Era noite e nós cantávamos
Será que o adágio popular ‘Quem canta seus males espanta’ é mesmo verdadeiro?
O mês de abril de 1964 começou com as ruas tomadas por tropas e tanques. Os militares, com apoio dos Estados Unidos e de forças políticas reacionárias, depuseram o presidente João Goulart, que se exilou no Uruguai. Era o início de um dos mais nefastos períodos da história do Brasil. Logo vieram cassações e censuras. Um imenso silêncio começa a tomar conta do país. Parte da esquerda brasileira caiu na clandestinidade e reagiu como pôde às prisões e às torturas. Da luta armada à música de protesto, fez-se o possível para que a democracia não perecesse. E foi um longo e dolorido caminho.
No final dos anos 50, surgia um novo jeito de tocar e cantar, com forte influência do jazz e, até então, com temas leves e descompromissados. A casa da menina Nara Leão (1942–1989) era o local onde se encontravam os precursores do novo estilo musical. Ali, reuniam-se Carlos Lyra (1933–2023), Roberto Menescal (1937), Ronaldo Bôscoli (1928–1994), Oscar Castro Neves (1940–2013) e João Gilberto (1931–2019), entre outros. Podia-se ouvir em Chega de Saudade, de Tom Jobim (1927–1994) e Vinicius de Moraes (1913–1980), a nova batida do violão inventada por João Gilberto. Jobim já fazia parte da noite carioca com canções que se tornariam clássicos da Bossa Nova, como Desafinado e Samba de Uma Nota Só
Beberam nessa fonte, posteriormente, outros grandes da MPB, como Dori Caymmi (1943), Francis Hime (1939), Wilson Simonal (1938–2000), Caetano Veloso (1942), Gilberto Gil (1942), Toquinho (1946) e Chico Buarque (1944). Este participou do programa, apresentado pela incomparável Elis Regina (1945–1982) na Record, O Fino da Bossa.
Em 1965, a TV Excelsior lançou o 1ºFestival Nacional de Música Popular Brasileira, Chico participou com Sonho de um carnaval, defendida por Geraldo Vandré (1935) que cantou: “Deixei a dor em casa me esperando/ E brinquei e gritei e fui vestido de rei”. Porém, saiu vencedora Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, interpretada por Elis Regina, que, com uma força impressionante, literalmente, arrastou a plateia cantando: ‘He, tem jangada no mar / He, hoje tem arrastão / He, todo mundo vai pescar’, levando o ‘Berimbau de Ouro’ e dez milhões de cruzeiros. (Nem faço ideia de quanto seria isso hoje).
As nuvens se adensavam em 1966, a Ditadura havia imposto dois atos institucionais: o AI1 que cassou os direitos políticos de 102 pessoas e o AI2 que estabeleceu o bipartidarismo e a eleição indireta para presidente; além desses dois, o AI3 que introduziu eleições indiretas para governadores e a indicação dos prefeitos das capitais e dos municípios ditos de segurança nacional. Em meio ao recrudescimento do regime e com a nítida certeza dos anos de chumbo, TV Record promove o Festival de Música Brasileira, em São Paulo. Desta vez, Chico Buarque vence com A Banda cantada em parceria com Nara: “A minha gente sofrida/ Despediu-se da dor/ pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor”. Mas divide o prêmio com Disparada de Geraldo Vandré e Theo Barros (1943 – 2023), na voz de Jair Rodrigues (1939 – 2014): “Prepare seu coração/ Pras coisas que eu vou contar/ Eu venho lá do sertão/ Eu venho lá do sertão/ e posso não lhe agradar”. Nos dois primeiros lugares havia, ainda que veladamente, laivos de indignação com a realidade política.
Esses primeiros momentos do regime militar e a tentativa de resistência através da música precisam ser mais bem discutidos e, nesta revisão, devemos estabelecer um contraponto com a realidade política do Brasil dos anos 70 e 80. Será que o adágio popular ‘Quem canta seus males espanta’ é mesmo verdadeiro?
No festival de 1967, mais conhecido como o festival da virada, Ponteio, de Edu lobo e Capinam (1941), levou “O Sabiá de Ouro”. Contudo, ficam eternizados o segundo e o terceiro lugares: Domingo no Parque, de Gilberto Gil, que, aliás, declarou que os versos “O rei da brincadeira – ê José/ O rei da confusão – ê João/ Um trabalhava na feira – ê José/ Outro na construção – ê João” foram um erro e em nada contribuíram para a tomada de consciência do brasileiro; e Roda Viva, de Chico Buarque, que entranharam na alma dos que fazem da existência um pouco mais que meros rótulos e conseguem apalpar a poesia que habita os versos “Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/ Ou foi o mundo então que cresceu”.
Veio 1968 com mais turbulência: a França exportava ideais anárquicos e revolucionários do famoso “Maio de 68”, e parte da esquerda brasileira havia aderido à luta armada. A guerrilha urbana ia desde a expropriação de capital (para a direita, assalto) até a execução de militares estadunidenses a serviço do regime vigente. O Brasil era invadido por eletrodomésticos, a classe média trocava liberdade e democracia por bugigangas, e os guerrilheiros estavam irremediavelmente destinados à derrota, que viria no início da década de 70, com a intensificação da repressão, enquanto o ‘milagre’ econômico de Emílio Garrastazu Médici cooptava a classe média brasileira.
Neste contexto, acontece mais um grande festival (III Festival Internacional da Canção, TV Globo), tão ou mais aguerrido que os outros, com direito a vaias, tomates e ovos. Talvez o mais emblemático de todos, porque o ‘Galo de Ouro’ ficou com Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, e não com Vandré, com a nossa mais famosa música de protesto, que se tornaria símbolo da resistência contra a Ditadura: Pra não dizer que não falei das flores.
Houve muitos outros festivais responsáveis pela formação e revelação dos principais nomes da MPB. A total ausência de democracia, a truculência dos militares, a Guerra Fria e a censura aos meios de comunicação contribuíram para que alguns tentassem, com uma música engajada e de protesto, mudar a realidade. Dentro desse viés, seria obrigatório falar do Tropicalismo, que, com seu Panis et Circenses (sic), se opôs à Jovem Guarda, mas isso fica para outro artigo.
Sei que você dirá que ficaram muitas músicas que mereceriam ser citadas. Concordo, mas o que há a fazer? Prefiro encerrar com uma ou outra que você, eventualmente, não conheça, por exemplo, Paraíso das Hienas, de Accioly Neto (1950–2000), revelado no início dos anos 80, cantada de forma esplendorosa por Jessé (1952–1993): “Abençoai as hienas / Principalmente as morenas / Tricampeãs mundiais / Pois desse lado do muro / O jogo é tão duro, meu pai / Que só ter piedade de nós não vale a pena / Oração não voga quando não há vaga / Coração não roga quando só há raiva / E a roupa do corpo três vezes ao dia / Novena não paga ao homem da venda / Não adianta nada, não enche barriga / Subir de joelhos as escadarias / Abençoai as hienas / Principalmente as “da Silva” / Campeãs de carnavais / Pois desse lado do beco / O olhar é tão seco, meu pai / Que só ter piedade de nós não vale a pena…”
Sérgio Cintra é professor de Linguagens há 40 anos e servidor do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso.