Em nome do humanitarismo
Do Kosovo ao Afeganistão, as populações foram vítimas e pretextos para intervenções. Quanto às organizações não governamentais, elas foram instrumentalizadas ao longo de guerras que qualificamos sem hesitação de “morais”…
Nunca antes da intervenção aérea da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na República Federal da Iugoslávia (RFI) o grau de confusão entre guerra e humanitarismo tinha ficado tão evidente. A afirmação de um homem tão respeitável quanto Václav Havel de que “as incursões e as bombas não são provocadas por um interesse material, seu caráter é exclusivamente humanitário”1 mostra a extensão dessa confusão. Tais operações não impediram uma aceleração dramática da purificação étnica nem evitaram um forte retorno do nacionalismo da população sérvia − aterrorizada pelos bombardeios − em direção a Slobodan Milosevic.
A rejeição de qualquer ação no solo do Kosovo, paralelamente ao envio de tropas da Otan para a Macedônia e a Albânia para levar assistência aos refugiados, constitui um elemento suplementar de ambiguidade. Nenhuma proteção foi garantida aos civis do Kosovo, lá onde as tropas de Belgrado e as milícias obrigavam pela força e pelas piores brutalidades centenas de milhares deles a fugir. A atividade “humanitária” das tropas da Otan nos países fronteiriços mais uma vez criou a ilusão de uma ação.
Essa constatação não deve servir para evitar a questão da origem do conflito no Kosovo. Apenas uma profunda negligência e uma “aposta ruim” da “comunidade internacional” na pessoa de Milosevic o explicam. A determinação e a violência do regime de Belgrado em sua vontade de purificação étnica aparecem desde 1989.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), durante todo o ano de 1998 mais de 300 mil pessoas foram obrigadas a fugir de seus vilarejos, sistematicamente pilhados e destruídos pelas forças sérvias. Os testemunhos dos deportados mostram que execuções sumárias, estupros, incêndios de vilarejos e organização da deportação fazem parte de uma vasta operação planejada havia muito tempo, que lembra os horrores de Vukovar ou de Srebrenica. Apesar desses fatos abundantemente relatados pelas organizações não governamentais presentes no Kosovo, a “comunidade internacional” preferiu, uma vez mais, fechar os olhos.
Os observadores da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) tinham sido colocados no terreno, e cada um preferia acreditar que essa decisão seria suficiente para conter o horror num nível aceitável pelas opiniões. Durante esse tempo não havia cessar-fogo, nem livre circulação de pessoas, nem acesso facilitado às organizações humanitárias.
Desde então, se a guerra que acontecia era “moral”, foi no próprio Kosovo que uma proteção de proximidade das populações civis deveria ter sido garantida por uma força de polícia internacional, preferencialmente da ONU. Não é, claro, responsabilidade das ONGs se transformarem em estrategistas militares, mas por outro lado cabe a elas afirmar princípios. Se elas não fazem isso, quem mais terá legitimidade para fazê-lo? Foram os Médecins du Monde [Médicos do Mundo] gregos que trabalharam debaixo de bombas no hospital de Pristina e cujos comboios foram atacados. Foram as ONGs que militaram pela existência de uma Corte Penal Internacional, apesar da reticência de muitos Estados. Foram essas mesmas organizações que cooperaram com os investigadores do tribunal de Haia. E ainda são elas que continuam seu trabalho de assistência em todos os conflitos esquecidos do planeta. Lá onde civis são cotidianamente mortos na maior indiferença: Afeganistão, Argélia, República Democrática do Congo, Chiapas.
Alvo civil
O Kosovo aparece como um remakeruim de todos os horrores sofridos pelas populações civis nas guerras. O balanço humano desse fim de século é insuportável. Durante a Primeira Guerra Mundial, 5% das vítimas eram civis. Hoje, eles são mais de 90%. Os conflitos são cada vez mais assassinos. Os civis são a melhor maneira de fazer uma guerra − na pior das hipóteses, eles são o próprio objetivo. Genocídios, massacres genocidas,2 purificações étnicas, fome e deportações se multiplicam.
