Em sua nova obra, Mariana Salomão Carrara explora a vida dos fumicultores no Sul do Brasil
‘A árvore mais sozinha do mundo’ conta a história de uma família que está extremamente distante da realidade da classe média brasileira
Os efeitos causados pelos agrotóxicos em plantações praticamente não existem para algumas pessoas no Brasil. Porém, dentro do mesmo território, trabalhadores rurais têm as suas perspectivas de vida tomadas com o tempo do uso das toxinas. O novo livro de Mariana Salomão Carrara, A árvore mais sozinha do mundo, publicado pela Todavia, pode ser descrito a partir dessa realidade. “Essa é a questão mais eloquente, a contaminação por agrotóxico e o sistema de produção na exploração de trabalhos familiares. Mas eu também acho que é sobre convivência familiar, especificamente rural”, comentou a autora.
Outro tema explorado é a construção da relação entre os membros da família, que lutam contra os desafios climáticos e financeiros. Carlos e Guerlinda são os pais. Exauridos pela rotina na pequena fazenda de plantação de tabaco, os dois sofrem com os efeitos das toxinas. Alice, Maria e Pedro são os filhos. Cada um carrega sua própria personalidade, mas a infância e a adolescência dos três foi roubada pela colheita, e mesmo novos já sofrem com as consequências dos agrotóxicos no organismo – “vejo um alvoroço na lavoura, arrancam a roupa de segurança da Maria, agora abanam com folhas. Carlos tenta pegá-la no colo, mas não consegue. Arrastam a criança pela verga, Alice ampara a cabeça”.
Ao se tratar de uma história com tema muito específico e não tão comentado, é considerado algo distante da grande classe média urbana. Mariana afirmou que foi algo novo para ela quando iniciou a escrita: “um mergulho muito intenso de pesquisa, tanto na internet, com vídeos e também com visita local. Acredito que é uma experiência, uma oportunidade, de se entregar e tentar sentir como é a vida dessas pessoas. Ao mesmo tempo, encontra-se ali um sentimento universal de relação humana”.
Como mostrado na obra, o Rio Grande do Sul é o Estado brasileiro com maior taxa de suicídios. Em uma pesquisa de 2022, foi apontada uma média de 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes. A taxa chega a ser maior do que a de todo o Brasil, que, em 2023, teve cerca de 8 suicídios a cada 100 mil habitantes. Além disso, as pesquisas mostram um aumento no número de suicídios no território nacional desde 2010.
Foi a partir de uma matéria de Paula Sperb para a BBC sobre essa “epidemia” no Rio Grande do Sul que nasceu A árvore mais sozinha do mundo. Mariana não deixou de relembrar como foi o seu processo de escrita: “uma epidemia de suicídios não é uma coisa que você consegue entender só de ler. Eu precisei pesquisar para entender o que realmente podia ter a ver uma contaminação dessas pessoas com a depressão química. As fumageiras não querem que isso seja o assunto. Eles falam que é outra coisa, muitos dizem que tem influência da cultura alemã, que a lavoura não está indo bem e se matam. Enfim, pode haver uma congruência de fatores. Mas acredito que está evidente que a questão é o agrotóxico. Isso não é algo que ocorre só no Rio Grande do Sul, mas eu quis ambientar numa região que fosse bem afastada porque é também a que o Estado esqueceu.”
“O pai mais gasto que o espantalho ainda largado no canto da sala ao lado da televisão como se fosse um bêbado que tivesse caído no chão antes de chegar à cama”, assim é descrito Carlos, cuja saúde apenas se deteriora com o decorrer do tempo. Além do mais, o serviço de saúde é distante, e sem uma consciência geral do que está acontecendo, a situação apenas se intensifica enquanto corre a trama do romance.
Para explicar mais sobre o personagem, a autora não deixou de dizer: “eu sempre imaginei o Carlos como um cara muito legal, dentro das limitações culturais ali. Ele é afetivo com todo mundo mas está realmente muito mal. Eles estão sabendo que é uma coisa que está acontecendo com vários agricultores e também o que está gerando tanto suicídio. Então há uma consciência, mas não é tão claro”.
A situação em que a mãe, Guerlinda, se encontra também não é boa. Mesmo ainda nova, já está desgastada com o modo em que vivem. Ela foi mãe jovem, e durante o enredo percebe-se que isso influencia na relação que tem com as meninas. “Eu imagino ela com uns 35 anos, mas já muito envelhecida. Eu acho que ela é muito forte e está exausta”, disse Mari Carrara.
Na obra, a autora não traz apenas questões relacionadas às consequências das grandes empresas de tabaco, mas também faz uma denúncia ao esquecimento dessas pessoas pelo Estado e pela sociedade: “as estradas não são recapeadas, se alguém quer ir para a escola, não tem van. Não existem também escolas rurais, elas foram fechadas. Isso é um abandono”, comentou a escritora.
Ao tratar dos narradores, o livro é inovador, pois não estamos falando de pessoas, e sim de objetos que compõem a casa onde vive a família: “gostaria que os personagens não tivessem o domínio da história. Os humanos mesmo não tinham consciência do que estava acontecendo. Se as pessoas fossem contar o que está acontecendo, haveria uma consciência o tempo todo do que faziam na plantação, durante as chuvas e também sobre a dívida. Então, eu queria que fosse mais por um espião que vai tentando somar informações para chegar a alguma conclusão. Assim, pelo observatório, acho que dá para criar muita fantasia, uma imaginação boa para o escritor”, explicou a autora.
A narração começa e termina na voz da árvore – “o que sei eu de florestas e famílias. Que fique registrado e atualizem a informação: agora é nesse país que vive a árvore mais sozinha do mundo.” Sobre a escolha, Mariana conta: “esses objetos acabam ganhando uma personalidade. A árvore está melancólica, ela também aponta indícios de uma depressão alinhada com a do Carlos. Além disso, ela não tem consciência de classe, de natureza. Ela acha realmente que os seres humanos são inocentes e que eles estão sendo vítimas da geadas. Então, ela coloca a natureza como algo muito bruto e cruel com as pessoas”. O outro narrador observador que se destaca na obra é o espelho, que traz humor e cinismo para a história, se aproximando do comportamento de Alice, que além de acidez traz ternura.
Por fim, a escritora explica sobre os outros objetos narradores: “o carro, a Rural, é como se fosse uma avó muito querida que gosta muito de todo mundo. Ela também quer agradar, levar para passear, lembrar do dia do nascimento. Já a roupinha, é mais criança, como se fosse uma roupa nova. Então ela tem aquela coisa de não enxergar o perigo do veneno. Por não ser tão agradável, ouve coisas terríveis sobre ela. Então fica essa brincadeirinha também com a questão da segurança que não é adequada. Não é uma roupa viável, então foi a forma que eu encontrei para comunicar isso, sem dizer isso”.
Para finalizar, Mariana espera que os leitores sintam carinho pela história, principalmente em relação aos personagens: “por ser um livro lento, as pessoas leem devagar a primeira parte. Porque essa primeira parte fala sobre o plantio, você se sente junto com essas pessoas, e se apega a elas. Depois vai começar a colheita, quando eles já não param mais de trabalhar. Tudo vai acontecer nessa fase, e o leitor já estará convivendo bastante com essa família. Então, acho que produzir um apego a essas pessoas e até aos narradores é o meu maior objetivo”.
Maíra Oliveira Graça é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.