de influência na capital controla o estadual
A comparação do campo de influência do chamado “cercadinho de Curitiba” (apresentado na reportagem anterior) revelou, através de análise dos resultados da aplicação da Lei Aldir Blanc (LAB), na pesquisa efetivada no caso do Paraná, de que a concentração de prêmio ocorrida em Curitiba nos mesmos nomes se repete em nível estadual, conforme conclusão do cruzamento entre uma auditoria independente apresentada para esta reportagem e a realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR).
A comparação do campo de influência do chamado “cercadinho de Curitiba” (apresentado na reportagem anterior) revelou, através de análise dos resultados da aplicação da Lei Aldir Blanc (LAB), na pesquisa efetivada no caso do Paraná, de que a concentração de prêmio ocorrida em Curitiba nos mesmos nomes se repete em nível estadual, conforme conclusão do cruzamento entre uma auditoria independente apresentada para esta reportagem e a realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR). Para além de determinados grupos que podem influir nos editais, o aspecto regional de campo de influência na capital Curitiba parece determinar os resultados no Paraná.
Dentro da esfera estadual, o mesmo agrupamento conhecido como Rede Coragem (que teve membros que participaram de reuniões com o poder público para definir as verbas da LAB, conforme mostrado na reportagem anterior) lançou documentos influenciando no certame, especialmente no edital Jornada em Reconhecimento à Trajetória, o mesmo em que ocorreram casos de funcionários públicos premiados.
A imagem acima apresenta trechos do Ofício 05 da Rede Coragem ao Governo do Estado do Paraná. A mesma informação está contida na ata da FCC de 14 de Julho de 2020, de que a proposta feita lá seria encaminhada à Secretaria de Estado da Comunicação Social e da Cultura (SEEC-PR), da qual faz parte a Superintendência-Geral de Cultura do Paraná (SGC-PR). “Num dos editais, o ‘Jornada em Reconhecimento à Trajetória’ (idealizado pela Rede Coragem, grupo local aparelhado pela Rede Livre, Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado do Paraná, Fora do Eixo e Fórum Emergências Culturais), R$ 4 milhões (53% do valor total do edital) foram aplicados em contrassenso com os objetivos dos recursos. Além de funcionários públicos, também receberam as verbas ‘assistenciais’ militantes da cultura, moradores de bairros nobres de Curitiba, jovens com idade entre 21 a 39 anos, com média de 8 anos de carreira, o que entraria em conflito com o edital, que pretendia premiar os mestres das artes e culturas populares.” (reportagem do site Passa Palavra, 5 nov. 2022).
Não seria coincidência que esses resultados se relacionem com as decisões equivocadas na elaboração de editais, que influíram tanto na instância municipal de cultura de Curitiba, como na esfera estadual.
O TCE-PR relata a deficiência do órgão público de cultura do Paraná em cruzar informações de modo a evitar a multiplicidade de proponentes em editais, conforme o relatório da auditoria: “os editais da Lei Aldir Blanc e do Pacote de Medidas de Apoio e Fortalecimento do Setor Cultural da SECC (Cultura Feita em Casa e Licenciamento de Obras Audiovisuais) restringiam a premiação a um projeto por proponente em cada edital. Porém, as constrições não conjugam a combinação entre programas e não há restrição ao total de prêmios/projetos ativos por Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). Em agravo, observou-se que a SECC não adota controles eficientes para evitar as inscrições ora com a pessoa física, ora com a pessoa jurídica (mesmo como MEI), o que permite que proprietários, sócios, diretores ou representantes legais tenham projetos inscritos em seu nome, no mesmo edital na condição de sócios de empresa, empreendedor individual, pessoa física etc.” (TCE-PR, 2021, p.57)
Reuniões de que ninguém viu, só ouviu falar
A SGC-PR admite ao TCE-PR ter se reunido com representantes das artes em reuniões setoriais para consulta da LAB. O relatório de auditoria cita: “Na esteira deste conceito, em 2020, no decorrer das definições das PPC, com recursos da Lei Aldir Blanc, foram realizadas oitivas com diferentes segmentos da Cultura o que se repetiu no ano de 2021, quando foram realizadas 12 reuniões, com os seguintes setores culturais, registrado pelos servidores da SECC” (TCE-PR, 2021, p.184).
Mesmo registrada no relatório de auditoria do TCE-PR (2021, p.27), a SGC-PR negou a existência do encontro em comunicações e solicitações da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) e do Fórum de Cultura do Paraná (FCP). A apuração de membros da classe localizou a prova da existência dessa reunião, conforme print acima, e documentação anteriormente apresentada.
A análise é de que foi uma reunião sem representatividade do meio musical, não contando com entidades de classe, lideranças ou variedade regional e de gêneros musicais. A oitiva teve presenças de membros da Rede Coragem, Fórum Emergências Culturais do Paraná, bases de cultura de partidos políticos de Curitiba, e do “representante da Música” no Consec, Leonardo Ferreschi, que atua profissionalmente como professor de teatro.
