Em busca de recursos naturais
Dependente dos hidrocarbonetos estrangeiros, a Europa se preocupa cada vez mais com a falta de diversidade de suas importações e com sua submissão à instabilidade do mercado. Além disso, o Velho Mundo teme a possibilidade – concreta – de os países exportadores formarem um grande cartel também para o gás natural
Um mercado único europeu de eletricidade e de gás, que fosse verdadeiramente competitivo, se traduziria por uma queda dos preços, uma melhoria na segurança do abastecimento e um reforço da competitividade. Também teria um efeito benéfico sobre o meio-ambiente.” Ao redigirem essas frases no Livro Verde de 2006, acerca do desenvolvimento de uma política energética comum1, os membros da Comissão Européia mostraram que tinham a pena ágil e muito senso de humor. Se dependesse deles, o mercado permitiria tudo!
Um comunicado recente da comissão sobre os setores europeus de gás e eletricidade explicita melhor o que é considerado o problema central: as tarifas regulamentadas da energia, fixadas pelos poderes públicos, são muito baixas e “desencorajam a entrada de novos concorrentes”2. Seria necessário, portanto, que os Estados liberassem os preços.
As reações ao comunicado não demoraram e, especialmente na França, a Comissão de Regulamentação da Energia (CRE) concordou com o tom usado pela cúpula da União Européia e afirmou que “os aumentos de tarifas [regulamentadas] deveriam ser ainda mais elevados que aqueles propostos [pelo governo]”3. Leia-se: é preciso elevar os preços para intensificar a concorrência, que, presumidamente, cobraria menos dos consumidores…
Dessa forma, a livre disputa, vetor da alta dos preços, também constituiria a ferramenta ideal para “melhorar a segurança do abastecimento”. De fato, como a Europa sempre foi dependente dos hidrocarbonetos estrangeiros, ela se preocupa cada vez mais com a falta de diversidade geográfica de suas importações e com sua submissão à instabilidade do mercado.
Cada vez menos energia fóssil
De acordo com o Gabinete de Estatísticas da Comunidade Européia (Eurostat), a taxa de dependência energética da UE passou de 45% em 1997 para 54% em 20064. E por razões evidentes: não somente a produção européia de energia recuou 9% desde 1997, mas o consumo total de energia primária não parou de crescer até agora5. O resultado disso é que em uma década as importações aumentaram 29%. Porém, o que essa cifra encobre exatamente?
Em primeiro lugar, a UE produz cada vez menos energia fóssil. Primeira energia primária consumida nos anos 1960, o carvão mineral ocupa hoje apenas o terceiro lugar nesse ranking, atrás do petróleo e do gás natural. Uma a uma, as minas estão sendo fechadas.
Simultaneamente, o esgotamento progressivo de suas reservas de petróleo, que têm duração estimada de menos de oito anos caso seja mantido o atual ritmo de produção6, a obriga a se aproximar de potenciais fornecedores como Rússia, Oriente Médio e Argélia. Finalmente, a extração de gás natural europeu vem diminuindo desde 1996, enquanto a demanda vem aumentando consideravelmente nos últimos 15 anos. Em 2007, os países da UE consumiram duas vezes e meia mais gás do que produziram.
Esse entusiasmo pelo gás deve-se, em parte, a seu uso na geração de eletricidade. Enquanto a parcela de energia nuclear na produção elétrica européia estagnou a partir dos anos 1990 e a do petróleo e do carvão não pára de diminuir, a do gás triplicou em 15 anos. Porém, ao construir várias centrais de ciclo combinado a gás, o setor elétrico europeu se viu dependente das importações e de variações de preços.
Como com o petróleo, a escolha do gás natural na produção de eletricidade evidencia o problema da segurança de abastecimento da UE e de sua vulnerabilidade diante dos países exportadores. A situação é complexa: 83,4% do gás que os europeus importam provém de apenas três países, Rússia, Argélia e Noruega, essencialmente por gasoduto. Para melhor se precaver contra as incertezas, econômicas e geopolíticas, a UE procura diversificar suas fontes de abastecimento, recorrendo a um novo método de transporte, os navios criogênicos.
Entre 1985 e 2000, a baixa dos preços do gás favoreceu a assinatura de contratos de distribuição a longo prazo (até 30 anos), o que levou à construção de vários gasodutos. Os preços de venda para o consumidor final estavam garantidos, porém o processo acorrentava os países importadores aos exportadores. Um dos eixos da liberalização do setor do gás visou, portanto, a multiplicação dos contratos a curto prazo, a fim de encorajar a chegada de novos fornecedores aos mercados. Não se tratava de reduzir a dependência energética européia em face de suas importações – na ausência de capacidades domésticas renováveis, ela é inevitável –, mas de variar suas possibilidades de compra.
Contrariamente ao mercado do petróleo, o do gás permanece regionalizado devido a restrições de infra-estruturas ligadas aos gasodutos. Europa, Ásia e América trocam pouco entre si.
Mas com o uso crescente do gás natural liquidificado (GNL)7 já é possível prever uma internacionalização desse mercado. Isso porque o GNL é 600 vezes menos volumoso que no estado gasoso, e seu transporte – por navios criogênicos – e armazenamento revelam-se tão flexíveis quanto econômicos. Uma oportunidade para os contratos a curto prazo, e para os países exportadores que apostam nesse novo produto: Nigéria, Catar (terceira reserva mundial), Trinidad e Tobago (que abastece principalmente os Estados Unidos), Malásia e Indonésia.
Em 2005, o GNL respondeu por 22% do comércio mundial de gás – a taxa poderá chegar a 38% até 2020. Sempre obcecada pela concorrência, a UE impôs, em 20038, uma restrição aos operadores mais tradicionais do setor: permitir o acesso de terceiros à rede e, especialmente, aos terminais de recepção do GNL.
