Erosão democrática no Brasil de Bolsonaro
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Adriane Sanctis, pesquisadora do LAUT e professora do IRI-USP, discute os processos de autocratização e erosão democrática que se intensificaram no Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro.
Atualmente, diversos países passam por processos de autocratização – a queda substantiva de atributos democráticos através de estratégias como tentativas de controle político-ideológico, revisionismo histórico-científico, ataques à liberdade acadêmica, à associações civis e organizações não-governamentais (ONGs) e a incitação de pânico moral. Seguindo essa tendência, o Brasil tem sido apontado por organizações internacionais como um dos seus principais expoentes, ao lado de países como Turquia, Hungria e Polônia.
O relatório “O caminho da autocracia: estratégias atuais de erosão democrática”, organizado pelo LAUT (Centro de análise da liberdade e do autoritarismo), aborda essas questões a partir de processos de erosão democrática ao redor do mundo e ilustra o que pode acontecer no Brasil caso Bolsonaro seja reeleito, destacando as diferenças entre o estado da democracia brasileira no período pré e pós-eleição de Bolsonaro. Confira abaixo a entrevista com Adriane Sanctis, pesquisadora do LAUT e professora do IRI-USP:
Le Monde Diplomatique Brasil: O que explica o processo de autocratização que atingiu o mundo inteiro nos últimos anos? E o Brasil em específico?
Adriane Sanctis: O traço mais marcante da onda atual de autocratização, que se fortalece a partir dos anos 2010, é que seus líderes são geralmente eleitos democraticamente. As eleições são formalmente democráticas e acontecem em meio a conjunturas políticas muitas vezes marcadas por forte polarização, ascensão da extrema direita à institucionalidade política, discursos que conectam corrupção ou crises econômicas a imagens, partidos ou grupos caracterizados como inimigos e culpados. Justamente por esses fatores fortalecerem esses autocratas, o tempo de sua manutenção no poder permite alimentá-los e tende a criar uma espécie de espiral autoritária que vai se acelerando. Esses líderes, uma vez eleitos, implementam mudanças incrementais no sistema político e de justiça.
Por isso, o processo de autocratização atual tem de ser observado no seu varejo, nas medidas autoritárias cotidianas. Perde-se qualidade democrática aos poucos, antes mesmo que haja a virada para um regime que se pode classificar como autocrático.
No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro acelerou esse processo. Isso fica evidente nas análises dos índices internacionais. Entre 2018 e 2021, o Brasil caiu quanto à qualidade democrática (V-Dem), à pontuação geral de liberdades (Freedom House) e de Estado de Direito (World Justice Project). A observação mais pormenorizada de políticas em diversas áreas também mostra a corrosão de políticas públicas, enfraquecimento de sistemas de controle, entre outras ações e omissões.
Como ataques à liberdade acadêmica e da imprensa dirigem um país rumo à autocracia e como isso pode ser visto no Brasil?
A liberdade acadêmica e a de imprensa fortalecem a dinâmica social e institucional da democracia, tanto no sentido da democracia que mantém o sistema de escolha de representantes legítimos, quanto no sentido de democracia que protege direitos e garante o pluralismo.
No Brasil e em outros países, é evidente o papel histórico da imprensa e da academia na accountability política. Episódios de ataque pessoal a jornalistas, deslegitimação crescente do trabalho da imprensa, entre outros casos, fizeram a liberdade de imprensa no Brasil cair nos índices de liberdade de imprensa (Repórteres sem Fronteiras). Nos últimos anos, vimos também crescer atos de descrédito às universidades e ameaças à liberdade acadêmica em formas diversas.
Sem estudantes e acadêmicos críticos, uma esfera pública vibrante e políticas de proteção aos cidadãos, as democracias vão perdendo seus lastros de legitimidade e confiança recíproca. A disseminação da autocensura, do medo e da desconfiança atrofiam o projeto democrático.
Como a criação de “pânico moral” e ataques a minorias ajudam na construção de uma autocracia?
