Ensaio breve acerca dos sentidos do bolsonarismo
A angústia perante a imprevisibilidade da vida em sociedade durante fases de transição traz à tona uma série de reações conservadoras. Nestes momentos, o conservadorismo popular torna-se uma arena de batalha decisiva capaz de apontar para sentidos diversos em meio à crise social aguda
Estamos tomados de assalto por discursos e práticas que parecem ecoar os períodos de maior turbulência social e política do século XX. A ascensão da extrema-direita pelo mundo traz à tona no debate público comparações com as experiências do nazifascismo na Europa ou com as ditaduras civil-militares na América Latina. Destacar semelhanças (e diferenças) entre o tempo presente e essas experiências passadas pode ser um método profícuo para delinear alguns dos sentidos que o conflito social vem assumindo no Brasil e no mundo.
Inicialmente, parece possível dizer que os anos 2010/2020 correspondem a uma fase de transição semelhante à dos anos 1920/1930 e 1960/1970, períodos marcados por crises econômicas e políticas de grande envergadura que representam o esgotamento de grandes ciclos de acumulação de capital. Assim como a crise de 1929 representou o fim do ciclo de acumulação da era liberal clássica e a crise dos anos 1970 representou o fim da era keynesiana, parece possível dizer que a crise de 2008 representou o fim da era neoliberal. Como consequência, estas fases de transição são períodos marcados pelo acirramento de inquietações sociais que crescentemente transbordam os mecanismos até então vigentes de regulação de conflitos entre grupos e classes. As décadas de 2010/2020 têm sido marcadas pela explosão de protestos populares massivos e simultâneos em diversos pontos do mundo.
Todas essas fases de transição parecem também caracterizadas por uma intensa instabilidade das estruturas de representação cultural e política, mais ou menos impermeáveis a angústias e impasses da vida cotidiana das massas. Instituições e lideranças consolidadas sofrem, por vezes, colapsos surpreendentemente rápidos, presas a discursos e práticas que dão cada vez menos conta de representar aqueles resíduos insubmissos que tomam as ruas. Esta quebra de pactos que absorviam conflitos dentro da ordem faz com que tais fases sejam laboratórios para experiências de democracia direta dos trabalhadores e também para novas sementes de autoritarismo. Ecoando a turbulência social dos anos 1920/1930 e 1960/1970, vemos em 2010/2020 os espaços públicos animados por novas formas de ação coletiva, em reação aos quais esboços de regimes autoritários mobilizam novas formas de violência associadas a uma nova gramática política.
Inquietação social e conservadorismo popular
Neste momento, contudo, impõe-se uma distinção entre o tempo presente e esses momentos de maior turbulência econômica e política do século passado. As décadas de 1920/1930 e 1960/1970 foram marcadas por um protagonismo social e político dos movimentos operário e camponês, capazes de criar estruturas de “poder popular” como ameaças revolucionárias à ordem burguesa. Como resultados de um longo e doloroso processo de auto-organização, operários e camponeses ao longo do século XX deram origem a diversas experiências coletivas de auto-gestão de seus espaços de trabalho e moradia, muitas vezes em contraponto às burocracias sindicais e de Partidos Comunistas. Neste sentido, as revoltas populares durante as décadas de 1920/1930 ou 1960/1970 culminaram em diversas situações de “duplo poder” pelo mundo, situações revolucionárias em que as classes em luta constroem estruturas representativas que disputam entre si a direção da vida social em territórios desde as dimensões local e regional até as escalas nacional e internacional. Dentro deste contexto, golpes civis-militares e regimes de extrema direita na Europa entre 1920/1930 e na América Latina entre 1960/1970 podem ser entendidos fundamentalmente como reações a tais situações revolucionárias, por meio dos quais as classes dominantes buscaram assegurar a obediência das massas através da concentração da violência militar e paramilitar.
