“Encantar a vulgar realidade”
Há tempos vilipendiada, a arte de rua conquistou ares de nobreza. Em agosto, o departamento de Seine-Saint-Denis, na região parisiense, organizou uma visita guiada aos mais belos grafites locais. O reconhecimento às vezes conduziu os artistas de rua a abandonar qualquer traço de contestaçãoPhilippe Pataud Célérier
“Até que não é ruim”, clama o cartaz estampado nas paredes. Ele reproduz o célebre “Beijo do Hôtel de Ville”, fotografado por Robert Doisneau nos anos 1950. Exceto que agora duas manchas vermelho-sangue sujam a imagem icônica dessa juventude despreocupada e feliz. Desde os atentados de 13 de novembro de 2015, grafites, estênceis, colagens, cerâmicas e fotografias invadiram os arredores do Bataclan, na 13ª região (arrondissement) de Paris. Fachadas, pontos de ônibus, placas de sinalização: nenhum espaço foi deixado de lado. Em letras brancas sobre um fundo preto, o lema histórico de Paris, “Fluctuat nec mergitur” [Flutua, mas não afunda], foi pichado até em um tapume de obra por um coletivo de grafiteiros locais, o Grim Team.
Uma vez mais, as paredes estamparam as vozes que já não são mais ouvidas. Uma constante no meio urbano. Ainda que os pincéis de cerdas curtas chamados queue de morue (rabo de bacalhau), muito utilizados pela segurança pública durante a Terceira República para recobrir inscrições e desenhos sediciosos, tenham desaparecido, os grafites permanecem. Melhor ainda, conquistaram hoje até mesmo os mundos virtuais das redes sociais. Mas o que esses grafites são, assim como o que eles fazem, geralmente é malvisto. Eles consagram a apropriação ilegal, vândala ou não, do espaço urbano, ao mesmo tempo que contestam a ordem estabelecida dos governantes e dos governados, dos possuidores e dos possuídos. Antigamente, os grafites efêmeros, giz na pedra, se opunham às letras bonitas e bem desenhadas na frente dos prédios e dos monumentos à glória dos poderosos. Com traços finos e delicados, eles sonhavam em vão uma resignação de epitáfio: emblemas dos dominados. Uma pulsão escriturária riscando a imagem da coesão urbana prometida aos cidadãos pelas autoridades…
Mas louco seria aquele que tirasse dessas inscrições selvagens – por vezes ideias transformadas em imagens – um esboço de interesse, estético ainda por cima. Nesse começo do século XX, a beleza ainda era uma questão moral e não podia existir só, na rua, fora dos museus. As instituições limitam e enquadram o que foi validado por alguns como sendo merecedor de ser visto. O museu prescrito, proscrito. O olho acompanha, sem outro impulso além da educação adquirida para saber, ver e mostrar.
Stalingrad, em Paris
Foi preciso o olhar poético do fotógrafo Brassaï e o imaginário surrealista da revista O Minotauro para que os grafites urbanos fossem objeto de um primeiro interesse. Uma dezena de fotografias de grafites parisienses foi assim publicada em 1933.1 Mas muitos anos ainda teriam de decorrer antes que a arte de rua fosse considerada um modo de expressão artística, em filiação direta com esses grandes poderes de enunciação que foram o dadaísmo, a arte bruta, o situacionismo, Fluxus… ou ainda a pop art, a abstração lírica, Jean-Michel Basquiat, Keith Haring e Jackson Pollock nas influências do outro lado do Atlântico.
Essas artes de rua só se desenvolvem à medida que os procedimentos técnicos (estêncil, tinta spray) se aproximam dos novos desafios do mundo urbano. Se “as paredes tomam a palavra” – um dos slogans levantados na e pela rua – em maio de 1968, é porque a invenção em matéria de impressão (serigrafia, cartaz, colagem etc.) estava à altura das reivindicações de expressão. A rua, espaço político, é um formidável suporte, acessível a cada um e visível para todos a qualquer hora. Mas, se os grafites precisam de suporte, eles devem também se alimentar de relações: a arte na rua deve ser vista, sentida, até mesmo tocada; resultado de sua existência fora desses lugares consagrados que, no entanto, mantêm as obras… a distância.
