Em defesa do Conselho Municipal de Habitação de São Paulo
Para os atores que reivindicam uma política habitacional que reconheça o direito à cidade, o atual contexto político em São Paulo é desfavorável. O gov. Kassab, em continuidade ao de Serra, entende que a solução habitacional p/ famílias que ganham até 3 salários mínimos não está no centro, mas na urbanização de favelasNEPAC – Unicamp
(Prefeito de São Paulo Gilberto Kassab e seu antecessor José Serra: manobras no processo eleitoral)
Pouca gente sabe, mas os cidadãos brasileiros podem participar de eleições não obrigatórias em seu município. É o caso de alguns conselhos gestores de políticas públicas em que os representantes populares são eleitos pelo voto direto dos eleitores da cidade, como o Conselho Municipal de Habitação (CMH) de São Paulo, cuja quinta eleição ocorre em 4 de dezembro. Nessa data serão escolhidos os dezesseis representantes de organizações populares que, com organizações da sociedade civil, governo e mercado, definirão os rumos da política de habitação no município.1
Os principais temas em disputa no conselho são a produção de moradia para a população de baixa renda e o direito das classes populares de morar no centro. Não há consenso sobre essas questões, já que em torno delas se conformam projetos políticos distintos no que se refere ao uso e à destinação dos recursos e dos espaços da cidade. E o CMH é um espaço estratégico para os atores em disputa, pois tem caráter deliberativo, sendo responsável pela elaboração, aplicação e fiscalização da política habitacional, além de operador do Fundo Municipal de Habitação.2 Esse poder faz do conselho um espaço capaz de intervir em interesses econômicos poderosos na cidade, associados ao capital imobiliário e à construção civil.
Existem em São Paulo diversos movimentos de moradia que se configuram como um campo político que afirma o direito à cidade3 e entra em choque com os interesses associados à especulação imobiliária, sobretudo quando a prática especulativa assume primazia em detrimento do direito de morar dignamente. Assumir uma luta cujo grande antagonista é o capital imobiliário não é fácil.
Para esses atores que reivindicam uma política habitacional que reconheça o direito à cidade, o atual contexto político em São Paulo é bastante desfavorável. O governo Kassab (ex-DEM, hoje PSD, 2006-), em continuidade ao governo Serra (PSDB, 2005-2006), entende que a solução habitacional para famílias que ganham até três salários mínimos não está na região central, mas na urbanização de favelas.4 Símbolo da ruptura política em relação ao governo anterior (Marta Suplicy – PT, 2001-2004) foi a indicação do então presidente do Secovi – o maior sindicato imobiliário da América Latina – para o cargo de secretário habitacional de São Paulo em 2005. Mesmo que os governos Serra/Kassab não tenham eliminado totalmente as ações de promoção de moradia popular no centro, o ritmo é muito lento. Há mais de dois anos o governo Kassab prometeu a desapropriação de aproximadamente cinquenta prédios ociosos na região para a construção de habitação popular. No entanto, até agora só se observaram reintegrações de posse e desocupações – muitas vezes violentas, sem contrapropostas efetivas para as famílias despejadas –, aliadas a uma postura de criminalização dos movimentos sociais.5
A participação no CMH é apenas uma das ações que compõem o diversificado repertório de ação dos movimentos de moradia. Ainda assim, essa participação é valorizada pelos atores populares no avanço de suas pautas.6 Além de poderem participar da construção da política e das ações habitacionais da cidade, os atores populares se referem ao acesso a informações importantes como motivo para investir no conselho. Da parte dos governos, o conselho é importante porque tem poder para interferir nos rumos da área habitacional. Não é de estranhar, portanto, o interesse crescente do governo, dos movimentos e dos partidos nas sucessivas eleições do CMH. Só para ter uma ideia, na primeira eleição, realizada em 2003, participaram do pleito mais de 31 mil eleitores; em 2009, foram mais de 47 mil eleitores, e para a eleição vindoura, mais de 100 mil eleitores estão cadastrados para votar.
As últimas eleições para o CMH são eventos que demonstram a importância crescente das instituições de democracia participativa no Brasil, ao mesmo tempo que explicitam sua vulnerabilidade em relação à tendência de controle por parte de alguns governos. O processo eleitoral do CMH deste ano tornou nítidos os esforços da Prefeitura em minar a representatividade no espaço e consolidar um conselho de aliados. As mudanças propostas pela Prefeitura nas regras da eleição deste anoevidenciam a intenção de eliminar desse espaço todos os grupos que defendam visões contrárias à dela.
Antecedentes desta eleição
Vejamos a quarta eleição, ocorrida em 2009. Naquele ano, por decisão da Comissão Eleitoral do Conselho,7 estabeleceu-se que a organização das candidaturas (até então individuais) se daria por meio de chapas. Além disso, a partir de então os eleitos seriam definidos segundo o critério da proporcionalidade.8 Essa decisão foi tomada consensualmente, de modo a assegurar a pluralidade da representatividade dos diversos segmentos, já que desde 2003 foram-se desenhando com nitidez campos políticos em disputa sobre os rumos da política habitacional. Em um nível mais amplo, o conflito estrutura-se de acordo com o posicionamento dos atores em relação aos princípios da reforma urbana e do direito à cidade. De um lado, as propostas do campo das esquerdas que invocam esse direito; de outro, propostas que contrariam as primeiras, como a resistência à viabilização de moradias populares nas regiões mais centrais. No caso do segmento popular, cujos dezesseis representantes se definiam sem o critério de proporcionalidade até 2009, cada gestão era do tipo “tudo ou nada” para os respectivos campos da esquerda e direita, ficando sempre um deles excluído do conselho.9
Naquele mesmo ano, contudo, apesar do aparente avanço democrático que representa a decisão do critério de proporcionalidade para a composição do conselho, já observávamos indícios de graves irregularidades em torno do processo eleitoral, por parte da Prefeitura. Havia cinco chapas do segmento popular na disputa, sendo uma delas claramente sustentada pelo governo Kassab e por parlamentares de sua base de apoio, o que representa a absurda situação de uma Prefeitura compondo chapa numa eleição de organizações populares. Afinada às suas origens, a tal chapa foi nomeada “Habitação no Rumo Certo”, em uma clara alusão ao slogan “São Paulo no Rumo Certo” da campanha eleitoral de Kassab ao governo municipal de São Paulo em 2008.
Houve ainda explícito uso da máquina pública em prol da chapa governista, como a distribuição de material de campanha da chapa em diversos órgãos públicos municipais, como subprefeituras, centros de saúde e outros espaços de circulação, além do transporte em massa de eleitores em ônibus que fazem o transporte de alunos da rede pública municipal. Além disso, outros problemas sinalizavam manobras do processo eleitoral em favor da chapa governista: a divulgação de locais de votação e sua posterior retificação, sem tempo hábil para que todos pudessem tomar conhecimento dela; o uso de um sistema informatizado cuja fiscalização foi inoperante, possibilitando fraudes como a que consta em atas das subprefeituras de Pirituba e da Casa Verde, em que o eleitor, ao apresentar-se para votar, foi informado que já haviam votado em seu lugar; e a falta de privacidade nos locais de votação.
Diante de tais atitudes, que demonstram a ausência de idoneidade num processo que deve ser transparente e democrático, um dos movimentos – a União dos Movimentos de Moradia – entrou com uma ação na Vara da Fazenda pedindo a anulação do pleito, sem resultados até hoje.
Manipulação persistente
Se esses descalabros antidemocráticos foram anunciados nas práticas em 2009, nas eleições de 2011 a ousadia invadiu o domínio das regras, que outrora parecia anunciar avanços. Neste ano, duas chapas cumpriram os requisitos e foram homologadas para disputar o pleito: novamente a “Habitação no Rumo Certo” e a “Unidade na Luta”, esta última formada por movimentos do campo das esquerdas. Na comissão eleitoral deste ano, a Prefeitura deu o pontapé inicial para que o critério de proporcionalidade fosse revogado, o que significa dizer que a chapa que tiver mais votos (50%+1) levará todas as dezesseis vagas de conselheiros populares. Cabe destacar que os representantes da Prefeitura na comissão votaram a favor dessa revogação.