Discursos e propagandas que constroem a ilusão de inimigos internos reforçam uma sensação de ameaça que contribui para a autocratização. Isso legitima o uso de aparatos de vigilância, restrição de direitos desses grupos e até a criminalização. Foi o que aconteceu, por exemplo, na Hungria com as políticas de Orbán contra imigrantes de origem muçulmana em prol da “segurança” das “famílias húngaras”. Ao mesmo tempo, leis criminalizaram com pena de prisão o “apoio à imigração ilegal”, como a distribuição de conteúdo informativo sobre imigração. Na Polônia o combate à “ideologia de gênero” tem papel central no governo de Duda. Protestos por direitos reprodutivos tiveram como resposta uso abusivo da força e detenções arbitrárias de manifestantes e jornalistas, enquanto um projeto contra a “corrupção moral” das crianças era proposto para centralizar o alinhamento ideológico da educação básica. O discurso é uma medida de poder informal que anda lado a lado com medidas formais (mudanças legislativas, poder de polícia, controle orçamentário etc.) com efeitos discriminatórios e inconstitucionais.
Como o fenômeno do bolsonarismo ajuda no processo de erosão democrática no país?
“Bolsonarismo” é uma expressão que tem sido usada para tratar de processos e movimentos diferentes que, durante um momento político no Brasil, estão interligados pela presença de Bolsonaro na presidência. Seu governo, enquanto promotor de um sentido de “bolsonarismo”, usou a institucionalidade pública para ações e omissões de caráter autoritário. Um mapeamento do LAUT, com base em dados da imprensa, registrou mais de 1600 atos de ameaça democrática de 2019 até hoje. Esses atos mostram uma construção deliberada de inimigos (Judiciário, acadêmicos, jornalistas etc.), atuam na redução de instâncias de controle e centralização (sigilos e omissão de dados, inviabilização do trabalho de órgãos e agências etc.), atacam o pluralismo e as minorias (mulheres, LGBTQIA+, indígenas etc) ou fazem crescer a legitimação da violência e do vigilantismo no país (flexibilização de porte e posse de armas, elogios à ditadura militar, apoio à violência policial etc.). Esse cenário foi também registrado por avaliações internacionais: em 2021, o Instituto V-Dem incluiu o Brasil entre as cinco lideranças globais da autocratização, junto da Hungria, Polônia, Sérvia e Turquia.
Quais são os possíveis efeitos da reeleição de Bolsonaro?
Em países com manutenção de autocratas no poder, as ações e omissões dos primeiros anos de governo se multiplicam e aprofundam com o tempo. Além disso, uma reeleição é geralmente lida e usada pelos autocratas como uma espécie de aval majoritário que acaba servindo de motor para acelerar ainda mais o espiral autoritário e a implementação de medidas mais gravosas contra liberdade civis e políticas. Em outras experiências de autocratização, a reeleição é um momento central de consolidação de um regime autoritário, um ponto de não retorno.
Também se baseando em experiências internacionais de autocratização, o que quebra esse caminho em direção à autocracia em um país como o Brasil, pensando no risco de golpe e no crescimento de Bolsonaro nas pesquisas eleitorais?
Uma pesquisa recente (FBSP/RAPS) mostrou que a população brasileira tem hoje menor propensão a apoiar posições autoritárias do que cinco anos atrás. Mais pessoas reconhecem que existe racismo no país, que o Estado deve amparar os que passam fome, e 7 em cada 10 pessoas acreditam que armar a população não aumentará a segurança. Temos de ler todos esses dados junto à informação de que a população é maciçamente favorável ao regime democrático. Nesse contexto, de valorização da democracia, o respeito à escolha democrática das eleições é essencial para evitar o declínio político brasileiro para um regime de autocracia. Isso se aplica hoje ao Brasil como uma lição das experiências internacionais. A médio e longo prazo, permanece o desafio de reconstrução da costura democrática, que passa pelo fortalecimento das instituições e promoção de políticas públicas que efetivem direitos fundamentais.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.