“Representar não é o suficiente. É preciso tornar presente. […] Fazer obra das situações, e não obras em situação”, repetia Ernest Pignon-Ernest, artista plástico, iniciador com Gérard Zlotykamien da arte urbana. Desde 1971, ele colava no solo parisiense, em centenas de exemplares, imagens serigrafadas, em tamanho real, dos supliciados da Comuna. Ali onde um século antes seu sangue “tinha literalmente escorrido pelas ruas de Montmartre”, escreveu André Velter.2 “O risco assumido de se expor tão publicamente expunha também os passantes, que, ao avançarem passo a passo, deixavam de ser simples espectadores e se encontravam no exato percurso de seus hábitos, em terreno artisticamente desconhecido, em terreno politicamente descoberto.” A arte entrava de assalto na vida cotidiana. Dessa vez, ela não vinha de cima, mas de baixo.
Algumas décadas depois, a street art, a arte de rua, fora dos muros, a céu aberto, ou “a arte em contato com a cidade, porque as obras aderem no corpo da cidade como roupas em contato com a pele”, tornou-se onipresente.3 A dificuldade de nomeá-la reflete a diversidade de seus modos de existência. Estes diferem tanto pelos materiais empregados, as formas e manifestações artísticas utilizadas quanto pelas finalidades procuradas: das pichações puramente narcisistas ao estêncil subversivo, passando pelo grafite artístico reivindicado como tal, mas por muito tempo ignorado, até mesmo desprezado, pelo amante da arte.
Nos anos 1980, o passante estava literalmente de frente para o muro, confrontado a esse modo de expressão intrusivo, degradante, ilegal, que se espalhava, a pichação, a forma mais elementar do grafite. Ironia da história, foi Philippe Lehman (conhecido como Bando), neto do fundador de um dos primeiros bancos de investimento norte-americanos, o Lehman Brothers, que importou para a França essas assinaturas rudes e sumárias pichadas sobre os muros, os metrôs e os trens nova-iorquinos por jovens urbanos desfavorecidos.
Mascarados como Zorro, eles pichavam o próprio nome usando uma Posca (canetão com ponta de esponja). Uma assinatura bem visível – mas ilegível, anônima, salvo para os iniciados –, que eles queriam tornar onipresente, na medida de sua inexistência social. “Inventar uma nova maneira de se distinguir era uma revolta, a recusa da autoridade, o reino dos marginais. Uma juventude minoritária, desfavorecida, tomava a própria vida nas mãos e criava algo, já que a sociedade não lhe tinha dado nada”, relata Henry Chalfan, “fotografador”, documentarista e crítico norte-americano.4 “Decidi cuspir meu ódio como um spray/ […] A fim de cobrir todas as minhas feridas/ […] Eu queria que não me esquecessem/ […] Vou marcar meu lugar de todo jeito. Como um grafite”, escreveria mais tarde o rapper Rocca (“Graffiti”, Elevación, 2001).
