Em primeira homilia, Leão XIV optou por discurso religioso e não político
Na primeira missa realizada hoje, novo papa evita tom político, prioriza espiritualidade e sinaliza unidade como eixo de seu pontificado. Apesar de se inspirar e valorizar o papado de seu antecessor Francisco, suas diferenças são nítidas. Francisco: o político. Leão XIV: o religioso
A eleição de Robert Francis Prevost como papa Leão XIV representa uma inflexão significativa na trajetória recente da Igreja Católica. Norte-americano de nascimento e peruano por naturalização, o novo pontífice torna-se o primeiro papa imigrante com dupla cidadania da história moderna do catolicismo, e sua própria biografia já sintetiza a transnacionalidade e a pluralidade que caracterizam a Igreja no século XXI. Com um perfil missionário, poliglota e longa experiência pastoral no Peru, onde viveu por mais de vinte anos e se tornou bispo, sua escolha pelo colégio cardinalício sinaliza a aposta em um pontificado longo, enraizado na tradição, mas aberto à renovação.
Descrito por analistas como um “progressista conservador”, expressão imprecisa, mas útil para indicar sua transversalidade, Leão XIV sustenta posições doutrinárias firmes em temas como sexualidade, família e ordenação feminina, ao mesmo tempo em que demonstra um profundo compromisso com questões sociais contemporâneas, como justiça migratória, juventude e periferias. É uma figura que escapa aos rótulos fáceis: dependendo do ponto de vista, é interpretado como conservador ou como moderadamente progressista, e é justamente essa ambiguidade controlada que o torna um ponto de coesão raro em tempos de polarização dentro e fora da Igreja.
Sua espiritualidade é profundamente marcada pela tradição agostiniana, construída sobre três pilares centrais: interioridade, vida comunitária e serviço. Esses princípios aparecem desde os primeiros gestos de seu pontificado, em que valoriza a simplicidade, a escuta e a oração. Tudo indica que será um papa mais devocional e teológico do que político e pastoral, marcando uma diferença clara em relação ao estilo de Francisco.

Essa distinção tornou-se especialmente evidente em sua primeira homilia, durante a Missa inaugural. Leão XIV optou por uma abordagem explicitamente religiosa, afastando-se de discursos políticos ou geopolíticos. Iniciou sua fala em inglês, prosseguindo em italiano, em um gesto simbólico de abertura linguística e cultural, sinal de sua identidade global (falou em espanhol em sua primeira aparição). Ao centrar sua mensagem na missão da Igreja como comunidade de amigos de Jesus e na fidelidade ao Evangelho, ele reafirmou durante a homilia que seu foco será a unidade da fé, e se absteve de um discurso mais político. Em vez de declarações programáticas, preferiu evocar o Salmo: “Cantarei ao Senhor um cântico novo, porque Ele fez maravilhas”, uma chave teológica que articula gratidão, humildade e continuidade apostólica. É nesse tom que parece querer conduzir seu pontificado: com firmeza doutrinal, mas com espírito de comunhão.
A escolha do nome Leão XIV reforça esse simbolismo. A referência direta a Leão XIII, autor da encíclica Rerum Novarum (1891), que inaugurou a doutrina social da Igreja, parece indicar um desejo de atualizar o compromisso com os pobres e com os trabalhadores, mas sem abdicar da defesa da propriedade privada e da ordem moral tradicional. A própria Rerum Novarum já era ambígua, e o nome de Leão XIV parece carregar essa mesma tensão, sem ser contraditório: será um papa dúbio, mas não instável, alguém que o colégio cardinalício escolheu com precisão para conduzir a Igreja com equilíbrio.
Nos Estados Unidos, sua eleição teve repercussão imediata. Embora o país concentre mais de 72 milhões de católicos e um terço do Congresso se identifique com essa fé, a Igreja americana atravessa uma crise estrutural: perda de fiéis, queda nas vocações e marcas ainda abertas pelos escândalos de abusos sexuais. Além disso, os Estados Unidos tornaram-se o epicentro de um cristianismo nacionalista, impulsionado por figuras como Steve Bannon e o vice-presidente J.D. Vance. Ainda como cardeal, Prevost se opôs publicamente às deportações em massa promovidas por Donald Trump, postura que lhe garantiu reconhecimento entre católicos progressistas e desconfiança por setores alinhados à nova direita religiosa.
