Um “supremável” que ouve a quem?
Nomeado ministro, Zanin não está preocupado com a agenda progressista com a qual deve cumprir, mas sim em construir uma reputação judicial com base na experimentação de várias audiências
É 2 de junho de 2023. Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Presidente da República eleito nas Eleições Gerais de 2022, indica o seu advogado, Cristiano Zanin – alguém que, no juízo do Presidente, exibe alto grau de fidelidade decorrente das defesas nos processos criminais opostos a ele quando ainda era preso político – à vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) legada por Ricardo Lewandowski.
No dia 21 de junho, Zanin joga jogo jogado na sabatina do Senado. Zanin é aprovado com 21 votos a favor e 5 contra na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, no Plenário, por 58 votos a favor e 18 contra. Imponente, Zanin é empossado, com folga no placar que o aprovou, em 03 de agosto, tudo sob um coro primoroso daquele público que vislumbrava o novo “supremável” como um ministro progressista e como o antídoto à prática do lawfare.

Para uns, a indicação de Lula, além de um vício antirrepublicano, era o prenúncio de um erro reiterado do Presidente: certa vez Lula indicou Toffoli – que também foi advogado vinculado ao Chefe do Executivo, mas no Partido dos Trabalhadores (PT). Esse mesmo Toffoli, contudo, em 2020 tentou mediar um acordo administrativo com a gestão de Jair Bolsonaro (PL) que, se fiel fosse aos valores que supostamente o haviam inserido no Supremo, jamais teria reproduzido a ficção do pacto republicano de 2020 acertado com o Ex-Presidente como Presidente do Tribunal a que pertencia. Para outros, um dado certo: Zanin representava o triunfo simbólico contra a sanha do lavajatismo, encampada por Moro e por seus conchavos desde o início da Operação. Através desse marco alegórico e nominal, Lula pronunciou-se oficialmente que havia retornado.
A frustração veio, sem vênia, na semana do dia 21 de agosto. Sob o véu de um pretenso formalismo jurídico, Zanin colecionou um rol de decisões contrárias aos direitos de grupos subrepresentados e vulneráveis, desde a inaplicabilidade do Princípio de Insignificância a um montante de pouco mais de cem reais de bens furtados (RHC 224553/STF), até a decisão de não conhecimento da ação sobre violações dos direitos dos povos indígenas Guarani e Kaiowá (ADPF 1059). Ao mesmo tempo, supostamente acenou a uma elite mais conservadora e aristocrática da sociedade com base em decisões que favoreceram o desimpedimento de magistrados em chancelarem casos nos quais figurem seus familiares como advogados (ADI 5.953), além de reconhecer o enquadramento da Guarda Municipal como agentes de segurança no escopo do artigo 144 da Constituição de 1988.
As decisões de Zanin não animaram o espectro partidário que colocou Lula no poder. Rotulado de conservador e reacionário, o ministro chegou a contra-argumentar que enxergava um “grande hiperpoliciamento” de suas decisões e que, em sua maioria, eram posicionamentos técnicos e formais [1]. Porém, é certo dizer que decisões de ministros devem fugir ao escrutínio público? Melhor: ministros do Supremo realmente não se importam com o impacto público que causam quando decidem, de modo a crerem que estão blindados da depuração do eleitorado?
Junto ao direito comparado, a literatura política nacional tem dito o contrário e, na contramão, reiterado que este relacionamento entre público, indivíduo e decisão judicial é mais íntimo do que julgávamos parecer. Reelaboremos: verdadeiramente há certo incômodo em ser “hiperpoliciado” enquanto um “supremável”, contudo, há nesse discurso uma mensagem secreta cuja identificação não é fácil: inexiste ingenuidade em um juiz quando ele sinaliza algo em uma decisão.
Os elementos responsáveis por um juiz produzir uma decisão ou antepor as suas visões técnicas ou formais constroem-se a partir de suas audiências e reputação. Em suma, é dizer: há um mosaico de grupos cujas perspectivas nos auxiliam a ler a construção da identidade de um ministro num Tribunal [2], desde seus colegas e atores eleitos e até mesmo o povo com suas repartições ideológicas. A perspectiva oferecida então, é a partir das audiências com as quais se engajam um juiz, já que a base pública de uma audiência poderia interferir em suas escolhas [3].
Nessa equação, para a construção de uma carreira pública, o capital reputacional, ou seja, a reputação do judiciário [4] carrega as credenciais de autoridade e de popularidade produzidas pelo aceite de determinados públicos. Nesse sentido, juízes lançariam mão de dialogar com a opinião pública quando performam determinados fundamentos ou posturas em agendas específicas esgrimidas em decisões judiciais, simpáticas à razão de ser de algumas destas audiências.
