Entre flashes e sigilo
Será que ocultar da sociedade civil o conteúdo das decisões de nossa Corte Suprema fortalece ou enfraquece nossa jovem democracia?
Em 15 de novembro de 1889, quando a República era proclamada num golpe militar, o republicano Aristides Lobo tomava chá de desilusão. Enquanto os militares discursavam, Aristides se deu conta de que a República nascia sem participação popular. O povo, afirmou, assistira a tudo “bestializado”, sem entender o que se passava. O termo então passou a ser utilizado – como dizia o saudoso José Murilo de Carvalho – para caracterizar o alheamento do povo brasileiro em relação às grandes decisões políticas do país.
Eis que, em 5 de setembro, o presidente Lula, desgostoso com as críticas às decisões proferidas pelo recém-empossado ministro Cristiano Zanin, defendeu que os julgamentos do Supremo Tribunal Federal fossem sigilosos. Nos dizeres do presidente, a sociedade não precisaria saber como vota cada um dos integrantes da Suprema Corte, para que não fossem criadas “animosidades”.

O polêmico posicionamento nos remete à reflexão de Aristides: será que ocultar da sociedade civil o conteúdo das decisões de nossa Corte Suprema fortalece ou enfraquece nossa jovem democracia?
De pronto, é fácil apontar para a inconstitucionalidade da proposta, já que o artigo 93, IX, da Constituição Federal prevê que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.
E tal previsão constitucional – é bom que se diga – não existe à toa: no Estado Democrático de Direito, a publicidade cumpre o importante papel de guardiã da legalidade. Assim, no ordenamento jurídico pátrio, os atos processuais, decisões e os julgamentos são, a priori, públicos – a fim de garantir, justamente, sua idoneidade.
O segredo é, portanto, incompatível com a atual quadra democrática – remetendo, ao revés, e não por acaso, ao período autoritário de nossa história, de triste memória.
No entanto, em que pese a fala atropelada de Lula, fato é que ela ilumina o sintoma: os efeitos negativos que a excessiva publicidade vem causando aos julgamentos de nossa Corte Suprema.
Com o fim do regime militar, a Constituição de 1988 empoderou dois importantes atores até então fragilizados pela ditadura: o cidadão e o Poder Judiciário. Fomentou-se aquilo que o constitucionalista Peter Häberle chamava da “sociedade aberta aos intérpretes da Constituição”, visando intensificar a participação democrática no âmbito do processo constitucional.
Dois exemplos que ilustram esse movimento são a criação do amicus curiae, que possibilita a participação de representantes da sociedade em julgamentos de seu interesse; e o nascimento da TV Justiça, que transmite ao vivo as sessões plenárias do STF.
Tudo parecia bem, até a eclosão do Mensalão, da Lava Jato, e de diversas outras operações que direcionaram as atenções de todo o país para a Corte Constitucional – fazendo com que o STF fosse parar no centro de um reality show nacional. Em questão de um ano, nos bares do país, a escalação do STF era mais interessante do que a da seleção brasileira. Muitos consideravam esse movimento positivo, como uma espécie de “amadurecimento político da população”.
Contudo, as consequências vieram – e foram graves. Percebendo que os flashes iluminavam as cabeças dos ministros, os parlamentares passaram a delegar a análise de temas polêmicos para o STF. Era o início da “judicialização da política”: decisões a respeito de temas como pesquisas com células-tronco e cotas raciais foram transferidas para o STF, enquanto deputados lavavam as mãos. Esse ambiente foi contaminando a qualidade das decisões, que ficavam cada vez mais prolixas e personalizadas. Também os presidentes da República, seguindo a dança, passaram a nomear seus ministros de forma “fulanizada”, politizando e expondo ainda mais o tribunal. O aspecto público foi se perdendo, os ministros se distanciando, a deliberação desaparecendo. Formaram-se 11 Supremos, 11 opiniões, 11 celebridades e 11 contas no Twitter abarrotadas de seguidores.
Enquanto o Tribunal se enfraquecia, seus inimigos se despiam de pudores. Em 2018, no julgamento do habeas corpus em favor de Lula, o general Eduardo Villas Bôas postou no Twitter uma ameaça ao STF, em caso de decisão favorável ao petista. A partir de 2019, foi a vez de Bolsonaro insuflar seus seguidores contra a Corte, que se viu obrigada a se unir para defender a democracia nos anos subsequentes. O desfecho foi a depredação física da sede do tribunal por radicais bolsonaristas, no fatídico 8 de janeiro.
Pausa para respirar.
Embora a fala de Lula seja, a princípio, bastante equivocada, é importante atentar para uma questão importante: até que ponto ministros de um tribunal devem ser tratados como celebridades? Até que ponto é saudável que suas decisões sejam vulgarizadas? A saída passa certamente por um exercício de imaginação institucional, que vise a aperfeiçoar a democracia e não a fragilizar. Os sintomas já conhecemos. A doença existe. O remédio definitivamente não é o sigilo – mas é hora de debater o tema.
Maria Jamile José é advogada criminalista, mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra.
Rômulo Monteiro Garzillo é advogado criminalista, mestre em Filosofia do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP.