Entre o exército e o fundamentalismo
Os kemalistas, dominantes nas forças armadas, vêm espalhando boatos de que o objetivo do governo é instaurar um sistema de feitio iraniano. A desconfiança explica por que a “questão do lenço”, ou seja, a licença para as mulheres muçulmanas usarem o pano em torno da cabeça, tem dominado o debate político
Turquia, 29 de outubro de 2007. A comemoração do 84º aniversário da proclamação da República ganha as ruas. Tudo está bem no país. De pé, lado a lado, o presidente Abdullah Gül e o chefe do Estado-Maior Yasar Büyükanit passam as tropas em revista. A crise desencadeada dias antes pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que lançou ataques contra soldados turcos na fronteira com o Iraque, conseguiu colocar no mesmo barco os líderes civil e militar.
Esta cena seria apenas mais uma das muitas reviravoltas na disputa pelo poder entre o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Gül, e os kemalistas1, de Büyükanit. O primeiro grupo tem profundas raízes muçulmanas e o segundo, formado em grande parte pelo exército e pelo chamado “Estado profundo” (o serviço secreto, o aparato policial e segmentos do judiciário, da universidade e da burocracia), é decididamente laico. Em 2007, o auge do conflito entre as duas facções ocorreu quando as forças armadas tentaram evitar, a qualquer custo, a vitória eleitoral de Gül. Em 27 de abril, os militares divulgaram pela internet um documento em que se declaravam “guardiões infalíveis do laicismo e protetores dos valores irredutíveis da República”, uma clara objeção ao candidato da AKP, então ministro das Relações Exteriores.
A “intervenção militar eletrônica” serviu como instrumento de pressão para a Corte Constitucional anular a primeira eleição de Gül, que tinha obtido a maioria dos votos no Parlamento, apesar do boicote dos representantes kemalistas. Essa cortina de fumaça montada pelo Estado-Maior não tardou, porém, a se dissipar: Recep Erdogan, o primeiro-ministro, também do AKP, reagiu e antecipou as eleições legislativas para 22 de julho. Com 46,6% dos votos, colocou o seu candidato de volta no páreo e Abdullah Gül foi eleito presidente da República em 28 de agosto, no terceiro turno do pleito2. Derrotado, Büyükanit não participou da cerimônia de posse do novo presidente.
Analistas e comentaristas políticos divergem sobre se o memorando do Estado-Maior precipitou a decisão das urnas. O historiador Ayhan Aktan acredita que sim: “na região da Anatólia, as pessoas receberam aquelas ameaças contra Gül, um de seus conterrâneos famosos, como se fossem um insulto”.
Tarhan Erdem, o mais conhecido analista eleitoral do país, tem uma opinião diferente. Em todas as pesquisas que seu instituto realizou, o AKP alcançou entre 45% e 50% das intenções de voto. Por mais que os acontecimentos de 27 de abril tenham provocado uma reação de simpatia em favor de Gül, Erdem considera que o resultado positivo se deve, acima de tudo, à boa situação econômica alcançada pela Turquia durante a gestão do primeiro-ministro Erdogan. Ele ressalta ainda que os resultados indicam uma migração significativa da opinião das classes alta e média, das quais o AKP conseguiu absorver todo o potencial conservador. Se mantiver esse viveiro de votos, o partido permanecerá no poder por muito tempo.
Conflitos entre setores burgueses
Essa vitória eleitoral pode, por outro lado, mudar sutilmente a coloração ideológica do AKP. Consolidado como partido dos setores de renda média, ele automaticamente enfraqueceu seus laços com o eleitorado religioso. Para Methin Münir, editorialista econômico do diário Milliyet, trata-se de uma opção: o primeiro-ministro e o presidente não arriscariam assustar a nova base eleitoral com iniciativas islamizantes.
Já os kemalistas, representantes dos interesses de uma elite que por muito tempo dominou o país, só aceitarão Recep Erdogan a partir do momento em que ele “raspar o bigode, mandar sua mulher para o inferno e se deixar fotografar abraçado a uma modelo”. Assim se expressa Ayhan Aktan em tom de brincadeira. Por trás das divergências culturais, o historiador aponta a existência de grandes conflitos de interesses: a antiga burguesia sentiu seus privilégios ameaçados pela ascensão do AKP e da “jovem” burguesia anatoliana, que sempre fora tratada como “o parente pobre dentro da casa dos ricos”.
Mas, será que o líder do AKP se comportará de maneira racional? Os kemalistas ortodoxos vêm espalhando boatos de que o objetivo supremo de Gül é instaurar na Turquia um sistema como o iraniano. Esta desconfiança explica por que a “questão do lenço”, ou seja, a permissão para as mulheres muçulmanas usarem o pano em torno da cabeça, vem dominando o debate político desde que o governo anunciou o projeto de uma nova Constituição e seu desejo de suprimir a proibição do türban3 nas universidades estatais.
Os kemalistas, tanto os militares como os civis, consideram esta reforma constitucional um verdadeiro teste. Ayhan Aktar, um aficionado do basquetebol, avalia que “o Estado-Maior foi obrigado a recorrer a uma defesa por zona”, uma escolha tática que supostamente deveria forçar o adversário a cometer erros, ou seja, provocá-lo até ele atacar abertamente o secularismo. Uma vez que Erdogan e Gül insistem cotidianamente no seu apreço pelo laicismo, os militares declararam que a supressão da proibição do véu equivaleria a um ataque contra os valores fundadores do Estado kemalista.
A defesa da restrição se pauta por uma resolução da Corte Constitucional, de 1989, que considera o laicismo como “princípio supremo da vida social e cultural”. Na medida em que esse princípio se destaca como superior a todos os demais, ninguém pode “usufruir de uma liberdade, qualquer que seja, se ela não for compatível com o laicismo”.
Cabe aqui esclarecer que aquilo que os kemalistas entendem por laicismo não tem nenhuma relação com a concepção que se tem desta palavra na França, na Alemanha ou no Reino Unido. Laiklik não equivale à separação das Igrejas e do Estado, mas sim ao controle estatal da religião. Esta é a razão de ser da Presidência para as Questões Religiosas (Dyanet Isleri Baskanligi, DIB), um órgão administrativo que coordena o Islã sunita hanafita e tem por vocação estar em sintonia com o ideal de uma nação homogênea. É dentro deste espírito que a DIB nomeia os imames – sacerdotes e líderes espirituais – e ministra as aulas de religião obrigatórias nas escolas públicas. Como a DIB é financiada pelos impostos, todos os turcos não sunitas, inclusive os judeus e cristãos, acabam por sustentar sua própria discriminação.
Na verdade, o laicismo da Turquia não passa de um engodo e só serve para proteger uma outra f&ea
cute: a da adoração de Mustafá Kemal. No país dito laico, a “religião kemalista” é onipresente: todas as cédulas de dinheiro exibem sua figura, todas as aldeias ostentam o seu busto e praticamente todas as salas de aula das universidades expõem seu retrato. Nas escolas, a vida do fundador da Turquia moderna é ensinada como se fosse a lenda de um santo. Quem questionar sua trajetória corre risco de ser objeto de uma queixa por blasfêmia, prevista no artigo 301 do código penal4. Além disso, como não poderia deixar de ser, o “santo de Estado” tem também o seu local de peregrinações: o mausoléu de Atatürk, na capital, Ancara. Na Constituição, a primeira frase do preâmbulo remete ao “chefe imortal e herói incomparável”, cujas idéias seriam tão essenciais para o Estado e a nação quanto as suas “reformas e princípios”.
Nenhum historiador nega os méritos de Mustafá Kemal, que após a Primeira Guerra Mundial, em meio aos escombros do Império Otomano, e ainda travando uma luta contra o invasor grego, criou um exército de libertação, consolidou o Estado e lançou as bases de uma nova nação. Mas os seus métodos apresentam as marcas da época, empolgada pelas idéias nacionalistas e autoritárias, que desaguariam no nazismo alemão, no fascismo italiano, no franquismo espanhol e no salazarismo português, entre outras manifestações infelizes. É por esta razão, conforme afirmou o escritor Mustafa Akyol, que o novo nacionalismo turco comportava também “características fascistas”, que incluíam, entre outros ingredientes, “fabulações a respeito da superioridade da ‘raça’ turca”.