Essa decisão foi aprovada com ampla maioria, já que os representantes da comissão, assim como os do conselho como um todo, são majoritariamente alinhados ao governo municipal, apesar de formalmente representarem organizações do segmento popular. A decisão beneficia o campo com maior potencial de recrutamento de votos na cidade e exclui totalmente do processo deliberativo o campo minoritário, agindo assim na contramão do princípio plural e representativo do conselho. Trata-se de uma decisão impossível de ser justificada à luz dos valores democráticos, não restando outra interpretação que a da tentativa de criar um conselho manobrável por parte do poder público municipal.10
Além disso, neste ano foi definida a necessidade de um pré-cadastramento dos eleitores que quisessem votar no dia das eleições, sob justificativa de aprimoramento organizativo do processo eleitoral. O problema que o pré-cadastramento coloca para as organizações populares é o de viabilizar esse pré-cadastro para famílias que, em sua maioria, não têm acesso a computadores e possuem várias dificuldades em cumprir o procedimento para tornar seu voto viável. A chapa governista, por outro lado, poderia ser beneficiada pelo acesso facilitado à estrutura administrativa municipal. É essa a acusação que lideranças dos movimentos de moradia levantam hoje, com base na análise do número de pré-cadastrados nas diferentes regiões da cidade. Segundo essas lideranças, beneficiários de programas assistenciais – como o Bolsa Família e o Leve Leite – informaram que, ao se cadastrarem em algum desses programas, recebiam a recomendação de votar na chapa governista nas eleições do CMH e eram inseridos no pré-cadastramento eleitoral. São fatos que ainda precisam ser apurados – espera-se –, mas parece no mínimo peculiar que, numa eleição em que se criou um mecanismo que dificulta o recrutamento eleitoral, um número tão elevado de pessoas tenha sido cadastrado.
Outra atitude patrocinada pelos representantes da Prefeitura da Comissão Eleitoral foi a mudança dos pontos de votação. Desde a primeira eleição do CMH, os pontos de votação coincidem com as 31 subprefeituras. Neste ano, com o argumento da melhoria na organização e desempenho dos locais de votação, foi acordado na Comissão Eleitoral que os pontos seriam apresentados por representantes do segmento popular. Contudo, numa reunião posterior, essa decisão foi atropelada, e a Prefeitura apresentou uma proposta em que constavam apenas dez subprefeituras como pontos de votação, sob alegação de que não era viável abrir como ponto eleitoral uma subprefeitura com menos de mil eleitores. A diminuição dos pontos de votação desestimula os eleitores que precisarão fazer longos deslocamentos para votar num dia em que há menos ônibus circulando. Com a pressão dos movimentos, esse número subiu para 22: das 31 subprefeituras existentes em São Paulo, nove ficaram de fora.
Diante do atropelo da revogação da proporcionalidade, da outorga do pré-cadastro e da supressão de pontos de votação, a bancada do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo encaminhou uma ação ao Ministério Público na expectativa de reverter esse quadro.
Além do uso dos instrumentos jurídicos disponíveis, os movimentos de moradia organizaram, no dia 10 de novembro, uma marcha – que partiu do Largo São Bento em direção ao Tribunal Regional Eleitoral – em protesto contra a forma como a prefeitura vem conduzindo a eleição do segmento popular do CMH. Esse ato procurou dar alguma visibilidade à maneira como esses processos eleitorais estão sendo conduzidos, já que essa é uma eleição desconhecida do público e desinteressante para a grande mídia. Pela falta de visibilidade, não há pressão, vigilância e coação suficientes que inibam práticas antidemocráticas, como as que se viram nas últimas duas eleições.
Chamamos a atenção para a importância de proteger esse espaço, fundamental para a garantia do direito à moradia digna e para o aprofundamento da participação popular em um projeto de gestão democrática da cidade.
NEPAC – Unicamp Núcleo de Pesquisas em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC), criado em 2008 e é coordenado pela professora doutora Luciana Tatagiba. Informações sobre o núcleo podem ser acessadas no Diretório de Grupos de pesquisa do CNPQ.