Em termos comparativos, uma das características distintivas mais importantes da fase de transição atual entre as décadas 2010/2020 tem sido exatamente a relativa ausência de protagonismo operário ou camponês. Protestos recentes parecem ser animados especialmente por uma juventude desempregada ou subempregada em serviços difusos pelos espaços urbanos, resultado de profundas transformações do mundo do trabalho que a tornam relativamente distante da vida social e do acúmulo de experiências organizativas que antes marcaram tanto o espaço fabril, quanto as comunidades camponesas. Trata-se de uma juventude marcada por um grau relativamente mais alto de escolarização formal em comparação com as gerações passadas, atravessada, portanto, por maiores expectativas sociais frustradas pelo acirramento das concentrações de riquezas, de poder e de status. Esta jovem classe trabalhadora cresceu imersa em relações de trabalho e modos de vida profundamente remodelados pela emergência e generalização de novas tecnologias de informação e comunicação desde o final do século XX. Como consequência, esses jovens trabalhadores parecem possuir uma cultura política marcadamente desconectada do acúmulo teórico e prático das classes subalternas em fases de transição anteriores.
Neste contexto, as explosões de inquietação social desta juventude trabalhadora não parecem ter sido até o momento capazes de sedimentar-se em uma nova institucionalidade, culminando em situações de “duplo poder”. Pelo contrário, a maior parte dos protestos populares pelo mundo hoje parecem assumir um caráter predominantemente estético e performático, que se inicia e se esgota no ato imediato de manifestações e ocupações de ruas e de praças. Neste sentido, a marca registrada do tempo presente parece ser uma explosão de inquietação social sem forma ou representação, expressa em práticas espetacularizadas com temporalidade desconectada do ritmo lento de criação de laços de solidariedade que embasam estruturas de poder popular. Com isso não queremos dizer que não há experiências de auto-organização popular em meio aos episódios de turbulência social cada vez mais frequentes, mas sim que essas experiências não parecem ainda ser capazes de propor sementes de uma nova ordem. As explosões contemporâneas de inquietação social parecem ter como principal resultado um contexto marcadamente anômico. Anomia refere-se aqui ao desencontro entre a desconstrução de normas e valores que organizam a vida social e a construção de um novo enquadramento institucional capaz de estabelecer os parâmetros coletivos de uma nova ordem. A principal especificidade do tempo presente é, neste sentido, uma clivagem generalizada entre as angústias que atravessam a vida cotidiana deste jovem precarizado e os conceitos ou as instituições que se propõem representa-lo.
Re-emergência do conservadorismo popular
Este é o contexto que dá base à re-emergência do conservadorismo popular e ao fortalecimento de valores tradicionais vinculados à autoridade masculina como reação dentre os trabalhadores à desagregação da ordem. Historicamente, o pensamento conservador emergiu no século XIX como defesa de modos de vida e estruturas de poder pré-modernos contra o que era entendido como uma degeneração que ameaçaria a sociedade moderna. A base social predominante do conservadorismo dessa época eram as aristocracias de países da Europa e do sul dos Estados Unidos, que viam indícios de caos e desordem no individualismo exacerbado e no impulso plebeu que atravessavam cidades industriais modernas. Em contraponto, o conservadorismo propunha uma revalorização de laços de solidariedade e subordinação que antes integravam grupos sociais e amorteciam seus conflitos.
Paralelamente, o conservadorismo também encontrou base social em uma ampla população camponesa integrada em relações de trabalho familiares e redes de solidariedade comunitárias, bem como em uma crescente população operária recém egressa do mundo rural e concentrada aceleradamente em bairros insalubres. Para uma classe operária em formação, a memória e resiliência de relações de solidariedade do mundo tradicional rural foi matéria prima importante para as primeiras lutas por direitos sociais e trabalhistas. Em especial em países com industrialização tardia como o Brasil, classes trabalhadoras submetidas à marginalização socioeconômica e à subalternidade política em periferias urbanas recorreram a instituições religiosas e valores comunitários para compreender seu mundo.
