Entre Deus e as ONGs
Em 2009, a ajuda humanitária constituía um terço do PIB do Haiti. Doze meses depois do terremoto, as doações aumentaram, mas a restauração do aeroporto e o recapeamento das principais artérias viárias são os únicos projetos em andamento. À população, resta esperar auxílio e sobreviver em meio a uma estrutura precáriaChristophe Wargny
O aeroporto internacional Toussaint Louverture foi completamente recauchutado. Está limpo e quase acolhedor. Com escadas rolantes e free shop. Esteiras que levam você diretamente do avião ao saguão, como se nunca tivesse havido terremoto. Esperança: a reconstrução começou, os bilhões anunciados, por fim, atingiram seus primeiros alvos. É possível imaginar as escavadeiras, os tratores e os caminhões indo para os canteiros de obra. Pegamos-nos pensando que eles podem explicar os “blokus”, esses congestionamentos monstruosos que o motorista de táxi nos avisa de bate-pronto que se trata de algo permanente.
Mas não. A restauração do aeroporto constitui, junto com o recapeamento e a desobstrução das principais artérias viárias, o único projeto que está concretizado depois de doze meses: a reconstrução não começou.
Diferentemente dos edifícios mais sólidos de uma capital hoje devastada, o controle da classe política e das elites, que estrangulam esse país há séculos, resistiu ao terremoto de 12 de janeiro de 2010. Cleptomaníacos até nas palavras, eles se apropriaram da “refundação” que estrutura o projeto do movimento social de reconstrução das instituições e das estruturas do Estado e as esvaziaram de seu sentido. A “refundação”, até o momento, é a continuidade.
Conhecemos os números de um desastre agravado pela inércia (ou pela inconsciência) de uma caricatura de Estado desprovido de estruturas, de meios e de legitimidade política. É o caos urbano, a ausência de infraestrutura digna desse nome, tanto quanto o movimento das placas tectônicas, que devemos responsabilizar por essa contagem macabra: 300 mil mortos, o mesmo número de feridos; mais de um milhão de pessoas perderam casas, a maior parte foi realocada em centenas de campos de desabrigados em torno da capital.
Sempre em busca do pior, imagens de Porto Príncipe vistas na televisão deram a impressão de uma cidade arrasada. O horror alimentava a audiência. A realidade é outra, porém não menos trágica. Algumas ilhotas, em especial os prédios públicos mais altos, foram inteiramente destruídas. Nos bairros antigos do centro e da zona oeste, três casas em cada quatro, bem ou mal, resistiram. Quando percorremos as colinas do entorno (a altitude do relevo corresponde, grosso modo, à estratificação social), os desgastes foram menores. A confirmação disso pode ser vista em um trabalho prontamente realizado por centenas de engenheiros haitianos e estrangeiros por meio de placas afixadas nos edifícios: verde (em boas condições de habitação), laranja (obras são indispensáveis) e vermelho (precisa ser demolido). Quanto mais se sobe, mais o verde predomina… embaixo, é o vermelho. Ou os campos de desabrigados.
Desde a chegada, nós os vemos, os respiramos, de tão numerosos na zona próxima ao aeroporto, sobre os terrenos planos da Croix des Bouquets, de Tabatte e de toda a planície do Cul-de-Sac.
O arranjo de lonas de plástico que é estufado pelo vento forma imensa onda azul e branca, às vezes salpicada de cores inesperadas de outros materiais de proteção. Os campos de desabrigados começavam a se assemelhar às imensas favelas que se estendem inexoravelmente há décadas nas encostas mais íngremes.
Uma sucessão de barracas tão juntas umas das outras que temos dificuldade de passar uma mesa de plástico entre duas tendas. Promiscuidade ao extremo, condições de vida na temporada de chuvas (de junho a novembro) oscilando entre o insuportável e o terrível. E isso apesar da ajuda externa de “urgência” e “em massa”. O visitante ainda não chega ao centro de Porto Príncipe até que uma certeza se imponha sobre ele: no ritmo atual das decisões e dos tomadores de decisão, a “urgência” pode se tornar eterna.