Desde o início, o pilar institucional dessa tradição foi o exército, que se considera não apenas o salvador histórico do país, como também o mestre de obras de uma mutação social “tão importante para a Turquia quanto foi o Renascimento para o Ocidente”, segundo o antigo chefe do Estado-Maior Hilmi Özkök. Para os militares, apenas as forças armadas conseguem instaurar a coesão numa sociedade profundamente dividida.
Um modelo tão autoritário pode durar muito tempo. A astúcia dos kemalistas consiste em rotular toda contestação como “reacionária”, como se ela fosse enviar a Turquia de volta à Idade-Média. Temerosos, alguns pós-kemalistas de esquerda também acabam compartilhando de maneira inconsciente as fantasias autoritárias.
De fato, há menos mulheres veladas
Tais receios distorcem a percepção da realidade. É o que mostra um estudo financiado pela Fundação Tesev: em maio de 2006, 65% das pessoas interrogadas estavam convencidas de que havia um número cada vez maior de mulheres trajando o lenço muçulmano. Porém, o mesmo estudo indicou que, de 1999 a 2006, o número de mulheres “veladas” havia recuado de fato em 9%.
Ocorre que, por mais que o uso do lenço tenha diminuído desde o final dos anos 1990, aquelas que o trajam ficam cada vez mais em evidência aos olhos da elite citadina. Isso se explica pelo êxodo da população rural da Anatólia rumo às grandes cidades, pela ascensão social de um bom número de dirigentes de empresa anatolianos, e pela presença na mídia de suas mulheres e das esposas de políticos do AKP.
Não há dúvida de que a esquerda está certa em relação a alguns de seus temores: numa primeira etapa, a supressão da proibição do lenço resultará no aumento do número de estudantes usando a pela, porque as famílias tradicionais acentuarão a pressão sobre suas filhas. É justamente por isso que a sociedade deve se pronunciar a respeito das grandes linhas de uma nova Constituição, respondendo a perguntas como: o exército pode ser submetido ao controle civil? De que maneira é possível levar em conta as diferenças étnicas, culturais e religiosas que existem na população? Como fazer para superar a relação autoritária do Estado com o indivíduo?
A Constituição antiga, de 1982, certamente não é uma boa resposta para esses questionamentos. Seu texto proclama como meta suprema do Estado “a existência perpétua, a prosperidade e o bem-estar material e espiritual da República da Turquia”. Preconiza “a supremacia absoluta da vontade da nação” e pressupõe seu caráter homogêneo. Com isso, os direitos fundamentais dos cidadãos passam a ser uma simples função do Estado, cuja soberania sobre o povo é garantida, em última instância, pelo papel tutelar do exército.
A diferença em relação a uma Constituição democrática é evidente. Segundo Mehmet Firat, vice-presidente do AKP, “enquanto a Constituição atual foi proclamada para proteger o Estado do povo, a nova objetiva proteger o indivíduo do Estado”. Não foi por acaso que Firat pronunciou esta profissão de fé perante os embaixadores dos países da União Européia. Será que o AKP pode e realmente quer traduzir esse propalado objetivo em fatos? Os observadores mostram-se céticos. Por duas razões: o governo, observado com suspeição pelos kemalistas, não iria se sentir forte o bastante para desmilitarizar e liberalizar o sistema; o próprio AKP não estaria imunizado contra a “cultura política nacionalista e autoritária que o viu crescer”.
Ninguém pode avaliar melhor os projetos do governo do que Ergen Özbudun. Professor de direito constitucional, ele foi convidado a presidir a comissão de elaboração da nova Constituição. Özbudun não tem inclinações islâmicas: em 2001, representou o governo perante a corte européia dos direitos humanos para defender a proibição do partido islâmico Refah, no qual Recep Erdogan e Abdullah Gül iniciaram carreira. Hoje, o professor Özbudun reconhece que ambos mudaram e considera o AKP um partido conservador que optou de maneira crível pela União Européia e pelo sistema democrático.