Dependência mútua
Esses contratos a curto prazo satisfazem a Comissão Européia, pois facilitam o encontro entre a oferta (fornecedores) e a demanda (distribuidores), de onde resulta a cotação do gás. Tudo parece simples. Porém, esse liberalismo é claudicante: o preço de mercado desse produto é indexado pelo do petróleo, cuja instabilidade constitui uma incerteza adicional para compradores e exportadores. Uma dependência mútua da qual todos desejariam se livrar, sem dúvida.
De fato, abordar a questão da dependência energética européia limitando-se apenas ao ponto de vista do cliente não tem muito sentido. Basta adotar a perspectiva dos países produtores para compreender que sua posição é mais frágil do que parece. A maioria das nações que fornecem gás para a Europa vende a quase totalidade de suas exportações para esse continente. Mais de 80% do metano que sai da Rússia ou da Argélia acaba nos terminais europeus, assim como praticamente todo o gás norueguês. Aliás, a UE não está longe de ocupar uma posição de única consumidora diante de vários produtores – uma situação rara, batizada de “monopsônio”.
Para compensar essa conjuntura e os riscos decorrentes dela, alguns produtores estão reorientando uma parte de suas exportações – especialmente para a China – e assumindo o papel de distribuidores finais. Assim, a companhia russa Gazprom, principal fornecedora de gás da UE, constrói, em parceria com grandes grupos da Europa, gasodutos que concorrem com aqueles criados pelos próprios países europeus.
O gasoduto Nord Stream, por exemplo, que interliga a Rússia à Alemanha pelo norte da Europa e que deverá ser concluído em 2010, está sendo construído com a participação das empresas energéticas alemãs E.ON e BASF e da sociedade holandesa de transporte de gás Gasunie. Previsto para alimentar o sudeste do continente também a partir da Rússia, o gasoduto South Stream, construído com a ajuda da italiana ENI, deve ser inaugurado em 2013. Será um grande concorrente do gasoduto Nabucco, que deve levar o gás do Irã até a Áustria, atravessando a Turquia e contornando o território russo. Porém, apesar dos planos para o Nabucco entrar em funcionamento em 2012, suas obras estão comprometidas por falta de financiamento: a participação da Gaz de France foi rejeitada pela Turquia porque a França teria reconhecido o genocídio armênio.
Assumindo o papel de distribuidor, a Gazprom também concorrerá com a GDF-Suez no mercado francês. Com o tempo, a gigante russa almeja comercializar diretamente 10% do gás natural consumido na França9. Uma postura que desperta certo temor de comportamentos anticompetitivos: “Se a empresa Gazprom se estruturar de fato no mercado de fornecimento de gás na Europa, ela poderá aumentar de forma estratégica o custo do gás que vende aos seus concorrentes enquanto comercializa seu próprio produto diretamente aos clientes finais a um preço muito mais competitivo”10.
Ameaçados pela evolução da estrutura do comércio do gás, os países exportadores também poderiam tentar estabelecer acordos. Se, a curto prazo, a formação de um cartel não é possível devido à grande heterogeneidade das ambições desses Estados, ela não deve ser descartada a médio prazo. O agrupamento das principais nações exportadoras de gás em um modelo como o da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) poderia acarretar o aumento dos preços ou a redução dos volumes de produção.
Com suas pequenas reservas comprovadas e uma grande produção, a Noruega deverá ver seus recursos gasíferos se esgotarem mais rapidamente do que os dos outros países que poderiam formar o cartel. A Rússia, a Argélia e quiçá a Líbia e a Nigéria constituiriam então uma base forte para esse agrupamento, sob o risco, contudo, de ver a Rússia comportar-se como “sócia majoritária”.
Economia globalizada
Tal organização anunciaria o fim da liberalização energética européia: os países exportadores fixariam os preços e as quantidades a produzir, e as empresas da UE estariam desestruturadas e sujeitas à concorrência. Nessas condições, a solução preconizada por Bruxelas não surpreende: exportar a concorrência para os países produtores. A Comissão Européia preconiza, aliás, que os acordos com outros países podem “conter disposições sobre a abertura dos mercados, de investimentos, de concorrência e de convergência das regulamentações”11. Certamente uma utopia, pois parece que a UE esqueceu que a economia está globalizada. O problema reside menos na dependência energética dos europeus do que na sua integração econômica no seio do comércio
internacional de recursos não-renováveis.
Em vez de encorajar os gigantes públicos da energia a investir em unidades de produção e dialogar com os operadores estrangeiros, a UE preferiu desmantelar seus monopólios históricos. Ao não favorecer a eficácia, seu dogmatismo engendrou um oligopólio de empreses privadas mais preocupadas com seus acionistas do que com os usuários, transformados em “clientes”.
Outra política igualmente européia consistiria em edificar uma empresa energética única, garantidora de um serviço público europeu. Até os especialistas menos intervencionistas concordam num ponto: as redes constituem monopólios naturais e deveriam ser administradas por uma única e mesma entidade. Assim, apoiado na energia nuclear civil existente, no desenvolvimento das energias renováveis e nas importações diversificadas de gás natural, esse hipotético monopólio público poderia se encarregar do transporte, da distribuição e de uma parte da produção da energia européia. Uma oportunidade de reduzir sensivelmente os custos comuns e as emissões de gases de efeito estufa. Mas isso não parece estar em discussão em Bruxelas. Para dar vida a tal projeto seria preciso uma outra Europa.
*Mathias Reymond é economista, membro da equipe editorial da Action Critique Médias (Acrimed).