Campo de golfe de Pétionville, um lugar outrora bastante frequentado por alguns. Trinta mil pessoas encontraram refúgio ali. A vantagem sobre os outros campos de desabrigados: os paisagistas, preocupados com o conforto dos golfistas, adornaram soberbas áreas de sombra – muito eficazes para proteger os novos usuários do sol escaldante que lancina entre uma pancada de chuva e outra – e amplas alamedas que facilitam o deslocamento, enquanto o caos reina em outras partes. As trilhas são margeadas por muros de sacos de areia para guiar a água das chuvas devastadoras. Em Pétionville, foram montadas algumas salas de aula improvisadas, uma clínica médica para crianças, pontos de acesso à água suficientes para todos e um cibercafé que funciona alguns dias em um dos espaços de convivência. Os refugiados ali realojados não estão muito longe dos bairros de origem.
As organizações não governamentais (ONGs) asseguram o fornecimento de água potável e tratamento médico, esvaziam as latrinas e fornecem ainda fontes de água itinerantes. Como em outros lugares, a Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) – estabelecida logo após a derrubada do presidente Jean-Bertrand Aristide, depois da intervenção dos Estados Unidos e da França, em 2004 – está ali.
Pétionville está entre as exceções: todos os campos não são tão bem servidos. E, mesmo assim, as barracas mal resistem às tempestades. Elas abrigam mosquitos, ratos e outros parasitas. Porque a vida – ou o sentido da sobrevivência – volta rapidamente à tona, o pequeno comércio se desenvolve – venda de cana fresca, coca, “clarin” (uma aguardente à base de cana-de-açúcar), sabão – assim como as cantinas e uma produção incipiente de artesanato. Da mesma forma, os pequenos tráficos prosperam ao longo de becos malcheirosos.
Em tempos de cólera
No tempo seco, as fezes formam o essencial das partículas em suspensão. Assim como a água suja, transportam o bacilo do cólera, que acaba de voltar à ilha depois de uma ausência de quase um século. Doença de fácil prevenção – ter acesso à água limpa e lavar as mãos com frequência reduz o risco –, ela faz estragos aqui. Em meados de dezembro, quase cem mil pessoas foram contaminadas, 34 mil hospitalizadas. Mais de 200 mil mortes foram contabilizadas. Até esse período, Tomas, o ciclone que atingiu a ilha em 5 de novembro, ajudou na propagação da bactéria. Por todos os lados, fossas sépticas transbordam e misturam oconteúdo às imundices trazidas pelas tempestades. Receptáculo de águas furiosas e lixo que elas levam, os campos de desabrigados se transformaram em imensas fossas infestadas de vibriões coléricos.
Mas outros predadores também os rodeiam: os proprietários de terras. Os terrenos vazios agora valem ouro e a especulação imobiliária vai de vento em popa. A destruição de muitos arquivos oficiais após o terremoto, a incerteza quanto aos títulos de propriedade e a ausência de um cadastro nacional prometem ensejar inúmeros conflitos.
Aluguel? O preço triplicou. Lógico: a oferta baixou e a demanda inflou. As ONGs, constrangidas pela urgência, praticamente não têm escolha. Novas fortunas são construídas. As antigas, essas dos oligarcas, se consolidam. Como resumiu um médico: “A solidariedade dos primeiros dias saiu pela culatra. Chegamos a uma consequência inesperada: as desigualdades se agravaram!”. Elas já são as maiores de todo o hemisfério Ocidental.
O primeiro objetivo das ONGs é limpar o terreno. Seus esquadrões lutam em torno do entulho, armados de pás e vassouras que tomam lugar das gruas e escavadeiras. Fortes ventos tropicais multiplicam de dia o que a tempestade espalha à noite. É pouco dizer que a produtividade é fraca. No ritmo atual dos caminhões, mesmo dez anos não serão suficientes para evacuar o cascalho.
