Eleição de candidatos policialescos e donos de mídia prejudica a democracia
A mídia é usada como trampolim político e contribui para a eleição de perfis que se valem da visibilidade que adquirem por meio da tela da TV ou das ondas do rádio
Pesquisa realizada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, em 2022, identificou o crescimento de candidaturas ligadas aos programas policialescos nas eleições daquele ano. O monitoramento, que faz parte do projeto Mídia sem Violações de Direitos, mapeou 43 candidaturas em 14 estados brasileiros (BA, PB, CE, PI, AM, RR, MT, MG, ES, SP, RJ e PR) e no Distrito Federal aos cargos de governador, deputado federal e estadual, senador e suas suplências. O perfil dos políticos-apresentadores, repórteres e comentaristas mapeados pela pesquisa é de homens (há apenas uma mulher na lista), sendo 50% brancos, e quase todos com larga experiência em eleições. Dos 43 candidatos, 9 foram eleitos, e outros ganharam a suplência.
Lista dos candidatos de programas policialescos que foram eleitos em 2022
A pesquisa analisou programas policialescos das 10 maiores cidades brasileiras, em número de habitantes, em cada estado. Os dados encontrados pelas/os pesquisadoras/es identificaram 27 candidatos a deputado estadual, 11 candidatos a deputado federal, 4 candidatos a governador e 1 candidato ao senado. Em quatro anos (2018 a 2022), o monitoramento registrou o crescimento de quase 100% desse tipo de candidatura. Boa parte desses programas e de seus apresentadores foi alvo de ações dos Ministérios Públicos Federal e Estadual, em diversos estados brasileiros, como Paraíba, Ceará e Pernambuco. Eles foram denunciados por crimes de racismo, LGBTfobia, misoginia, violações dos direitos de crianças e adolescentes e da legislação brasileira, como a Constituição Federal.
Mesmo assim, as atrações permanecem na grade de programação das principais emissoras brasileiras, em âmbito nacional e regional, com índices significativos de audiência, colaborando para que os apresentadores de policialescos saiam na frente dos demais candidatos durante o pleito eleitoral. Nesse sentido, a mídia tem sido utilizada como trampolim político e contribui para a eleição de tais perfis que se valem da visibilidade que adquirem por meio da tela da TV ou das ondas do rádio.
Candidatura de policialescos prejudica a democracia e os direitos humanos
Dentre os candidatos identificados pelo monitoramento do Intervozes está o apresentador Evaldo Costa, do policialesco Cidade 190, exibido pela TV Cidade, no Ceará, afiliada à RecordTV. Evaldo é vereador pela cidade de Fortaleza e foi candidato a deputado estadual nas eleições de 2022 pelo Republicanos, ficando na suplência. O programa que ele apresenta, desde 2009, registra inúmeras violações aos direitos humanos. Uma delas aconteceu em 2014, quando transmitiu, ao meio dia, cenas de violência sexual contra uma criança de apenas nove anos de idade. O caso gerou repercussão nacional e diversas entidades que atuam na defesa dos direitos humanos acionaram o Ministério das Comunicações (Minicom), que aplicou uma multa no valor de R$ 23 mil reais contra a emissora.
Outro candidato que comanda policialesco, e conseguiu se reeleger no pleito de 2022, foi o deputado federal, pelo Republicanos do Espírito Santo, Amaro Neto. Ele é apresentador do programa Balanço Geral ES, na TV Vitória, afiliada à RecordTV, desde 2009, e é conhecido por julgar e condenar as pessoas suspeitas que aparecem no programa e fazer espetacularização dos casos de violência contra crianças e adolescentes. O deputado é favorável à redução da maioridade penal para 16 anos e diz não ver problema em conciliar as atividades de político e comunicador.
Dessa forma, o parlamentar aumenta seu potencial eleitoral no estado que representa, ao utilizar a televisão como aliada em seu crescimento como político e na difusão de pautas conservadoras e contra os direitos humanos.
