A embriaguez do invisível
Em Terebentina, escritor Alexandre Gil França cria um panorama de artistas invisíveis, por meio de um estilo delirante e híbrido
Certamente, Terebentina é daqueles livros que convocam para uma leitura atenta à escrita densa e expressiva (características do trabalho de Gil França desde a publicação de Arquitetura do mofo pelo selo Encrenca, 2015). O autor, ao apostar na epifania como base para as elaborações das narrativas, desarma a possibilidade de um entendimento geométrico das estórias. Como nos aponta Guilherme Gontijo Flores, que assina o texto de orelha, as linhas de Terebentina se entrecruzam em um processo labiríntico – será preciso que o leitor incorpore as situações propostas por Gil França, incluindo um imaginário que se mostra em excesso, somado à hibridez de estilo, para que perceba uma espécie de realidade. É como se Terebentina nos fizesse lembrar Cortázar: o fantástico dessa realidade talvez seja o que haja de mais real. E a surpresa surge como um acesso sem dramas ao chamado da natureza do livro.
Assim, os artistas retratados com fortes cores em Terebentina são, na verdade, pessoas comuns em busca de reconhecimento, enquanto o ônibus que vira um avião jumbo, ou as mariposas que conversam com um diretor de teatro falido são nada mais do que a expressão mais intensa de situações que se apresentam como incontroláveis na vida dessas pessoas.
A invisibilidade e a embriaguez: a dupla hélice de Terebentina
As doze estórias de Terebentina são distribuídas em uma espécie de exposição artística, em que o autor nomeia como o hall de entrada, o primeiro andar, o cafezinho etc. Essa divisão não é por acaso – ela endossa a ideia de que os artistas retratados são invisíveis em suas próprias cercanias, ou nas relações profissionais que estabelecem no decorrer da obra. A exposição, nesse sentido, é uma espécie de redenção (para citar Walter Benjamin) dessas figuras, esquecidas pela voragem da grande história do entretenimento mostrada somente pelas telas do mainstream. Há, assim, um cuidado na nomeação e organização dos elementos narrativos, a começar pelo título: a palavra “terebentina”, cuja grafia dicionarizada é com “i” (terebintina), pode tanto significar o solvente utilizado para limpar pinceis, quanto cachaça. Podemos intuir, portanto, os dois temas basilares do conjunto proposto: a invisibilidade (apagamento) e a embriaguez. Como veremos, os dois primeiros contos da seleção assumem o ponto de partida desses temas.
“(…) Hoje Elana vai ao seu primeiro encontro amoroso. Dirce, sua amiga há quarenta e cinco anos, diz para que Elana utilize o batom amadeirado de sua coleção. Toma, é seu Elana. Mas Elana é sincera em dizer que odeia aquela cor que lembra a cor de uma lepidóptera, ou, pior, de uma mariposa bruxa. Não, jamais devemos parecer uma bruxa em nosso primeiro encontro; é capaz do cara apagar as luzes todas para voarmos fora dali. Dirce conta que possui um outro da cor vermelha, mas que acha um clichê utilizá-lo neste tipo de situação ‘amorosa’. Elana logo a corrige, pois não se trata ainda de um encontro amoroso, o ambiente, é possível, bem possível, talvez seja um ambiente romântico, com uma canção de elevador ao fundo, cuja letra nos conte algumas verdades, com vinho e comidas exóticas as quais Elana possa abandonar peremptoriamente, como um cidadão abandonando uma cidade – não: o ambiente é romântico apenas em hipótese: nada pode nos dizer que um espaço fechado com mesas e panos brancos sobre a mesa e marcas redondas de vinho sobre os panos (simetricamente redondas e vermelhas e escuras e cortantes como tatuagens inacabadas) seja um espaço romântico feito para o romantismo arquitetado por Eros, o deus do amor – não: poderia o ar condicionado estar estragado, poderia ter um cabelo grosso sobre a comida, sobre a entrada, no dorso da manteiga, deslizando sobre a superfície amarela do retângulo, misturada à posta escabeche – não: nada disso é romântico, Dirce, nada disso me impressiona, nem mesmo o ser humano e suas boas intenções românticas irão me impelir a usar esse batom vermelho e essas rosas boiando em meu intestino. Não há nada boiando em seu intestino, Dirce acaricia a cabeça da amiga. Elas sorriem em conluio.” (Trecho de “A lepidóptera”, de Terebentina)
Em “A lepidóptera”, Elana, uma mulher neurodivergente que suspeitamos ter por volta de 50 anos, prepara-se para o primeiro encontro amoroso de sua vida. Tanto a invisibilidade de uma pessoa que tem dificuldades em se relacionar com o mundo, como a embriaguez de sua pré-disposição a gostar de elementos homogêneos (gelatinas, sudokus, recheios em geral), levam o leitor a uma divertida história de amor do invisível, cujos signos maiores são a da mariposa (que Elana morre de medo) e a da sua capacidade de se esconder. Já em Lila, que assina o texto de abertura de Terebentina (confundindo seu papel de personagem e autora dos contos), vemos o retrato da infância de alguns dos artistas que será reutilizado em outras estórias. Aliás, esse conto anuncia um recurso central de Gil França: a reutilização de elementos da obra na própria obra (que são, segundo Lila em sua “apresentação”, os restos de tinta que permaneceram no pincel). Haveria aqui uma influência do Ulysses joyceano? Possivelmente, dado, inclusive, o uso de diferentes grafias expressivas como a do teatro, a da poesia e a do cinema, muitas vezes em um mesmo fluxo textual. O leitor, nesse sentido, não deverá se surpreender caso a mariposa retorne com novas roupagens.