Assim, a aniquilação dos tútsis era o objetivo proclamado dos dirigentes extremistas que conceberam, planejaram e organizaram o genocídio perpetrado em Ruanda. Da mesma maneira, na Bósnia, a política de purificação étnica elaborada e colocada em prática pelos dirigentes sérvios tinha como finalidade assumida constituir zonas étnicas puras em todos os lugares onde comunidades sérvias estivessem assentadas. Nesses projetos loucos, a sobrevivência do grupo exterminador passa pela eliminação do outro.
Quando não são eliminadas, as populações civis são utilizadas como meio para fazer a guerra. Deslocá-las, fazê-las passar fome e pilhá-las permitem enfraquecer o campo adversário, privando-o de suas bases logísticas e de seu apoio popular. Na Chechênia, o Exército russo bombardeou maciçamente as zonas civis. No sul do Iraque, civis foram amarrados a tanques para proteger a entrada do Exército nas cidades durante a repressão do levante da primavera [do Hemisfério Norte] de 1991.
Quadros complexos e perigosos
Como um balanço como esse é possível? E, no entanto, o direito internacional humanitário3 não para de se desenvolver há quase meio século. Um sólido corpo jurídico foi constituído dessa forma, garantindo teoricamente a proteção dos civis em tempos de guerra. A aparição de novos conflitos, em configurações cada vez mais vagas, é uma das principais causas desse balanço. Raramente internacionais, eles opõem, como no Kosovo ou em Chiapas, um exército nacional a uma “força de libertação”. Às vezes, o desaparecimento do Estado faz que as facções se afrontem entre si, e a ausência de qualquer regulação conduz ao caos. Foi o caso na Somália, na Libéria ou em Serra Leoa. Raras são as situações em que dois grupos bem identificados se opõem. Nos casos mais frequentes, como no ex-Zaire [atual República Democrática do Congo, RDC], a intervenção de uma multiplicidade de agentes torna a situação ainda mais complexa.
A presença no campo de operações de um exército nacional, de numerosas facções, de milícias, de mercenários de diversos grupos políticos e étnicos e de tropas regulares de países fronteiriços reforça a falta de clareza das guerras de hoje. A privatização de certas guerras é uma dimensão inédita dos conflitos atuais, que colocam em cena máfias, representantes de companhias de mineração ou de petróleo ou de interesses econômicos poderosos. Esses agentes com grandes recursos financeiros, transformados em grupos armados, assim contribuíram para a desestabilização da Chechênia e de Angola.
Nesses quadros complexos e particularmente perigosos, o espaço de intervenção da assistência humanitária se reduz. Confrontadas a entraves militares, policiais, administrativos ou a condições de segurança muito degradadas, as ONGs têm cada vez mais dificuldade em curar, alimentar e proteger as populações civis reféns de combatentes. Frequentemente, a própria ajuda humanitária é utilizada pelas partes do conflito. É um meio, entre outros, de fazer a guerra. Como na Somália e no Sudão do Sul, abrir ou fechar as zonas de assistência é uma forma de manipular os civis, de deslocá-los, de identificá-los, de “pescá-los”. Agora, cada missão humanitária deve ser avaliada com o objetivo de determinar se não constituirá no fim das contas uma verdadeira armadilha para as populações.
Paradoxalmente, diante dessa constatação, a “comunidade internacional” é cada vez mais reticente quanto a qualquer intervenção visando proteger as populações. A experiência da operação “Restore hope”, de 1992, na Somália, mal preparada e com objetivos confusos, incitou a ONU a uma extrema prudência, limitando-se às vezes à paralisia, como foi o caso na Bósnia ou em Ruanda, ou a uma passividade cúmplice, como no ex-Zaire.
Uma forte mobilização da sociedade civil é indispensável para o progresso nesse sentido. Ela já existe. As ONGs e as associações de cidadãos são mediadores cada vez mais expressivos na vida política internacional. A campanha pela proibição das minas terrestres, culminando na adoção, em Ottawa, de uma convenção internacional e na mobilização das associações para a criação de uma Corte Penal Internacional em Roma, ilustra essa capacidade crescente das ONGs de se mobilizar e ter peso sobre as decisões.
A sociedade civil se torna um agente totalmente à parte na cena política internacional. Agora cabe a ela se mobilizar a fim de substituir o ser humano no coração da decisão política.