A pichação invadiu o centro da capital francesa no início dos anos 1980. Os cais do rio Sena, os tapumes do Centro Georges-Pompidou, aberto em 1977, ou do Louvre, então em obras, eram lugares visados. No contexto da urbanização acelerada que se seguiu aos Trinta Gloriosos (1945-1975), os espaços industriais abandonados eram numerosos, mas raros eram aqueles que ofereciam uma bela visibilidade e uma relativa longevidade diante dos serviços de manutenção das vias públicas ou dos promotores do setor imobiliário. Perto do metrô aéreo da muito frequentada linha 2, o terreno baldio de Stalingrad, na região nordeste de Paris, concentrava essas características. Um presente explorado pelos grafiteiros durante cerca de dez anos (1982-1993), que lhes permitiu comparar, afinar seu estilo ao longo das battles – desafios artísticos realizados individualmente ou em equipe (crew). Entre eles, Ash, Skki, Boxer ou JonOne, artista nova-iorquino que gozava de grande notoriedade. O grafite se tornou complexo. A originalidade era motivo de reconhecimento. Às letras simples, precisas e legíveis, encarnadas por Bando (old style, “velha escola”), respondia o wildstyle (“estilo selvagem”), de uma composição tão complexa que se tornou mais importante que a legibilidade.5 Stalingrad se tornou “o berço do grafite europeu, bem antes do Muro de Berlim, porém primordial até sua queda, em 1989”, precisa Magda Danysz, galerista precursora.6
Escalada repressiva nos anos 1990
O grafite se popularizou. Seu universo aparecia nos clipes dos grupos de hip-hop e de rap difundidos na televisão, completando uma cultura urbana tomada em todas as suas dimensões: musical, visual, corporal (smurf, break dance). Em 1995, o novo álbum do grupo de rap francês Suprême NTM se intitulou Paris sous les bombes [Paris sob as latas de spray].
O gesto artístico do grafite está frequentemente ligado ao fato social total, já que os indivíduos definem eles mesmos sua prática. Uma prática singular tanto em seus meios (é aconselhado roubar seu spray, pichar um lugar proibido) quanto em sua execução (perigosa quando se grafita uma linha de metrô a dois passos de um trilho de alimentação de 750 volts) e seus resultados: inéditos, inovadores (estilos, técnicas, materiais, superfícies). Em uma palavra: espetaculares. À imagem dessa operação que, em 1991, recobriu de pichações e grafites a prestigiosa estação de metrô Louvre-Rivoli. Um choque para os passageiros e para o público, que se tornou testemunha em sua qualidade de contribuinte. A Sociedade Nacional dos Caminhos de Ferro (SNCF) replicou, processando na justiça revistas especializadas (Graff It!, Graff Bombz e Mix Grill), assim como um fabricante de tinta spray por incitação ao vandalismo.
Nesses anos 1990, o grafite não tinha mais espaço na paisagem urbana. “Tolerância zero”, anunciaram os poderes públicos, seguindo o método adotado com sucesso alguns anos antes pela cidade de Nova York. Mas, diante de um código penal que pesa severamente as sanções, alguns artistas reviram suas práticas. Para os “vândalos”, adeptos das pichações destrutivas – “perenes”, retificavam eles ao falarem das pichações com ácido –, a escalada repressiva significava a garantia de novos fluxos de adrenalina. Outros, por sua vez, se cansaram das perseguições noturnas, das ego trips, dos grafites traçados na correria (mesmo que os cadernos de croquis, ou blackbooks, testemunhassem trabalhos preparatórios). Eles encontraram ali a oportunidade de se voltar para os muros legais e de ter tempo para uma realização mais construída; mais consensual também, sob a égide dos proprietários-comandatários que privilegiavam principalmente o figurativo às grandes peças abstratas do grafite.
Entre subversão e submissão se abriu uma via mediana não autorizada, mas tolerada, deixada à discrição dos agentes públicos ou privados, em razão do caráter precário, não degradante, de seus modos de estampagem e de seus conteúdos formais mais atraentes (personagens). Entre as técnicas, a colagem – obras em papel, mosaicos, como os de Invader – e o estêncil – segundo a agressividade das tintas. Ainda que esses modos de estampagem existissem desde os anos 1980 graças aos grandes artistas de estêncil como Blek o Rato (inspirador do célebre artista britânico Banksy), Jef Aerosol, Miss Tic, Jérôme Mesnager…, eles se banalizaram depois (Nemo, Mosko, C215…), para se popularizarem mundialmente com as gerações seguintes, como dá testemunho o midiático JR. Mais engajados socialmente, esses herdeiros estavam à escuta do mundo, da sociedade, de suas expectativas e de suas frustrações, à altura do vazio político. Eles os ecoavam, apoiando-se nas últimas inovações tecnológicas. Street art, screen art!
Afresco, mais respeitável que as pichações
Transformadas em imagens eletrônicas, essas obras efêmeras ganham poder nas redes sociais planetárias: Facebook, Snapchat, Instagram (JR conta com 900 mil seguidores). Mas, se a visibilidade e a notoriedade que elas permitem se elaboram ali, a legitimidade do artista se faz graças à rua, em sua confrontação com o real. “Uma relação que termina frequentemente pela elitização dos bairros”, lamenta Kashink, uma das raras artistas de rua do sexo feminino – que estampa um bigode postiço. “A criação atrai. Mas transformar um muro em afresco com a participação de seus habitantes é dar uma nova imagem ao bairro, propícia às renovações urbanas e à especulação.” Pois estênceis e afrescos frequentemente substituem os grafites e as pichações, sinônimo para muitos de uma sensação de falta de segurança. “Um imaginário servil feito por coladores de cartaz que estampam o muro sem fazê-lo”, denunciam diversos grafiteiros. Em oposição ao ato libertário e libertador que está no próprio fundamento do grafite e “cujo espírito gozador”, pensam eles, só pode ser reforçado diante de uma urbanização crescente que se densifica e se desumaniza. A cidade está saturada de signos pensados para fazer “despensar” (publicidades), para dar segurança (placas de sinalização, câmeras), para rentabilizar a relação do habitante com seu espaço. Muitos sentem essa pressão como um encerramento, daqueles que levam um condenado a grafitar as paredes de sua cela. “Encantar a vulgar realidade”, clamava Guillaume Appolinaire. Essa expressão poderia endossar diversos artistas de rua, como Cap Phi, Gris 1, Kashink. Clet Abraham e Ox distorcem as placas de sinalização e as mensagens publicitárias; Fred le Chevalier “cola nas paredes parisienses cartazes de personagens particularmente bondosos desde 13 de novembro”; Zevs liquida literalmente os logos das grandes marcas, cobrindo-os com tinta escorrendo; enquanto Kidult denuncia com golpes de extintor metamorfoseado em tinta spray a apropriação da arte de rua por aqueles que, “sem terem vindo da rua”, estabelecem-se nela.
A street art se tornou um mercado. “De uma centena de milhões de euros anuais na França”, estima Nicolas Laugero-Lasserre, colecionador engajado, proprietário da Artistik Rezo, galeria sem fins lucrativos, e diretor da Escola dos Ofícios da Cultura e do Comércio da Arte (Icart), onde devem em breve abrir o primeiro Master of Business Administration (MBA) sobre street art. O mercado conta com cerca de sessenta galerias e uma dezena de casas de venda. As cotas dos artistas oscilam entre alguns milhares e diversas dezenas de milhares de euros para JonOne ou JR. Tudo agitado por eventos cada vez mais midiáticos, como o retumbante projeto da Tour 13.7 Sem esquecer os agentes públicos e privados sempre mais numerosos a promover a arte urbana, ou a ideia que cada um tem dela. Desse modo, em junho de 2015, o Ministério da Cultura e da Comunicação convidava cerca de quinze artistas para grafitar suas paredes8 com apoio oficial – sem prevenir os moradores, mas sob o olhar divertido dos passantes, alguns artistas trabalhavam mascarados por essa subversão subvencionada.
Muitas das obras urbanas não têm mais sentido fora de seu contexto. “Uma galeria deve frequentemente dissuadir um artista de abandonar o afresco pela moldura, mas poucos conseguem”, lembra Danysz. Delicado, de fato, adaptar o imaginário de um afresco às expectativas de um mercado, adequar um grafite às medidas de uma tela, substituir o contexto de uma rua pelo texto de um cartel9 pregado em um lugar fechado. Como dizia Edgar Degas, “a moldura é o cafetão da pintura”; ou, pelo menos, o sinal de seu fim. Todo o contrário de uma obra de rua, puxada por esse instinto de erva daninha, que vive com aquilo que ela habita e que a habita. Visível até em seu apagamento.