Ao contrário do que muitos esperavam, Leão XIV não é um “Francisco II”. Ainda que admire e preserve aspectos do legado de seu antecessor, especialmente o compromisso com os pobres, os migrantes e a “Igreja em saída”, ele opta por retornar à raiz comum entre Francisco e Leão XIII: a doutrina social da Igreja. É, nesse sentido, um movimento estratégico: ao “voltar atrás para dar um passo à frente”, Leão XIV sinaliza não ruptura, mas inteligência histórica. Sua eleição contrariou apostas consagradas como Pietro Parolin, Matteo Zuppi e Luis Antonio Tagle, e confirmou a máxima do conclave: “quem entra papável, sai cardeal”.
A América Latina teve papel central em sua ascensão. A articulação do episcopado latino-americano, com destaque para o Brasil, consolidou uma diplomacia eclesial do Sul que ganha peso simbólico e estratégico no Vaticano. Comparações com o papel de Oscar Rodríguez Maradiaga na eleição de Francisco ajudam a entender essa movimentação como parte de um projeto de Igreja mais global, menos eurocêntrica.
Sua primeira fala à multidão reunida na Praça São Pedro, feita em espanhol, e a menção a um arquiteto de sua cidade no Peru, em vez de referências a Chicago ou Roma, foram lidas como sinais concretos de sua preferência pelas margens, pelos rostos invisibilizados, pelo Sul global. Não foi cálculo: foi coerência pastoral.
Na primeira homilia de seu pontificado, durante a Missa inaugural, o Papa Leão XIV optou por um discurso nitidamente religioso, e não político, sinal de que sua prioridade será a renovação espiritual e a unidade da Igreja Católica. Com abertura simbólica em inglês e o restante em italiano, ele manifestou sua identidade global e pastoral, mas sem recorrer a diagnósticos geopolíticos ou disputas doutrinárias. Sua fala centrou-se na missão evangelizadora da Igreja, na comunhão episcopal e na figura de Jesus Cristo como modelo de humanidade santa e única esperança da salvação. Leão XIV reafirmou a fé como fonte de sentido em tempos de desprezo e desvalorização espiritual, denunciou a ridicularização contemporânea dos crentes e convidou à coragem no testemunho cristão. Ao recuperar o mistério cristológico e a linguagem da fraternidade apostólica, “comunidade de amigos de Jesus”, o novo pontífice propôs um caminho de fidelidade e serviço, marcando desde já o tom de um pontificado comprometido com a coerência evangélica e com a superação das divisões internas. A escolha por uma homilia centrada na Palavra, na cruz e na missão mostra que sua prioridade será unir a Igreja em torno da fé, e não de alinhamentos ideológicos.
Leão XIV, ainda nos primeiros dias de seu pontificado, já vem sendo comparado a João Paulo II pela juventude, carisma e aparência acessível. Muitos fiéis o veem como uma renovação simbólica da Igreja sem ruptura doutrinária. Seu desafio será reorganizar a gramática do catolicismo em um cenário de extrema fragmentação, promover uma paz desarmada e resgatar a força espiritual da Igreja sem se perder nos impasses da política.
Em tempos marcados por ódio, extremismos e manipulação religiosa, a eleição de um papa imigrante, agostiniano, discreto e atento às periferias é mais do que uma escolha espiritual: é uma tomada de posição sobre os rumos possíveis do catolicismo no século XXI. Leão XIV não apenas promete diálogo com o mundo, ele propõe uma Igreja capaz de sustentar diante do colapso de sentidos. E parece disposto a conduzir essa travessia com coragem, prudência e estilo próprio.
Tabata Pastore Tesser é doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da linha de pesquisa Gênero, Religião e Poder do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp). E-mail: [email protected].