O conservadorismo é, portanto, um fenômeno político bastante ambíguo. Por um lado, a recuperação de valores tradicionais da família e da religião foi historicamente uma importante base para as organizações de trabalhadores, como ilustram as Comunidades Eclesiais de Base na emergência de movimentos sociais nas periferias urbanas ou ainda a Comissão Pastoral da Terra na retomada das lutas camponesas e indígenas no final dos anos 1970. Por outro lado, a recuperação destes mesmos valores conservadores pode também assumir a forma de uma reafirmação de relações de caráter senhorial, autoritárias especialmente no que toca a questões envolvendo raça e gênero. Regimes de extrema-direita nas décadas de 1920/1930 e de 1960/1970 estiveram frequentemente baseados em uma reafirmação dos valores pautados na autoridade masculina (pai, padre, pastor, patrão), em contraponto à desordem supostamente provocada pela subversão operária, negra e feminista.
Compreensivelmente, a angústia perante a imprevisibilidade da vida em sociedade durante fases de transição traz à tona uma série de reações conservadoras. Nestes momentos, o conservadorismo popular torna-se uma arena de batalha decisiva capaz de apontar para sentidos diversos em meio à crise social aguda. Contextos marcados pelo protagonismo social e político operário e camponês foram capazes de reelaborar os valores tradicionais profundamente enraizados dentre as massas como uma matéria prima de estruturas de “poder popular”, da mesma forma que o círculo é um dos elementos que compõem uma espiral. Como contraponto, o contexto atual de inquietação popular até o momento amorfa e anômica parece dar vazão aos aspectos mais autoritários do conservadorismo popular como reação à desagregação da ordem social, construindo base popular de apoio a possíveis novos regimes de exceção.
Sentidos do bolsonarismo
Em uma primeira aproximação, o bolsonarismo parece representar a hipertrofia de aparelhos coercitivos policiais e militares na vida social brasileira, como reação das classes dominantes ao quadro de ingovernabilidade crônica desde as manifestações de 2013, em que nenhuma força política parece capaz de reconquistar hegemonia e reestabelecer o consenso passivo dentre as massas. Neste sentido, o bolsonarismo parece ser consequência e causa do aumento do protagonismo de forças policiais e da aceleração da presença militar no aparelho de Estado, principalmente, após o impedimento de Dilma Rousseff em 2016.
Para além das forças policiais e das forças militares, o principal ponto de apoio do bolsonarismo dentre as frações da burguesia que compõem o bloco no poder atualmente parece ser o complexo arco de forças chamado de “agronegócio”, que se estende desde a produção de máquinas e insumos para a agropecuária, passando pela produção e pelo processamento agroindustrial de matérias primas vegetais e animais, até a sofisticada gama de serviços de distribuição, consultoria, pesquisa e marketing que atravessa toda esta cadeia produtiva. Apesar da retórica modernizante e da diversidade interna, estes atores parecem preservar razoável unidade de ação política no que diz respeito ao avanço do mercado de terras sobre a fronteira amazônica. Similarmente ao que ocorreu durante a Era Vargas e a Ditadura Civil-Militar, o bolsonarismo parece ter como horizonte prioritário a aceleração da acumulação primitiva de capital sobre esta região.
Entretanto, o bolsonarismo não poderia se sustentar unicamente com base nas forças policiais e militares e nos setores vinculados ao “agronegócio”, sem mobilizar algum nível de consenso dentre uma parcela ampla da população. Para conquistar esta base de apoio, o bolsonarismo pode ser entendido como esboço altamente volátil de articulação de interesses do grande capital interno e transnacional a alguns dos valores tradicionais mais arraigados nas massas, por meio de uma aliança instável entre ultraliberalismo e conservadorismo popular.
Por um lado, existe continuidade entre o ultraliberalismo e o conservadorismo popular, na medida em que ambos assumem uma perspectiva individualista/familista e veem o espaço público como uma ameaça potencial às liberdades econômicas e às liberdades religiosas dos fiéis – empreendedores.
Nesse sentido, em especial a ética da prosperidade cultivada no interior de igrejas neopentecostais, parece representar uma importante linha de transmissão deste curioso experimento de construção de um novo pacto entre as classes. Por outro lado, contudo, existem também descontinuidades entre os horizontes sociais ultraliberais e conservadores, que em momentos de crise econômica coloca em polos opostos os defensores da austeridade fiscal acima de tudo e os que advogam alguma reserva de dignidade social dentre fieis – desempregados. Multiplicam-se neste contexto fissuras dentre setores das classes médias e altas (mais ou menos preocupados com os possíveis rumos da cruzada bolsonarista) e setores das classes populares (crescentemente inquietas com o desemprego, a inflação e a retração de auxílios governamentais durante a crise sanitária).
Em meio a estas fissuras, o bolsonarismo tem recorrentemente insuflado suas bases por meio de uma retórica altamente agressiva, que dá vazão à inquietação social por meio de uma simulação performática de quebra da ordem. Acirra-se assim uma característica distintiva das forças de extrema direita hoje: a tensão crescente entre sua agressividade retórica e performática contra a institucionalidade presente e o profundo ressentimento perante a incapacidade de mobilizar diretamente o volume de violência necessária para o seu projeto. Neste sentido, o bolsonarismo parece ser movido por uma “bolha especulativa de retórica” em que o discurso político infla expectativas de ruptura institucional, de modo aparentemente descolado da capacidade de cumprir suas promessas.
Forças de extrema direita foram capazes de consolidar-se no interior do bloco no poder como centros estratégicos da contra revolução nos anos 1920/1930 e 1960/1970 como reações a ameaças revolucionárias à ordem, representadas pela Revolução Russa (1917) e pela Revolução Cubana (1959). Apenas quando confrontadas com o ascenso de experiências de auto-organização e de auto-gestão das massas operárias e camponesas, as classes dominantes na Itália e na Alemanha nos anos 1920/1930 e em toda América Latina nos anos 1960/1970 superaram fissuras internas e unificaram-se sob a domínio e sob a direção de forças militares e paramilitares da extrema direita.
No atual contexto de inquietação social amorfa e anômica ainda incapaz de galvanizar-se em ameaças revolucionárias minimamente plausíveis à ordem, forças de extrema direita têm hoje encontrado dificuldade em se consolidar como eixos prioritários da contrarrevolução dentre frações dentro do bloco no poder. Como consequência, a contrarrevolução parece assumir um caráter policêntrico amparada antes na insubordinação molecular de forças policiais e milicianas do que propriamente centrada sob o controle de uma hierarquia (para)militar coesa. Como os eventos recentes na Bolívia e nos EUA parecem indicar, trata-se de forças de extrema direita que são capazes de efetivar uma tentativa de golpe, mas não parecem propriamente capazes de sustentá-lo no médio prazo.
Ainda assim, o processo de estetização da política e a consequente simulação performática da quebra da ordem têm sido relativamente eficazes em catalisar parcela da inquietação social amorfa, oferecendo uma (incoerente) gramática política para a expressão do claro transbordamento de ódio popular. Curiosamente, as forças de extrema-direita no Brasil e no mundo são atualmente as únicas que se propõem expressar este ódio popular contra o status quo. Especificamente no Brasil, são as únicas que afirmam o esgotamento das instituições que sustentam a “Nova República” e a inevitabilidade de encaminhamento extra-institucional para o atual quadro de crise social e política. Vemos dessa forma uma estranha dialética em curso no momento presente. Existe uma semente de racionalidade histórica dentre as forças mais abertamente irracionalistas no planeta hoje (como o bolsonarismo no Brasil), uma vez que parecem ser as únicas do espectro político a reconhecer expressamente a dimensão radical de nossa atual fase de transição. Contrariamente, existe uma profunda irracionalidade histórica dentre as forças aparentemente mais razoáveis e civilizadas que se propõem como o “centro”, uma vez que permanecem aprisionadas na perspectiva de um (eterno) retorno a mecanismos de regulação de conflitos que já foram antes transbordados. Estamos perante o desafio de impedir que a extrema direita continue como a intérprete única do ódio popular contra “tudo que está aí”.
Luiz Felipe F. C. de Farias é graduado em Ciências Sociais e Filosofia e mestre em Sociologia pela Unicamp, doutor em Sociologia pela USP