Transformar barracas em abrigos provisórios de madeira, plástico e laminados – com duração de 3 a 5 anos – permitiria, porém, lançar as bases de uma vida menos precária. A construção de 140 mil cabanas desse tipo – os T-shelters – está prevista, ou mesmo financiada, ao custo de 1.500 euros por abrigo de 15 metros quadrados. Mas onde? Sobre que terrenos? E obtidos como? Desapropriações? Comprados de papel passado? No Haiti, a “política de moradia” é orquestrada entre cinco ministérios diferentes. Quando muito, temos uma cacofonia. Mas de fato, ela não existe. Resultado: apesar da pressão, somente 11 mil construções foram realizadas em 11 meses!
Em janeiro passado, a catástrofe tinha provocado um êxodo urbano. As províncias haviam, então, acolhido quase meio milhão de pessoas, na tentativa, com a ajuda das ONGs já estabelecidas, de fornecer escolas, moradia, serviços médicos; de organizar distribuição de alimentos, canteiros de obra e tratamentos psicológicos. As famílias se espremeram para receber os parentes, às vezes até o esgotamento das economias. A consequência óbvia foi o rápido empobrecimento do campo e a incapacidade de contrariar um velho peso, a hipercentralização.
Ao fim de alguns meses, 80% dos que haviam abandonado a capital fizeram o caminho inverso. Mesmo limitados, os serviços que se espera poder encontrar na capital valem mais a pena do que uma biboca incerta do campo: melhores escolas, melhor assistência, melhores chances (mesmo aleatórias) de encontrar um trabalho etc. A migração interna retomou seu sentido normal e seu ritmo infernal. E, com isso, os campos de desabrigados só serão mais permanentes.
Desde há muito tempo, para a maioria dos haitianos, o serviço público não é o Estado: são as ONGs. Antes do terremoto, o Programa Alimentar Mundial (PAM) alimentava quase dois milhões de haitianos. O terremoto apenas intensificou essa dependência. Quer queira, quer não, em Porto Príncipe, as ONGs representam a condição para a sobrevivência.
Em meio às agências da Organização das Nações Unidas (ONU), dez mil associações de solidariedade, provenientes de diversos países, apoiam o Haiti. A metade é desconhecida do Estado, mas seus logos são identificáveis por todos os haitianos.
Vindas à moda dos colonialismos de outrora, dos dois lados do Atlântico, América do Norte e União Europeia, elas estão presentes em quase a totalidade dos campos de desabrigados. Parque automobilístico luxuoso, logística custosa que participa dos blokus de uma aglomeração à beira da apoplexia, são elas que asseguram um “trabalho por salário” para mais de 100 mil cidadãos encarregados da remoção dos escombros.
A força das ONGs
O salário de 200 gourdes (um pouco menos que R$ 9) por dia constitui uma mina de ouro que, em 2009, o presidente Préval achou dispendioso demais para a economia haitiana. Mas, no Haiti, as ONGs são mais fortes que o Estado.
A ajuda humanitária constituiu um terço do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009. Centenas de milhares de pessoas vivem dela: não apenas os assalariados, mas também as suas famílias. Certos blan – estrangeiros em crioulo – vivem muito bem dela: os haitianos podem encontrá-los nos restaurantes ou nas lixeiras de Pétionville, ainda ricas o bastante para alimentar os mais pobres. Além disso, o desejo de todo haitiano com diploma universitário é emigrar ou se associar a uma ONG. Trata-se de uma alternativa mais certa que o trabalho para o Estado ou que a criação de uma empresa. Em 2009, depois de anos de “ajuda” supostamente para facilitar seu “desenvolvimento”, o Estado haitiano ainda depende em 60% das instituições internacionais para equilibrar as contas. É preciso dizer que, mesmo em progresso, a cobrança de impostos sofre muitas perdas por conta de corrupção. Entre 2008 e 2009, US$ 300 milhões, provenientes de tarifas pagas pela Venezuela no âmbito do acordo Petrocaribe, desapareceram.