Considerando que ministros do Supremo sempre foram tragados pelo calor do humor político e próximos ao público com intromissões individualizadas em seu processo [5], as audiências e sua reputação sempre foram elementos determinantes para a construção de sua identidade institucional.
No entanto, lembram Carlos Bolonha, Diego Vasconcelos e Karina Mattos [6] que a construção da identidade institucional é precisamente um processo muito individualizado e, quase sempre, imprevisível. Isso ocorre porque a dinâmica dos perfis desencontrados dentro do Supremo em relação à instituição à qual pertencem seus ministros decorre do seu arranjo institucional e deliberativo (seriatim) que permite a construção de identidades institucionais individuais, pois suas “onze reputações” privilegiam suas reputações individuais por votos e papéis políticos individualizados, somente fortalecendo a reputação coletiva da instituição desde que a colegialidade se comunique entre si [7].
A partir disso, a identidade institucional de um ministro, individualmente, considerará tanto as audiências que o colocaram ali como aquelas que manterão a confiabilidade pública na cadeira que ele ocupa. Pode-se cogitar que até que o “supremável” atinja uma audiência consistente, o ministro experimente diversos nichos públicos para capturar uma fatia de validação popular. E os perigos disso são diversos, pois o custo jurídico e social é, como no caso de Zanin, uma agenda progressista e desenvolvimentista de direitos coletivos e/ou distributivos a ser implementada.
No fim, o hiperpoliciamento denunciado por Zanin não gera incômodo em razão da observação pública, mas sim em função da pouca consistência das audiências que possui o recém-nomeado ministro e da sensação de vigilância que o impediria de experimentar algum nicho de audiência. Por trás do formalismo e tecnicismo enunciados por ele, há subtextos de cooptação.
Com uma identidade em formação, enquadramentos como conservador, progressista, garantista ou as demais que surgirem na ordem do dia são prematuros para definir a identidade institucional do novo ministro imprevisível, considerando que Zanin julgou contra o Marco Temporal encampado pelo Recurso Extraordinário (RE) 1017365. Antes de ingressar na Corte através de uma sabatina tão meramente procedimental, a retórica conciliatória de Zanin alcançou grupos da direita à esquerda, para formar uma base de audiência favorável à sua aprovação.
Mesmo com sabor agridoce, a tarefa da hora do ministro é gerenciar o novo status de figura pública ao qual se filiou e, a partir dela, pensar na construção de sua reputação enquanto celebridade da arena judicial. À parcela do eleitorado militante e alerta, cabe o escrutínio como remédio a essa arbitrariedade ilimitada, já que o Supremo não é mais tão “outro desconhecido” assim. Como teste desse limite institucional, Zanin deve construir, como convencionalmente ministros fazem, sua audiência, mas sem que esqueça que há uma audiência que zela pelo cumprimento de uma agenda progressista que entabula a “maioria democrática” do atual governo – e ela está preparada para fiscalizá-lo.
Gabriel Alberto S. de Moraes é graduando do curso de Direito (CESUPA), bolsista de Iniciação Científica (FGV/SP), Pesquisador Colaborador do Núcleo de Justiça e Constituição (NJC/FGV-SP) e Extensionista do Estudos Constitucionais Compartilhados (ECCOM/UFPA).
[1] O GLOBO. “Como Zanin recebeu as críticas sobre seus primeiros votos como ministro do STF”. O Globo, 25 de ago. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/bela-megale/post/2023/08/como-zanin-recebeu-as-criticas-sobre-seus-primeiros-votos-como-ministro-do-stf.ghtml. Acesso em: 30 de ago. 2023.
[2] BAUM, Lawrence. Judges and their audiences: A Perspective on Judicial Behavior. New Jersey: Princeton University Press, 2006.
[3] BAUM, Lawrence. cit., p. 22-23.
[4] GAROUPA, Nuno; GINSBURG, Tom. Judicial Reputation: a comparative theory. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2015.
[5] ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. O Supremo individual: mecanismos de atuação direta dos Ministros sobre o processo político. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 46, p. 121-155, jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/781. Acesso em: 10 de jul. 2022.
[6] BOLONHA, Carlos; VASCONCELOS, Diego de Paiva; MATTOS, Karina Denari Gomes. A Reputação do Judiciário brasileiro: desafios na construção de uma identidade institucional. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 71, p. 69 – 101, jul./dez. 2017. Disponível em: https://revista.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/1873. Acesso em: 2 de mar. 2023.
[7] BOLONHA, C. VASCONCELOS, D. MATTOS, K., cit., p. 86-90.