Tanto na letra como no espírito, o projeto de Constituição baseia-se na Convenção Européia dos Direitos Humanos e nas sentenças da Corte Européia dos Direitos Humanos para definir as liberdades de pensamento e de expressão. É também importante para Özbudun que os julgamentos dos tribunais militares possam ser controlados, em última instância, por tribunais civis. Além disso, há uma brecha para avançar rumo à solução do problema curdo ao definir a língua turca como “língua administrativa” e abrir espaço para outras línguas “não oficiais&rdq
uo; nos veículos de comunicação e nas escolas.
Discriminações contra os não sunitas
As aulas de religião, introduzidas obrigatoriamente pelos militares em 1982, passariam a ser apenas opcionais, enquanto a Constituição afirmaria o direito de todo cidadão mudar de religião. Os kemalistas, porém, já exigiram a manutenção das aulas de religião obrigatórias. A razão alegada é reveladora: o ensino facultativo só contribuiria para “reforçar as diferenças entre os alunos” – ou seja, a tão valorizada homogeneidade estaria ameaçada. Além das posições de Özbudun e dos kemalistas, há ainda um terceiro ponto de vista sobre o tema, defendido por diversos juristas de esquerda e representantes das minorias religiosas: eles exigem a definição de um quadro jurídico para o pluralismo religioso. Em outras palavras, querem pôr fim às discriminações contra os muçulmanos não sunitas e os fiéis de outros credos.
Um descrente da Constituição de 1982 é o procurador militar Ümit Kardas, que preconiza seu desmantelamento completo. Para ele, esse texto “não pode ser consertado”, já que o próprio preâmbulo remete a uma época na qual o exército definia a nação conforme a sua conveniência. A posição de Kardas baseia-se na experiência: depois do golpe militar de 1980, ele acompanhou de perto a repressão contra a população curda e se demitiu de sua função de juiz militar. Hoje, defende o princípio de um laicismo calcado em modelos europeus. Quer suprimir por completo a administração dos assuntos religiosos, a DIB, e, por meio disso, o controle do Estado sobre as religiões. Estas não seriam mais financiadas pelos impostos, e sim por doações e fundações, que deveriam exercer suas atividades fora do aparato estatal.
Os ideais de Ümit Kardas oferecem uma imagem do que poderia ser chamado de “pós-kemalismo”. Ele preconiza uma constituição em que as liberdades individuais e os direitos cívicos não estejam limitados por uma definição autoritária do Estado. E quer também reduzir a influência disciplinar do exército sobre a sociedade civil, instaurando o direito à objeção de consciência para quem não desejar prestar o serviço militar e pautando a formação militar em princípios de cidadania e não na repressão dos cidadãos.
Porém, quando indagamos a democratas sinceros como Kardas quais seriam as forças políticas capazes de concretizar a aprovação de uma Constituição realmente pós-kemalista, a resposta vem na forma de um resignado encolhimento de ombros. Sim, é claro, uma esquerda independente, pós-kemalista, é necessária, mas ela não aparece em lugar algum, apesar do cenário ser favorável: os problemas sociais e os conflitos políticos, que deveriam normalmente incentivar um partido com essa orientação, estão mais exacerbados do que nunca. O AKP vem insistindo em aplicar uma política econômica neoliberal, que tem como conseqüência direta o aumento da desigualdade entre ricos e pobres. Os avanços na área social são esporádicos e, não raro, as pessoas situadas na parte de baixo da pirâmide social se encontram pesadamente endividadas. Contudo, ninguém à esquerda cometeria a imprudência de torcer pelo advento de uma crise econômica: em meio a uma população fortemente atiçada pela “crise curda”, apenas o Partido da Ação Nacionalista (MHP), de extrema-direita, conseguiria puxar a sardinha para o seu braseiro.
*Niels Kadritzke é jornalista.