Os momentos de suspensão em Terebentina
“(…) terra descarnada, sonda, cárcere gozoso, um íntimo que mostramos juntos, suspirando sombras:
nossa anônima intimidade.
Amar é um verbo conjugado em quem?
Noites destilando noites.
Aquele monte de papel picado.
A câmera lenta da morte que escapa de se tornar cicatriz.”
(Trecho de “As bocas”, de Terebentina)
Em “As bocas”, o autor deixa de lado as réguas e bússolas utilizadas na confecção das duas primeiras estórias para dar margem a uma lente macro nas bocas que devemos intuir serem as das personagens do conto anterior. O texto é apresentando muito mais como uma experiência literária que nos leva a “sentir” um beijo de língua do que como uma estória com começo meio e fim. A embriaguez da paixão provocada pelo ósculo, portanto, é o vento a soprar as velas do nosso entendimento, levando-nos ao cerne afetivo de certas subjetividades que poderão ou não restar aparentes para o leitor (trata-se de Lila? De Jonas? Fica em aberto). Eis uma das forças do livro embutida na seguinte pergunta: essa paixão (expressa pelas bocas e seus fantasmas) será, como a mariposa, reutilizada mais adiante? Veremos no terço final da obra que sim, mas pelo lado negativo, dentro do segundo andar da exposição, “Os mal-amados”. Aliás, os dois conjuntos de maior fôlego – “Os artistas” e “Os mal-amados” – são inaugurados por uma suspensão. Se antes de “Os artistas”, temos “As bocas” em uma movimentação microscópica e poética, em “A empregada” temos um relato estridente em que a subjetividade do patrão é confundida com a da diarista. Em um tom agudo, novamente o tempo narrativo é suspendido, dando vazão à frequência do ressentimento destilado por meio de frases acusativas e cortantes em sua precisão barroca. O leitor logo verá que Gil França o está preparando para um ambiente hostil de uma classe média em decadência, cujo tom autoritário dará as caras de repente, em “As bicicletas”, mostrando que nem todo o delírio de Terebentina é colorido.
Um romance em latência
É curioso notarmos, junto com Gontijo Flores, que a promessa de um livro de contos logo ganha conexões inusitadas que são engatilhadas por fatores externos, como por exemplo a estrutura de uma visita à exposição artística, ou o fato de uma das personagens ter escrito as estórias do livro (conforme a “apresentação” de Lila). Essa organização externa faz com que, no momento da “Fila de espera”, enxerguemos algo além do que foi proposto pela dianóia das estórias encerradas em si. Elas, dentro da categoria “conto”, no fundo, têm uma independência apenas superficial. O encadeamento é dobrado, implicando sempre uma externalidade encontrada no próprio livro. Terebentina é, nesse sentido, quase um romance; ou, melhor dizendo: um romance que se faz em latência no decorrer de sua leitura. Isso ganha contornos monstruosos ao percebermos que a possível autora, Lila, modifica ao bel prazer partes da narrativa em favor dos seus sentimentos. Recurso colocado com uma sutileza ímpar em meio a outros tantos mais gritantes e aberrantes (como a brusca mudança de cenários, ou a invasão de tempos presentes em outros contos).
“Junior – Você será terrivelmente infeliz. Vai descobrir que é somente mais uma entre tantas. Vai ser coadjuvante pelo resto dos seus dias. A companhia sempre irá preferir as bailarinas nativas. Você se sentirá uma estrangeira para todo sempre. É capaz de adquirir alguma doença, alguma inflamação crônica nas articulações. Por que você sempre vai achar que não é o suficiente. Vai se tornar uma pessoa solitária e amarga, que tentará, a todo custo, esconder seus vícios e hábitos insalubres (como a cocaína, o fumo e o álcool ingeridos sempre às escondidas, no intervalo, nas idas ao banheiro, na pausa para o café, enfim). E depois começará a se cortar. Até que as marcas fiquem cada vez mais visíveis para os seus colegas e para os diretores da companhia. Até o dia em que será mandada embora, velha e cheia de culpas por não ter ficado aqui, conosco, no Brasil, junto aos fracassados.
Jéssica – Meu Deus!
Eu – As cartas não mentem.
Junior – Eu mesmo. Eu deveria ter ficado na minha cidade. Nunca deveria ter saído de lá.”
(Trecho de “Jéssica”, de Terebentina)
Para além do invisível
Terebentina, em sua proposta modesta (a de mostrar a afetividade de pessoas invisíveis), aos poucos toma de assalto o nosso corpo, os nossos afetos, apontando para uma miríade de recursos literários que parecem ter nascido com as próprias situações evocadas pelo autor, ampliando e extravasando, sobremaneira, a forma como nos relacionamos com a dicotomia fracasso/sucesso. Somos, definitivamente, convocados a tomar parte dessa espécie de Clube dos Otários (Stephen King, aliás, é outra referência anunciada por Gil França) e a nos sensibilizar com suas narrativas. Dentro de sua ética do invisível, as personagens de Terebentina nos mostram muito mais do que a promessa da fama poderia nos mostrar, e trata-se, sem dúvidas, de um chamado a uma promessa literária que acena ganhar contornos cada vez mais nítidos ao final de sua fruição.
Iamni Reche Bezerra é mestra em Estudos Literários pela UFPR e doutoranda do Programa de Teoria e História Literária da Unicamp. É também editora e poeta.