Ao lado das associações, multiplicam-se as igrejas, que às vezes são também ONGs. Aproveitando a ausência do Estado, evangélicos, pentecostais e outras religiões do tipo fazem grande sucesso.
Meio-dia. Os fiéis se reúnem aos milhares em Carrefour, na periferia de Porto Príncipe. O sistema de som cospe uma música emprestada dos astros pop americanos que toma conta do bairro, quer goste, quer não. A multidão começa alguns passos de dança. Seguem os sermões de reverendos americanos, traduzidos em crioulo: cantos, cenas de êxtase e comentários da Bíblia por pastores locais formados em menos de um ano. Tocam nos doentes, numerosos. “Milagres” acontecem. Acima de tudo, agradecem ao Senhor pelo pão que Ele dá a cada dia por meio desses generosos militantes de Deus: “Acredite e será salvo”.
Aos evangélicos e pentecostais, somam-se às testemunhas de Jeová e outros adventistas do sétimo dia. Sem contar os pastores de cultos autoproclamados. Um novo nasce a todo instante. O exército celeste joga com a linha de frente, os comissários religiosos: “É preciso denunciar os falsos arrependidos, os maus pastores. Deus é grande”. Repete-se à santidade: “Abaixo aos péristyles [templos vudus], esses lugares de satanismo”. Será também por acaso que Deus acertou os prédios públicos, a catedral e defenestrou o arcebispo em sua morada?
O catolicismo é agora minoritário. Laennec Hurbon, sociólogo da religião, estima que não represente mais do que 45% da população (contra 75% há alguns anos). Com magia, taumaturgia, culpabilização, novas formas de indulgência, o protestantismo oferece uma rede de solidariedade mais estreita que a Igreja Católica, mais eficiente na formação das elites do que nos labirintos de uma urbanização dinâmica e selvagem. Aqui, os jovens sem perspectivas as encontram, com aparência moderna, desencorajando qualquer sentimento de revolta e aniquilando qualquer possibilidade de uma refundação política da sociedade haitiana. O objetivo dos missionários? Fazer do imaginário um escudo na realidade, cultivar a emoção para erradicar a reflexão. Passaram-se 30 anos desde a emergência da Teologia da Libertação – encarnada por Jean-Bertrand Aristide, presidente em 1991, de 1994 a 1996, e depois de 2001 a 2004 – até o culto da resignação.
Agora, com a nova epidemia de cólera, cada um conta com a Comissão Internacional para a Reconstrução do Haiti (CIRH), copresidida por Bill Clinton, enviado especial da ONU no Haiti, e pelo primeiro-ministro Jean-Max Bellerive, para assegurar sua sustentação. Os resultados são decepcionantes: foram três reuniões em dez meses, poucos projetos realizados. Os US$ 10 bilhões ou US$ 15 bilhões citados inicialmente parecem estar bem longe. Apenas 10% das doações prometidas efetivamente foram arrecadadas. Nessas condições, os programas de apoio são financiados apenas parcialmente. E, raramente, as contas fecham.
E as eleições? Bem, as preocupações da população estão em outros lugares, deslocadas para ter um abrigo, um trabalho e higiene. Os haitianos têm a sensação de que o país não pertence a eles. Que futuro existe se “blan ki desid” [“é o estrangeiro que manda”]? Reconstrução, recriação, refundação? O futuro chama-se mais improviso, talvez até improviso à moda antiga: como estabelecer um Estado cujo funcionamento é estruturalmente debilitado e deficiente? Que meios dar a um sistema político baseado no clientelismo, fiador de uma sociedade profundamente desigual? Basta se aproveitar dos blokus para observar: reluzentes utilitários 4×4 com ar-condicionado e vidros escurecidos para alguns, caminhada a pé ou o carrinho de mão para os outros. A classe política, mesmo assimilando alguns elementos de modernidade, não muda. É como se o terremoto tivesse feito tremer as casas, mas não os fundamentos da sociedade haitiana.