Ensaio sobre a pandemia
O vírus é um livro de José Saramago que transcendeu a possibilidade da literatura. Não é livro porque é realidade
Como nos romances de José Saramago, em que uma faceta desconhecida do humano se manifesta a cada novo capítulo, o vírus também explica – à medida em que é explicado – um pouco mais sobre nós. E, também como o escritor português já previra em seus livros, talvez seja só em momentos trágicos, excepcionais, que tudo o que construímos para dar conta de nós mesmos – conceitos, categorias, correntes, identidades, morais e éticas, histórias, justificativas, crenças – desaba lentamente diante dos nossos olhos.
Há pouco mais de um ano, neste mesmo espaço, era para isso que eu me atentava: naquela época, em que ainda pouco se sabia sobre a peste, perguntar por ela já era inevitavelmente manifestar também um interesse legítimo sobre nós, “sempre partindo da primeira pergunta para desaguar, inevitavelmente, na segunda, em uma espécie de jogo cuja perspicácia está no fato de que, para cada tentativa particular de explicar o que é o vírus, chega-se a uma resposta diferente para quem nós somos.”.
Esse é, de fato, um jogo complexo, porque cada nova resposta que damos sobre a doença faz com que, como causa e efeito, um pouco mais de nós também seja respondido, em um movimento sem retornos possíveis. Todo entendimento diferente sobre o vírus tem, encapsulado, um entendimento diferente sobre a relação dele com o ser humano. Ao jogador cabe o dilema de, por um lado, precisar explicar o vírus de alguma forma – para justamente poder superá-lo – e, por outro, de, ao fazê-lo, se ver diante de alguma parte de si mesmo.
Naquele março do ano passado, vivia-se um momento demasiado otimista. Apesar do impacto da novidade e de uma certa confusão emocional em ver todas as pessoas do planeta compartilhando, depois de séculos, uma mesma condição, as grandes empresas haviam tomado as rédeas em responder à pergunta. Elas queriam vender a falsa impressão de que o vírus era apenas mais uma daquelas mudanças históricas que poderiam ser devoradas – e até aproveitadas – pelo capitalismo. No fim, tudo não passava de uma lógica temporal, de uma adaptação, de um “novo normal” que elas só não diziam para quem valeria.
Ainda assim, o “novo normal” permitiu algumas ilusões. Nele, de repente, as democracias liberais, calcadas nas pautas individuais dinamizadas pelo mercado, poderiam construir estruturas mais coletivas. O Estado, agora sim, se responsabilizaria por garantir uma distribuição mais equitativa, os espaços públicos seriam, por lei universal, um direito de todos, as políticas ganhariam versões mais justas, as sociedades compreenderiam a importância da ciência e da comunicação, seriam mais justas, livres, debruçadas sobre os outros – e tudo desaguaria em um ser humano melhorado. O vírus era quase como um mal necessário.

Como o privilégio do futuro – e os livros de Saramago – nos mostra, quase nada vingou. As experiências nacionais, tão diversas quanto as respostas sobre o que é o vírus, rasgaram cruelmente o véu que cobria o primeiro grande discurso pandêmico, deixando a pergunta repleta de respostas esfaceladas. O vírus (não a variante) era uma coisa no Brasil e outra na Suécia, tão distante quanto daquele da China ou da Nova Zelândia. E então, como obviamente escreveria José em um dos seus ensaios, foi quando teve início a corrida da vacina. O professor Boaventura de Sousa Santos fez as contas recentemente: com base em uma projeção da revista Nature, o mundo precisaria produzir 11 bilhões de doses de vacinas (considerando a base de duas por pessoa) para atingir uma imunidade coletiva global. Porém, das 8,6 bilhões já encomendadas até março, 6 bilhões eram destinadas a países do hemisfério Norte. Então, “isto significa que os países empobrecidos, que constituem 80% da população mundial, terão acesso a menos de um terço das vacinas disponíveis”, conclui ele. É exatamente a metáfora daquele outro filme que, como uma garrafa de realidade jogada sobre o mar de otimismo, foi bastante visto no início da pandemia: o espanhol “O Poço”, de Galder Gaztelu-Urrutia. Nele, os que ocupam os últimos andares de uma espécie abstrata de prisão se digladiam pelas migalhas deixadas por aqueles que, privilegiados ocupantes da parte de cima, recebem o banquete completo todos os dias.
A cena seguinte, como o próximo capítulo de uma novela científica de Saramago, foi justamente quando as vacinas chegaram: da Argentina a Portugal, políticos, empresários, celebridades e seus familiares eram flagrados em esquemas obscuros e em lugares escondidos onde recebiam, clandestinamente, doses da imunização que deveriam ser aplicadas primeiro em idosos e profissionais da saúde. Era o sujeito fura-fila – que já conhecemos de outros Carnavais e que, por isso mesmo, não surpreende mais ninguém. No pano de fundo do fenômeno, porém, há muitos outros efeitos do que somos (ao falar do vírus, falamos da gente): nós, esses construtores e realizadores de uma economia em que, quanto mais algo é escasso, por mais quantidades de outro algo ele será trocado, independentemente do que se trate – comida, água, vacina. Por essa explicação do vírus, aliás, não somos mais do que animais desesperados, eternamente em luta uns com os outros. Uma visão bem saramaguiana, inclusive – e hobbesiana, e schopenhaueriana…
Mas não é só uma visão: de fato, como não poderia deixar de ser em um bom romance do Nobel português, os bilionários dessa história ficam mais ricos em meio à peste, enquanto grandes conglomerados regridem o mundo à Idade Média, em um tecnofeudalismo onde “somos mais débeis do que os algoritmos” e aqueles que os controlam, e em que, finalmente, há mais pessoas trabalhando para robôs do que para outras pessoas – uma bem-sucedida forma de encapsular a potência dos trabalhadores, cada vez menos unidos. A Idade Média também chega para os pobres, contudo: por meio da fome e do triste símbolo da volta do fogão à lenha. O Estado – até meses atrás a nova-velha entidade que regeneraria as sociedades – é o mesmo que hoje gerencia a circulação de vacinados e não vacinados, dependendo, claro, da nacionalidade do laboratório. O “turismo da vacina” seria o nome de um livro que ele pensaria em escrever se vivo.
Mas seria injusto deixar de notar que, quanto mais o tempo passa, mais explicações diferentes o vírus – e nós – ganhamos. No Brasil, por exemplo, nós oferecíamos certamente o fim da obra, em que de um lado estariam aqueles que entendem a gravidade da doença para além da enfermidade, mas também por suas consequências sociais (uma explicação razoável) e do outro aqueles vilões, nem tão disfarçados ou sofisticados, mas tristemente potentes, para quem a peste é sempre o contrário – “frescura”, “gripezinha”, “mimimi”, “coisa de ‘maricas’”, etc. Uma explicação sintética do que também podemos ser. Essa é uma missão inglória para os cientistas sociais do presente: ir ao Brasil profundo entender, no meio do lamaçal, porque nosso temporal já dura tantos séculos – e porque ele ficou ainda mais forte agora.
Todo esse presente é, na verdade, um livro de José Saramago que transcendeu a possibilidade da literatura. Não é livro porque é realidade.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do departamento de Sociologia da USP.