Marco Temporal: o Supremo deve escutar a voz das ruas?
Indígenas e caminhoneiros “bateram à porta” do Supremo Tribunal Federal nos últimos dias. Um grupo contra a demarcação temporal de suas terras. O outro pedia o fechamento do próprio Tribunal. Na armadilha da sentença, vale a provocação de perguntar: o Supremo deve escutar a voz das ruas? Resposta: um momento é diferente de um tempo. A Justiça se move em um movimento largo de proteção dos valores de uma época. Nessa pauta, 1988 é agora
Desde o dia 26 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou o julgamento do chamado “marco temporal”. Na prática, vai decidir se é válida a tese de que indígenas só têm direito às terras que já eram ocupadas por eles antes da promulgação da Constituição Federal de 1988. Com isso, próximos à Esplanada dos Ministérios ficaram acampados cerca de 6 mil indígenas. Vale ressaltar que o julgamento foi adiado, tendo o voto do relator, ministro Edson Fachin, somente nesta quinta-feira, 9 de setembro. Contrário ao marco temporal, o voto foi celebrado pelos indígenas e o noticiário cotidiano dá conta disso.
O “curioso” é que nesse ínterim, entre o dia 26 de agosto e o dia 9, o calendário brasileiro teve um surreal 7 de setembro, em que caminhoneiros também acamparam na Esplanada dos Ministérios pedindo, dentre outras coisas, o fechamento do próprio STF. O desafio seguinte a escrita dessa sentença é: como explicá-la a algum desavisado da política brasileira, a um estrangeiro interessado no tema ou a qualquer um que, além de tentar compreender os ataques à democracia, se proponha a entender a curiosa relação entre o Judiciário e a “voz das ruas”. No caso, nem é assim uma rua imaginária muito distante. É literal. Ambos os acampamentos sintetizam um dilema brasileiro mais antigo do que a hard news dá conta e apontam para uma questão fundante na Justiça.
“Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto”
Um adendo: o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), defende o marco temporal e diz que espera bom senso do Supremo para decidir limitando o direito dos indígenas às terras ou mesmo para adiar o julgamento. Feito este preâmbulo factual, não deixa de ser irônico que a expressão “bom senso” seja dita pelo chefe do Executivo em relação ao Judiciário quando o país vive uma crise aguda entre os três Poderes sem precedentes. Crise com direito a pedido de impeachment de ministros do Supremo feito pelo próprio presidente, declarações desse mesmo presidente sobre não obedecer às decisões do Tribunal etc.
Mais do que situar o leitor na arapuca política do Brasil atual (como se algum de nós conseguisse plenamente se situar em meio ao “surrealismo fantástico”), a questão apresentada revela o problema de fundo. O julgamento do Supremo ocorre dividindo os interesses de indígenas e do agronegócio, tendo o presidente da República apoiando de forma aberta o segundo grupo. Vale destacar que mesmo que uma paralisação muito longa prejudique a economia brasileira, não faltam indícios de que o agronegócio esteve envolvido na convocação dos caminhoneiros. Assim, o 7 de setembro foi também uma pressão indireta por uma pauta específica. Existe a querela política, mas há algo por baixo: os indígenas e o agronegócio em disputa no julgamento do marco temporal.
É esse o quadro que analiso para sair da questão jurídica e ir a outro ponto. O Supremo deve escutar a voz das ruas? Essa parece ser a pergunta-chave já que ter indígenas acampados à espera do julgamento faz uma pressão legítima que, sim, mostra que a “rua” importa. Contudo, a pergunta real é: qual voz das ruas o Supremo deve escutar? Isso porque se há quem acampe como parte de um processo e há quem também o faça pedindo o fechamento do Tribunal. Outro ponto é a pressão dos bastidores que coloca a governabilidade como uma espécie de “preço” a ser pago.
“Quando terá sido o óbvio”
Nesse impasse não há uma “saída Leão da Montanha”, pela esquerda ou pela direita, de acordo com a conveniência. Esperar e tardar a julgar é, sim, tomar uma decisão. Essa observação é sobre processo decisório, mas a ela se somam outras duas: 1 – o aspecto legal previsto na Constituição e 2 – os indígenas acampados a esperar e gritar pelo seu direito. Repetimos a pergunta: o Supremo deve escutar a voz das ruas?
Provoco: o Tribunal deve escutar “simplesmente” por que quem fala são os povos tradicionais? Não, escuta porque a pressão não é momentânea (a velha e necessária questão do poder contramajoritário) mas porque diz respeito ao ensejo constitucional e as mudanças sociais que requerem proteção. Nesse caso, sequer há mudança porque se trata de povos originários. É, ao contrário, algo mais próximo de uma reparação histórica do que de um choque de novos comportamentos. Embora, deva se frisar: é sobre a expressão de valores que se trata. Algo muito diferente do delírio autocrático que pede o fechamento do Tribunal.
Nesse sentido, não se pode confundir a pressão das ruas com as mudanças históricas que são, inclusive, muitas vezes contrárias aos gritos. O ponto central é garantir o que prevê a Constituição. Isso mesmo que a pressão no Legislativo não dê conta de mudar a lei ordinária. O Judiciário não deve mesmo escutar o barulho das ruas, da opinião pública, num arco pequeno, mas a Justiça se move no tempo largo de proteção dos valores de uma época. Nessa pauta, 1988 é agora. E agora é devolver o Supremo ao que a própria Constituição projetou a ele.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga). Seu trabalho se volta para a relação entre política, justiça e mídia.