De fato, não há impedimento legal para que apresentadores, repórteres e comentaristas de programas de rádio e TV apresentem candidatura e se elejam para qualquer cargo público. Porém, o tempo que ocupam à frente desses programas e a visibilidade alcançada auxiliam ainda mais suas campanhas. A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Janaine Aires, explica que a legislação brasileira relacionada à regulamentação da comunicação é falha.
“No caso dos comunicadores-políticos, apresentadores, comentaristas e repórteres, o que a gente identifica é que a legislação eleitoral, que é a aplicada nesses casos, não é suficiente, porque ela tem uma temporalidade, ela está ali marcada no contexto de início das campanhas políticas, que são em torno de três meses. Os apresentadores se descompatibilizam [nesse período], no entanto, a campanha política já se iniciou ou ela nunca cessou. O que a gente identifica é que essas regras não conseguem dar conta da complexidade desse fenômeno, pois a construção da imagem do apresentador candidato se inicia muito antes disso”.
Policialescos donos de mídia: uma prática ilegal
Outra problemática identificada pela pesquisa Mídia sem Violações de Direitos é a candidatura de políticos apresentadores de policialescos que são donos de empresas de mídia. Alguns foram denunciados por má gestão e a prática de crimes contra o serviço público, como o governador reeleito pelo Amazonas, Wilson Lima, e o deputado estadual Mário César Rodrigues Balduino, ambos do União Brasil, mesmo partido do atual ministro das Comunicações do governo Lula, Juscelino Filho.
Wilson Lima foi apresentador do programa policialesco Alerta Amazonas, transmitido pela TV A Crítica, deixando a função para se candidatar nas eleições de 2018, quando foi eleito governador do estado do Amazonas pela primeira vez. Quem assumiu seu lugar como apresentador foi Sikêra Júnior, que também é réu em diversos processos no Judiciário brasileiro. Em abril de 2023, a Rede TV! anunciou a demissão de Sikêra Júnior do Alerta Nacional.
Já Mário César apresentou o programa Alô, Amazonas, também na emissora de TV A Crítica. Ambos declararam, ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que são proprietários de empresas de publicidade, o que não é ilegal, mas pode apresentar riscos de propaganda e visibilidade indevidas.
Em abril de 2022, o deputado estadual Mário César Rodrigues Balduino foi acusado pela mídia local de distribuir cestas básicas compradas com recursos públicos de um programa do governo do estado do Amazonas. Segundo a oposição local, essa prática beneficiou a campanha do governador Wilson Lima e a própria candidatura de Mário César. O estado do Amazonas esteve no centro da pandemia da Covid-19, em 2021, quando protagonizou uma crise sanitária no combate ao vírus, com a superlotação de hospitais e a falta de oxigênio para os pacientes graves da doença. Nesse período, o governador Wilson Lima foi incluído no relatório da CPI da Covid, instalada pelo Congresso Nacional, acusado de desvios de recursos públicos na compra dos respiradores.
No Paraná, outro caso de apresentador de policialesco é o do candidato a deputado estadual pelo PDT, Homero Barbosa Neto, que nas eleições de 2022 ficou na suplência do cargo. Homero Neto já ocupou a vaga de deputado estadual entre 2002 e 2007, foi deputado federal entre 2007 e 2009 e prefeito de Londrina de 2009 a 2012. Ele apresenta o programa Balanço Geral Londrina, da RIC TV, afiliada à RecordTV, e administra a Rádio Brasil Sul, emissora de propriedade de sua família, onde atua como sócio proprietário. Nesse caso, a prática contraria o artigo 54 da Constituição Federal, uma vez que políticos não podem explorar serviços de radiodifusão. Durante a campanha eleitoral em 2022, ele continuou participando da programação da rádio Brasil Sul, comandando o programa Barbosa Neto, que tinha o slogan: “Emoção, fé e a comunicação verdadeira do jornalista Barbosa Neto”.