Diversas organizações tentaram diálogo com o poder público sobre as discussões de políticas culturais. Este respondeu que o assunto era exclusivamente com o Consec, que representaria os mais diversos setores e regiões. No entanto, foi descoberto no relatório da auditoria do TCE-PR, que teriam sim ocorrido reuniões fechadas, sem convocatórias, atas, ou registros. Esses mesmos questionamentos foram feitos pelo FCP, mas não foram respondidos, ficando a SGC-PR em negativa da realização de tais reuniões, mas que foram confirmadas pelo TCE-PR.
Prêmios para os mesmos nomes de sempre
Muitos destes centrais do campo cultural não raro estão envolvidos nas denúncias enviadas pelo Fórum de Cultura do Paraná à Justiça, sendo arquivadas no Paraná por vício de esfera, e enviadas às autoridades federais, conforme decisão do CNMP – Conselho Nacional do Ministério Público, que determinou que apurações da Lei Aldir Blanc cabem ao MPF. É importante notar que alguns dos mesmos nomes citados em outros estudos também constam do Relatório de Auditoria da LAB realizada pelo TCE-PR em 2021.
Em auditoria independente realizada pelo Observatório da Cultura do Brasil (OCB), FCP e alunos de doutorado da UFPR, ao se confrontarem os dados, aparecem os mesmos citados, beneficiados repetidamente em diversos editais da LAB. Foi observado que a maioria dos que decidiam pelas normas eram os mesmos que tentaram impedir as apurações na base de constrangimentos, e que eles e suas redes também foram beneficiados diversas vezes nos editais. A auditoria cruzou dados de editais paranaenses lançados nos últimos sete anos. Foram selecionados 29 editais de cultura de 2016 até 2022. Não são todos os editais do período, mas os mais relevantes lançados pela SGC-PR e Fundação Cultural de Curitiba (FCC), somados aos editais com recursos da LAB, concentrando 27 editais entre 2019 e 2022.
A concentração de recursos não é recomendada nos editais de licitação, conforme explica o relatório de auditoria do TCE-PR: “6.5 ACHADO 5 − CONCENTRAÇÃO DE PATROCINADORES E DE PROPONENTES. A pulverização de recursos culturais e a integração entre iniciativas públicas e privadas são anseios consagrados nas políticas públicas da cultura. No estado do Paraná, além do fenômeno de concentração intraestadual (vide achado 04), percebe-se concentração da estrutura de economia criativa em torno de grupo de produtores e incentivadores”. (TCE-PR, 2021, p. 53)
Foi observado que os dirigentes das organizações citadas, seus parceiros e sócios de trabalhos, cônjuges, namoradas, parentes, são os mesmos que também acumulam muitos prêmios do período recente (inferior a cinco anos), compreendendo também a época da pandemia em que foram lançados editais com recursos assistenciais da Lei Aldir Blanc. Somente os núcleos duros da diretoria 2021-2022 do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado do Paraná (SATED-PR), Rede Coragem e Fórum Emergências, acumularam 240 prêmios nas mãos de menos de 52 pessoas que venceram de forma concentrada basicamente em 10 dos 29 editais pesquisados, com algumas exceções.
No gráfico abaixo, são expostas as relações entre classe dirigente e concentração de premiações, confirmando a auditoria do TCE-PR. Após o cruzamento de dados e escolha da metodologia, foram feitas as seleções de agrupamentos que correspondiam com os critérios pré-estabelecidos.
Segundo Paulo Macan, pesquisador doutorando em etnomusicologia da UFPR, que cruzou os dados dos 29 editais, o estudo foi feito com metodologia científica. “Para se chegar a este cruzamento de dados, foram feitas as seguintes perguntas: Há reincidência de nomes aprovados nos editais das políticas públicas no Paraná? Há correlação entre os aprovados em editais municipais/estaduais e os aprovados na Lei emergencial (LAB)? Há relação entre os nomes aprovados e os responsáveis por ataques pessoais em redes sociais?”, relata. “O que se evidencia é que há uma repetição/concentração de nomes aprovados. Os mais aprovados em editais estaduais e municipais são também os contemplados pela Lei Aldir Blanc, o que é uma grande contradição sistêmica, uma vez que a LAB é de caráter emergencial e não de mérito e, por último, há relação entre o grupo de concentração e os ataques [vindos de agrupamentos contrários à apuração do caso da Lei Aldir Blanc]. Isso está muito claro para mim. É importante frisar que esse trabalho foi um esforço conjunto. Fui responsável pela contabilização das repetições, mas a filtragem dos editais e a análise que relaciona nomes e ataques foram feitas por mais colaboradores”, completa.
A média de prêmios por cada dirigente ou liderança, foi de cinco prêmios, porém alguns receberam oito, nove e até dez prêmios, conforme pesquisa.
