Eleições 2008: mais do mesmo
O problema mais sério não está nos programas de governo, ou na falta de identidade política dos partidos. Está na estrutura do poder e na falta de controle social sobre os eleitos.
Há quem diga que é a democracia que está desgastada. E que governos antidemocráticos – vale dizer, autoritários e elitistas – seriam bem-vindos se resolvessem os problemas que atormentam os cidadãos. Na fórmula para satisfazer os mais carentes e angariar seus votos poder-se-ia incluir um pouco de populismo, distribuição de cestas de alimentos, vale-qualquer-coisa.
Nesta visão, o Prefeito reina. E conquista a sua maioria na Câmara Municipal oferecendo cargos e prebendas aos vereadores, que se transformam em uma extensão do Executivo, administrando as demandas regionais de seus eleitores e se constituindo como mediação entre o cidadão e o governo municipal. Verdadeiros despachantes. Uma profissão, aliás, que só existe no Brasil.
Para discutir esse assunto temos uma herança histórica a considerar. Quem vai para Ouro Preto, por exemplo, descobre que no século XIX a cadeia era embaixo da Câmara Municipal. Os vereadores eram os grandes proprietários, e eram eles mesmos o poder judiciário e legislativo. Julgavam o “infrator” e este já ia para a cadeia, logo abaixo da Câmara Municipal. Nem é preciso ler Jorge Amado e a história da formação de Ilhéus, onde os coronéis queimavam os cartórios quando os títulos de propriedade atrapalhavam seus planos.
Num passado mais recente podemos observar que muitas vezes são duas famílias que se alternam, a cada eleição, no governo da cidade. De todas as maneiras, a maioria dos municípios brasileiros ainda é governada por elites que tratam os bens e os recursos públicos como coisa privada, orientando as políticas públicas para beneficiar os grupos de interesse que representam.
Nas últimas décadas, com o surgimento de grandes metrópoles e de uma classe média maior, esse jogo mudou. O controle do voto não é mais tão efetivo, os meios de comunicação de massa permitem que os discursos dos candidatos cheguem à casa de todos, já que quase todos têm televisão… Mas muitos traços do passado permanecem vivos e atuantes. Quais são mesmo as diferenças substanciais nos programas de governo dos candidatos que disputam as Câmaras Municipais e as Prefeituras?
O problema mais sério não está nos programas de governo, ou na falta de identidade política dos partidos. Está na estrutura do poder e na falta de controle social sobre os eleitos. É claro que os olhos cegos da Justiça e a impunidade de que gozam os eleitos contam, mas não são determinantes. O que define o “stress” com nossa democracia é que o governo é exercido de maneira vertical, centralista, autoritária e hierárquica. E, em geral, não beneficia as maiorias.
Recentemente vem surgindo, em várias partes do mundo e também no Brasil, uma reação a esse tipo de democracia “de baixa intensidade”, como dizem alguns sociólogos. Nossas sociedades e nossos crescentes problemas não aceitam mais passar um cheque em branco para os eleitos. E pode-se dizer que a aspiração da cidadania é o avesso do que temos: maiores recursos e poderes para os governos locais, descentralização da gestão nas Prefeituras, democratização das decisões e participação direta da cidadania, políticas que priorizem os direitos humanos, a busca da eqüidade, a sustentabilidade socioambiental.
Mas como é que uma estrutura de poder construída para garantir o controle de poucos pode formular políticas que beneficiem as maiorias? Seria como dar um tiro no pé. Chegamos a um impasse. Com essas Câmaras Municipais e com esse modelo de Prefeitura não dá para mudar as políticas públicas.
O caminho que vários atores da sociedade civil têm apontado para “democratizar a democracia” é o da reforma política. E, se olharmos à volta, para outros países, há inúmeros exemplos que podem nos inspirar. No Canadá existem partidos políticos municipais (que se coligam para eleições estaduais e nacionais), e os candidatos a vereador não podem arrecadar mais do que certo valor para sua campanha; há um teto de arrecadação que torna possível os candidatos pobres enfrentarem aqueles apoiados pelo grande capital. Em vários países da América Latina existem hoje os referendos revogatórios, que no meio do mandato dos governantes eleitos ratificam ou destituem o governante. Não faltam exemplos e sugestões.
A questão central é que essa mudança tem de vir de baixo para cima – da sociedade, e não das instituições políticas. Requer a mobilização da cidadania. Requer que se faça uma constituinte municipal, uma nova Lei Orgânica Municipal. Requer, enfim, um horizonte não de uma simples reforma política, mas de uma refundação democrática.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.