Além dos policialescos que possuem negócios na mídia, a pesquisa Mídia sem Violações de Direitos identificou 45 candidatos donos de mídia, sendo 18 candidatos a deputado federal, 13 a deputado estadual, 6 ao Senado e 1 a suplência do Senado, 5 ao cargo de governador e 2 de vice-governador. Das candidaturas analisadas, mais da metade são homens (38), brancos (33) e milionários (33). Dos 45 candidatos, 25 foram eleitos.
Lista de proprietários de empresas de comunicação eleitos em 2022
Na tentativa de acabar com tais ilegalidades, em 2015 o PSOL entrou com duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental da Constituição (ADPFs) no Supremo Tribunal Federal exigindo o cumprimento da Constituição Federal. Em 2021, uma nova petição foi enviada ao STF, pedindo celeridade no julgamento contra políticos donos da mídia.
O fenômeno dos comunicadores-políticos e a ligação com a extrema direita
Na Paraíba, a pesquisa do Intervozes identificou duas candidaturas de policialescos (o primeiro é apresentador e o segundo é repórter): Nilvan Ferreira, filiado ao PL e candidato ao governo do estado, e Emerson Machado, candidato a deputado estadual pelo PSD. Ambos não conseguiram se eleger. Contudo, Nilvan, que também se candidatou ao cargo de prefeito da capital da Paraíba, em 2020, chegou ao segundo turno com um significativo capital político. Nilvan e Emerson fazem parte do mesmo programa policialesco, o Correio Verdade, exibido pela TV Correio, afiliada à RecordTV. Assim como o apresentador e o repórter, o programa acumula diversas denúncias por violação aos direitos humanos. Em 2011, o Ministério Público Federal na Paraíba ajuizou uma ação civil pública contra a TV Correio e o apresentador da época, Samuka Duarte, pela exibição das cenas do estupro de uma adolescente. O órgão pediu, inclusive, a cassação da concessão da emissora. No entanto, a juíza do caso, Cristina Garcez, acatou apenas um dos pedidos do MPF e multou a emissora em R$ 200 mil reais.
Nilvan Ferreira e Emerson Machado são apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro e respondem a processos por danos morais, difamação, crimes contra a honra, direito de imagem e atentado contra a lei de imprensa. Nilvan Ferreira também foi denunciado ao Ministério Público do Estado na Paraíba por receber vantagens políticas, através de sua esposa, Fernanda Gonçalves Bernadino, acusada de ser funcionária fantasma em pelo menos quatro prefeituras municipais. Ele foi um dos comunicadores-políticos que estimularam a tentativa de golpe de Estado, dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, quando um grupo de pessoas que apoiam o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiu a praça dos três poderes e depredou os prédios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
O fenômeno dos comunicadores-políticos não é algo novo. Como explica a professora da UFRN, Janaine Aires, a prática começou em 1982, com nomes como os de Silvio Santos, apresentador de programas de auditório de sua própria emissora, o SBT; Carlos Massa, o Ratinho, que hoje é apresentador de programas de rádio e TV e possui sua própria empresa de comunicação; e Afanázio Jazadi, apresentador de programas policiais em rádios de São Paulo, eleito seis vezes deputado estadual.
“Esse número se amplia no ano de 2022 muito em virtude do contexto político em que houve, pelo governo federal, pelos movimentos de extrema direita, muita organização, partindo desses espaços. Foram esses programas que receberam entrevistas exclusivas do presidente da República. Foram esses programas que, de certa forma, capturaram bastante verba pública do governo federal, e também tiveram uma relação muito forte com as pautas que foram levantadas em 2018, que fortalecem a criminalização da pobreza, a pauta do porte de armas, que estão relacionadas à diminuição da maioridade penal, à ampliação das regras do punitivismo, e assim sucessivamente”, explica Janaine.
Os principais discursos abordados nesses programas são a redução da maioridade penal, o vigilantismo, o endurecimento das leis como meio de combate à violência e até a defesa da pena de morte. O fenômeno da violência é visto de maneira superficial pelos policialescos, sendo oferecidas soluções instantâneas e simplistas para problemas complexos. Ao assumirem cargos políticos, esses apresentadores têm a possibilidade de colocar em prática seus discursos, que podem vir a ser transformados em projetos de lei.
A Andi – Comunicação e Direitos realizou em 2015 um monitoramento histórico, em que identificou as principais violações dos direitos humanos praticadas na mídia brasileira pelos policialescos. A pesquisa foi realizada em parceria com o Intervozes, MPF e a Artigo 19, e identificou nove tipos de violações de direitos provocadas por esse tipo de programa: 1) desrespeito à presunção de inocência; 2) incitação ao crime e à violência; 3) incitação à desobediência às leis e às decisões judiciárias; 4) exposição indevida de pessoas; 5) exposição indevida de famílias; 6) discurso de ódio e preconceito de raça, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional; 7) identificação de adolescentes em conflito com a lei; 8) violação do direito ao silêncio; 9) tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante. Também foi identificado que os policialescos infringiram dispositivos legais brasileiros e a legislação multilateral, como a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Quais as saídas para uma mídia sem violações de direitos?
A advogada Ana Potyara, que integra a Andi, defende que o Judiciário brasileiro compreenda a gravidade das violações e os danos causados à sociedade pelos programas policialescos. Em relação aos apresentadores-políticos, ela afirma que as emissoras precisam ser responsabilizadas, pois são concessões públicas e devem cumprir o que determina a legislação em relação às TVs comerciais. “Não é possível que esses programas continuem servindo de palanque eleitoral a essas pessoas. É preciso identificar as violações, os crimes cometidos, e que tanto as emissoras quanto os apresentadores sejam processados”.
Mesmo com a atuação da sociedade civil e do MPF no combate às violações aos direitos humanos causadas pelos programas policialescos, elas continuam acontecendo. E os motivos, para isso, são vários. Janaine Aires ressalta que a sociedade e o Estado devem atuar em duas frentes: “A primeira delas, obviamente, é reivindicar o fortalecimento das regras que regem a mídia, a comunicação no Brasil, é preciso ter controle social sobre essa atividade. Essa reivindicação não pode estar apartada de um processo de conscientização sobre a necessidade, ou sobre a importância de um direito humano à comunicação. As pessoas precisam entender a importância da comunicação para a garantia dos demais direitos, como a comunicação é importante para que a gente possa pautar o acesso à saúde, à educação, ao meio ambiente”.
Para a professora e pesquisadora Ticianne Perdigão, autora da tese “Fiscalização estatal sobre o conteúdo televisivo: violação de direitos em programas policiais na televisão”, que analisou o policialesco paraibano Correio Verdade, o Estado brasileiro tem sido ineficiente para fiscalizar esses programas. Ela acredita que a atualização da legislação que regula os meios de comunicação no Brasil é apenas um dos caminhos para coibir as violações. “Esta pode ser galgada através de debates públicos, da mobilização da justiça, através de ações e dos movimentos sociais. Outra maneira de coibir a transmissão de violações que tem se demonstrado mais rápida e eficaz é desestabilizar a forma de financiamento privado provindo dos comerciais e patrocínios”, avalia.
Com a chegada ao poder executivo de um governo progressista, havia esperança por parte do movimento pelo direito à comunicação no Brasil que o Ministério das Comunicações pudesse atuar de maneira mais eficaz em relação aos programas policialescos, às emissoras e aos apresentadores e repórteres que violam direitos humanos. Porém, logo após o anúncio do nome que comandaria a pasta, houve uma frustração. Quem assumiu o cargo foi um político aliado a velhas oligarquias, pertencente a um partido da direita brasileira, o União Brasil, que conta com radiodifusores em seus quadros. Ticianne acredita que o movimento pelo direito à comunicação deve continuar mobilizando a sociedade em relação a essa pauta e que o governo federal aceitou a indicação de Juscelino Filho em prol da governabilidade. “O Ministério das Comunicações faz parte desse jogo. A política é um ambiente contraditório. A ação política social é diária e deve responder a essa conjuntura. A mudança de realidade vai além de nossos desejos”.
Mabel Dias é jornalista feminista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal da Paraíba, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.