Esses dados são apenas da chamada classe dirigente (que ocupam cargo ou são representativas nos seus movimentos e entidades diante do poder público) das duas organizações Rede Coragem e SATED-PR (diretoria 2021-2022). O recorte dado aponta que foram as organizações que falaram em nome de todas as categorias da cultura com o poder público na fase de regulamentação da Lei Aldir Blanc no Paraná. Documentos indicam que suas lideranças podem ter tido diálogos privilegiados, representando centenas de membros das duas organizações que podem ter sido beneficiados por informações exclusivas que circulavam entre suas redes, não sendo ainda possível traçar a dimensão de recursos e prêmios que foram direcionados para associados dessas organizações. O cruzamento de dados oficiais aponta que apenas um pequeno grupo de classe dirigente dessas organizações ficou com 240 prêmios. Previamente pode se dizer que foram centenas de prêmios, e milhões de reais ofertados aos agrupamentos, em detrimento da coletividade do meio cultural paranaense.
Os números das relações, no entanto seguem em sigilo, pois a FCC e a SECC-PR não abrem dados de projetos, como conexões de empresas, pessoas que foram contratadas ou prestaram serviços, mas que não são proponentes, o que oculta mais relações e concentrações dos usos dos recursos públicos lançados nesses editais.
Pequenas famílias, grandes negócios (com dinheiro público)
Coincide ainda que alguns dos agrupamentos citados no gráfico anterior são de núcleos familiares. Por exemplo, o presidente do SATED-PR (direção 2021-2022) e também coordenador da Rede Coragem e vice-presidente do Conselho Municipal de Cultura de Curitiba, Adriano Esturilho, e sua então companheira (na ocasião dos fatos detalhados nas tabelas) Bella Souza acumularam em curto período 13 premiações. A produtora Bina Zanette, coordenadora da Rede Coragem, acumulou com sua mãe, irmã e cunhado 27 projetos. E a família Ruiz Leminski acumulou 24 projetos da soma de mecenato, fundo estadual e municipal e os muitos prêmios com recursos da LAB. Téo Ruiz também é um dos coordenadores da Rede Coragem. Além disso, ele e sua companheira Estrela Leminski trabalharam como professores ou palestrantes remunerados em cursos das bolsas da LAB ofertadas pelo Estado. Ela afirmou no curso Paraná Criativo (convênio da Lei Aldir Blanc), que hoje em dia também trabalha como parecerista de editais de outros estados. Dos 240 projetos localizados no recorte da auditoria independente e complementar ao do TCE-PR, constatou-se que apenas estas 3 famílias tiveram 64 prêmios da LAB e projetos de outros editais aprovados em um curto período.
O que os documentos localizados e as auditorias (do TCE-PR e a independente feita pelo meio acadêmico) revelam, é que a mesma rede de agentes atua julgando ou influindo e são premiados nos editais. Os exemplos mostrados apontam relações entre essas pessoas com conflitos de interesses, cargos e influência. O conflito de interesses se configura pelo fato de que são agentes influentes que contribuíram na deliberação do formato de editais. Representariam entidades e movimentos, sendo dirigentes, conselheiros, pareceristas, membros de grupos técnicos, e do outro lado são produtores e proponentes, enquanto concorrem a verbas públicas e são premiados nos editais.
Quanto a prêmios conquistados repetidamente pelas mesmas pessoas, a SGC-PR responde ao TCE-PR que se alguns foram beneficiados em mais de um edital na LAB, apesar da lei determinar o contrário, e de que essa visão contraste com as necessidades dos muitos excluídos, ainda assim seria algo normal, saindo em defesa da concentração ocorrida, naturalizando a concentração e os vícios dos editais. Afirma a SGC-PR: “As identificações sobre os proponentes que receberam em mais de um edital, em 2020 e 2021, deve-se à excepcionalidade da pandemia e nos editais lançados nos quais há a possibilidade de contratação em mais de um edital, desde que não seja com o mesmo objeto.” (TCE-PR, 2021, p.204). Apesar do TCE-PR se posicionar contrariamente, a SGC-PR segue na mesma postura, como se nada de errado tivesse ocorrido.
Num recorte mais assimétrico, aproximando com uma lupa os resultados dos editais da LAB, os membros do OCB conseguiram localizar que mais do que concentrações de prêmios no “cercadinho de Curitiba”, existem “loteamentos” dentro desse cercadinho. Os recursos ficaram acumulados em produtores, de determinadas redes e coletivos, ligados a partidos e classe dirigente de entidades, em detrimento de artistas da periferia da cidade de Curitiba e de todos os demais trabalhadores da cultura do Paraná.
O que confirma auspícios e hipóteses previstas por conselheiros, especialistas e lideranças dos movimentos denunciantes, é que mesmo após as denúncias, não ocorreram ações no sentido de solucionar problemas levantados, nem por parte da FCC ou da SGC-PR. Não houve auditoria, punição interna, ou pedido de devolução de recursos contraditórios. A ausência de fiscalização também pode ser constatada, considerando que nas fases de certificação, fiscalização interna e externa e pagamentos passaram diversos erros entre as duas organizações conforme a auditoria do TCE-PR revelou. “Os anos de 2020 e 2021 ficarão na memória coletiva do setor cultural, em que os trabalhadores prejudicados carregarão o trauma e a sensação de injustiça, enquanto os setores públicos e de militância carregarão o fardo da tragédia e da farsa, crentes da impunidade”, afirma Manoel J de Souza Neto