Em marcha para o precipício
Trecho inédito do livro Fúnebre névoa, lançamento que aborda os anseios psíquicos de Eric, jovem que passa a questionar todo o andamento convencional da sociedade diante das mudanças climáticas. A história retoma o fatídico dia de agosto de 2019, quando a fumaça dos incêndios na Amazônia se dispersou sobre todo o Brasil, transformando o dia em noite. Disponível para compra através deste link
Eric esquadrinhou o olhar pelo infindável auditório e visualizou inúmeros rostos de pessoas convencionais e genéricas. Reconheceu, dispersos pela sala, Jenny, Rafael, Cristiano e até a coitada da Maria… E pareciam iguais. Todos prosseguiam como se nada estivesse acontecendo, todos mantinham a aparência de normalidade num mundo em deterioração.
Via-se cercado por pessoas estáticas e apartadas. Já não conseguia conter a repulsa por aquele meio onde todos pareciam estar enclausurados num simulacro produzido por um sistema, um recorte minúsculo da realidade onde ninguém interagia com os custos e os sofrimentos necessários para mantê-lo.
Passou a mão na almofada da poltrona. Até o revestimento de poliéster do assento era falso, um polímero sintético que depois de descartado iria liberar um sem-fim de microplásticos ao ambiente. Os acabamentos de ferro da cadeira, o microfone que o professor usava, os metais da bateria do próprio celular, as roupas e até a carne que iria comer no almoço… Todos eram produtos possibilitados por um modo de produção que se impunha por meio da violência, da exploração e do sofrimento.
Mas Eric fazia parte do grupo de pessoas que usufruíam, mesmo que de forma limitada, desse esquema. Pensou nas matas nativas e nas florestas frondosas que se transformavam em extensos campos áridos, mas para criar gado e cultivar os alimentos que ele consumia. Pensou nas montanhas inteiras que os homens perfuravam até se afundarem em crateras e abismos abertos no chão, mas para extraírem minérios que produziriam os itens dos eletrônicos que ele usava…
Até o seu próprio celular, que agora vibrava no bolso, só existia porque a ordem global estava configurada de tal forma a drenar recursos minerais, como lítio e cobalto, de países pobres. Sem se valer desse sistema de exploração e dominação, as empresas estrangeiras não conseguiriam os materiais necessários para produzir o aparelho…
No entanto, no meio em que Eric vivia, na rotina falsa e alienada que o simulacro propiciava, ninguém precisava interagir com esses fatos e questões. Nada daquilo exercia influência sobre o universo emocional, mental, moral ou intelectual das pessoas.
“O que conduz a vida de todos?”, pensou. “Quais propósitos e objetivos cultivam? Quais valores determinam o modo que enxergam a realidade? Quais os princípios? Eu me pergunto como que, diante do fenômeno que presenciamos, as pessoas não são tomadas por fortes emoções; como que as cabeças delas não fervilham de ideias, de conflitos, de revoltas; como que tudo isso não reativa nenhum princípio!”
Realmente, nunca iria obter satisfação do convívio social falso e habitual, pois ele estava todo fundamentado numa fraude. Esquadrinhou mais uma vez o auditório. Até a pobre Maria que tanto amava! Como ia interagir com todo o arsenal de futilidade que moldava a concepção de vida daqueles indivíduos? Tudo se resumia a bens materiais passageiros, posses e busca por destaque.
“Ah, o doce benefício da ignorância contra a amargurada dor da consciência!”, pensou. “A vantagem do intelecto inativado e do raciocínio limitado é que eles nunca irão sofrer com o tormento que a sabedoria genuína traz consigo. O conhecimento rasga as ilusões, desmascara o véu, te expõe, esfrega de forma explícita em sua cara, sem constrangimento, o horror da realidade. E como se satisfazer com as relações ordinárias, frívolas e habituais depois disso? Como encontrar por ali uma fonte de prazer?”
Uma faísca iluminou sua cabeça e, de repente, ele pôde compreender toda a contrariedade que o acompanhava junto ao peito.
O que Eric realmente ansiava era viver em nome de seus valores e ideais, uma vida integral a serviço de seus princípios, na qual poderia lutar por uma transformação social que sabia que deveria acontecer. Mas frequentava um meio onde as pessoas comportavam apenas propósitos convencionais de vida. Lá, todos buscavam ter acesso a bens materiais, todos eram motivados por questões mundanas, impulsionados pelo desejo de se sobressaírem uns aos outros. Lá, todos queriam disputar um espaço elevado na escala hierárquica deletéria, em vez de destruí-la.
Contudo, ele também vivia no seio da sociedade capitalista. O que iria fazer?
Nada naquela aula, que manipulava artifícios intelectuais para a mera instrução profissional, propiciava-lhe um caminho digno e genuíno a ser percorrido. Sentiu-se vazio, desprovido de referências. Qual caminho seguir? Já não era mais o garotinho que se iludia em viver isolado na floresta como Henry David Thoreau. Porém, também não sabia de fato como exercer sua verdadeira personalidade, como mobilizar seus sentimentos e ideais para trabalhar em algo de maneira produtiva. Essas características eram apenas componentes avulsos, infrutíferos, que vagavam pelo seu ser sem trazer realizações. Na direção contrária, a faculdade instruía Eric a buscar uma vaga dentro do sistema, buscar uma posição confortável na escala hierárquica deletéria de dominação social. “Aliás, essa seria a única forma de eu me manter financeiramente”, pensou.
Naquele instante, cercado por inúmeras pessoas convencionais e genéricas, a percepção de que o mundo estava acabando realmente impregnou e se extravasou pelo seu ser. Temia morrer sem ter sido fiel aos seus ideais, sem ter realizações em nome de seus princípios, só mais um em meio à multidão, só mais um dentro da manada frustrada, resignada e deprimida.
Lembrou de Tolstói, que morreu tentando fugir da sociedade e no final foi engolido por uma roda de sentimentos destrutivos.
O que iria fazer? Qual era o propósito dele estar ali? De se associar àquelas pessoas? Quais frutos isso traria?
A fúnebre névoa se estendia, enquanto a humanidade marchava silente para o precipício.
Gabriel Dantas Romano é historiador, ativista ambiental e autor de Fúnebre névoa.