A sagrada família no Brasil
A Sagrada Família de Gaudí é um sopro catalão futurista; no melhor sentido, é a porta aberta ao futuro a ser revelado. Ao contrário do Brasil, em oposição, negação de exclusão, contraditório no presente, penitente, garantidor de que o passado não feche as portas
Marx tem um texto pequeno chamado A Sagrada Família – que deveria ser relido para cada um/uma ver o umbigo parental de onde veio –, porém, não é disso que quero tratar. Mas sim dos aprendizados que podemos reter da Modernidade Tardia e da Catedral A Sagrada Família, iniciada por Gaudí no século XIX (1882) e ainda inacabada.
Gaudí não inventou a Modernidade Tardia – o passado que assopra o futuro –, foi a Rota da Seda, capitalizando a Europa para que constituísse (organizasse, centralizasse) o Estado Moderno: daí partindo para as aventuras ultramarinas e as “descobertas” dos Novos Continentes [1].
Desconheço exemplo mais rotundo para qualificar a Modernidade Tardia, pois é uma conta do passado que até hoje não fechou. Para muitos, o Estado Moderno já foi aniquilado, muito antes da globalização, e só faltaria sepultar: exemplo disso são os Estados-plataformas, as 6 ou 7 maiores empresas de tecnologia controladoras do mundo, com PIB ou receitas maiores do que a imensa maioria dos países.
A Sagrada Família, por sua vez, está de pé – como obra catalã futurista – à espera de um modernismo que valha a pena inaugurar. O custo elevado para findar seu conteúdo, incrustado por milhões de detalhes artísticos, visionários, alucinantes para uma humanidade sem tempo, impede uma conclusão rápida. O modernismo projetado por Gaudí é o exato oposto de Brasília, para efeito de comparação – lá, há o que apreciar, em detalhes, com tempo, salpicando-se os traços de milhares de artistas-construtores num infindável concreto-pensado que desfila aos olhos de todos; em Brasília, você vê de carro, distante, com pressa, com vontade de sair daquele concreto armado.
No Brasil, possivelmente, a sagrada família que mais nos interessaria seria a de Marx, com toda a seleta hipocrisia que compõe a “família tradicional dos cidadãos de bens” e suas crenças religiosas e conservadoras nos costumes – e reacionária quanto ao restante. Todavia, não é bem por aí que vamos seguir – ou apenas em parte.
O caso específico advém do Supremo Tribunal Federal (STF), esse que recebeu aportes generosos de evangelização nos últimos tempos. O assim chamado de “ministro novato”, Cristiano Zanin (sem oferecermos trocadilhos com o nome), até este momento apresentou o Evangelho como guia e régua moral. Alguém poderia indagar se não se trata do Velho Testamento a gerir o próprio STF: em alguns casos não tenho dúvidas de que a resposta é sim. Afinal, no Brasil, a modernidade teima em ser inquestionavelmente velha.

Todavia, vamos por partes: Zanin jamais deveria ter sido indicado a uma cadeira do STF, pelos critérios republicanos que foram ensinados por Cícero, o mais nobre (no melhor sentido) senador da velha Roma.
Uma vez indicado, o “ministro novato” apresentou seu primeiro voto: contrário à aceitação do crime famélico como excludente de punibilidade; quer dizer, o furto de uma mercadoria, bem, produto, de valor insignificante não deveria levar ninguém aos tribunais. O melhor exemplo é o da mãe que furta uma caixinha de leite para alimentar seu bebê. Qualquer um que tenha bom senso votaria a favor do bebê e da absolvição da mãe.
Na sequência de nossa fantasmagórica sagrada família, o próprio Supremo decidiu – contra a República e a Constituição – a favor de que juízes e juízas possam “dizer o direito” nos processos em que amigos (inimigos) e familiares sejam presididos por eles. Isto é, os nobres da sagrada família brasileira nomearão seus próprios juízes; para os pobres será designada uma justiça comum, lerda e insuficiente. A senha para esta decisão do STF foi a indicação do nobre ministro Zanin.
No quarto ato, o “novato ministro Zanin” trouxe outro voto inusitado, decidindo contra os direitos da população LGBTQIA+. Ao contrário do mais evangélico de todos – do ministro Mendonça Filho. O quinto ato é projetivo do futuro, com base no passado-presente, renitente, resiliente: Zanin votou contra as petições menos punitivas acerca do porte de drogas, divergindo dos colegas que defenderam uma flexibilização da lei para o porte de maconha. Em breve deverá se pronunciar sobre o aborto e o Marco Temporal.
O passado-presente – uma das características fulcrais da Modernidade Tardia – no Brasil, não só é presente como é uma negação de futuro. É uma certeza inolvidável, uma condicionante para todos os fins. Os meios, como sabemos, são o atavismo, o pensamento reacionário, o “eterno retorno” ao passado, o saudosismo do que sempre foi o pior possível: exemplos do pensamento escravista, da hipocrisia social desmoralizada, religiosidade intolerante e prestamista em dízimos sem nunca arcar com tributação.
Se a Sagrada Família de Gaudí é a representação ética e estética do futuro que deveria vir-a-ser – em suas projeções muito além da iluminação de seu tempo, naquele século XIX catalão –, a constituição da política no Brasil (da qual o STF é parte ativa) trata de jogar ainda mais escuridão nas cavernas de todos. Para nós, o passado é sempre um “sendo-aí”, visto que é o mesmo “sendo-assim” de sempre.
Ao contrário de (e)levarmos a lanterna esclarecedora, nós nos pregamos em martírio ao passado recrudescido, assombrado. Na parábola religiosa, é como se estivéssemos crucificados, sacrificados; mas, nunca, jamais como revelação/redenção. No mínimo vigor da lei, o máximo que revelamos apresenta-se eternamente como punição de muitos e consagração dos mesmos poucos de sempre. Nossa sagrada família “tradicional dos cidadãos de bens” é mesmo exemplar, definitiva, agrilhoada ao passado illuminati: atávico, branco, rico, altamente escolarizado, elitista, pecuniário, pronto e exímio jogador na casta do Judiciário.
É muito estranho concluir esse texto desse modo, e pensar que escrevo no século XXI, final do primeiro quarto do século iluminado pela inteligência artificial. Penso que Gaudí sentiria horrores em vida. Concluir desse modo só não é mais estranho do que ter iniciado o artigo com esse pensamento. Por isso comecei pela conclusão… deve ser ação do nosso eterno retorno mal-assombrado. É o nosso fim que sempre está (estará) no começo de tudo.
Vinício Carrilho Martinez é professor associado da UFSCar.
[1] MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da dominação racional à legitimidade (anti) democrática. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UNESP/Marília, SP: [s.n.], 2010, 410 páginas.