Universidade, reforma agrária e liberdade acadêmica
Comissão de sindicância interna da Esalq, tradicional escola de agricultura da USP, é criada para investigar atividade acadêmica organizada pelo professor Marcos Sorrentino em conjunto com o MST
No dia 2 de novembro de 2017, notícia veiculada no site da Associação dos Docentes da USP (Adusp) anunciava a existência de uma comissão de sindicância interna na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) contra o professor Marcos Sorrentino, cuja finalidade é investigar a ocorrência de uma atividade acadêmica organizada em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A atividade desenvolvida foi uma oficina que utilizou uma lona preta com a finalidade de mostrar como se montam as barracas de acampamentos e promover um diálogo sobre a vida das famílias que, organizadas na luta pela terra, acampam para conquistar um direito constitucional: o acesso à terra. Já no dia do evento, ocorrido em abril deste ano, uma série de mensagens torpes, anunciando que o MST havia invadido o campus da universidade, correu por diversos grupos de ex-estudantes e da sociedade em geral, na mesma toada de diversas fake news que, ultimamente, assolam as redes sociais.
Destaque-se que a atividade fez parte da Jornada Universitária pela Reforma Agrária, iniciativa que ocorre todos os anos em mais de cinquenta universidades e institutos federais durante o mês de abril, como ação coletiva de grupos de pesquisa e extensão que possuem aproximação com temáticas de ensino-pesquisa-extensão ligadas à reforma agrária.
Mostra a Constituição Federal que a propriedade rural precisa cumprir sua função social mediante ao atendimento simultâneo (i) do aproveitamento racional e adequado; (ii) da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (iii) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e (iv) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Portanto, ao montar acampamentos o MST e outros movimentos sociais do campo fazem nada mais do que exigir que o Estado cumpra a Constituição: destinar para a reforma agrária as propriedades que não cumprem com a função social e ambiental. A Constituição também, ao tratar da educação, manifesta a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.
Na contramão da história da grande maioria das nações no mundo, no Brasil a reforma da estrutura agrária vem sendo adiada no interesse das classes dominantes, em que pese o texto constitucional, no intuito de sustentar o patrimonialismo nascido em tempos coloniais. Contra a concentração de terras e pela reprodução de seus modos de vida lutam diariamente mais de 120 mil famílias acampadas, denunciando, por meio da sua própria existência física, a desigualdade fundiária brasileira. Por outro lado, o agronegócio avança com largos financiamentos públicos e isenções tributárias, alardeando para a sociedade que é pop.
Por que o agronegócio-pop, que possui ampla inserção nos espaços de universitários, apresenta para a sociedade cada vez mais pautas de retrocessos, na contramão do discurso da modernização do campo? Que agronegócio é esse tão aplaudido e disseminado como alicerce de desenvolvimento para o país? Se é tão moderno, por que então defender a remuneração do trabalho em troca de comida e moradia, a derrubada da portaria do trabalho escravo, a desregulamentação dos agrotóxicos e o avanço sobre os rios e biomas do Cerrado, Pantanal e Amazônia?
Assim como o acesso à terra, o acesso ao ensino superior ainda é muito inferior ao previsto no Plano Nacional de Educação: de acordo com os dados do Censo Demográfico de 2010, somente 18,7% dos jovens entre 18 e 24 anos haviam alcançado o nível superior. Ao colocar uma lupa nos dados relativos ao meio rural, este resultado cai para 4,6%. Assim como o acesso residual ao ensino, a produção de conhecimento para este público é rejeitada e tida como algo atrasado, que não serve ao espaço moderno de produção acadêmica. A resposta do MST para a sociedade, em parceria com instituições de pesquisa, é a agroecologia e ter os assentamentos de reforma agrária como maiores produtores de arroz orgânico da América Latina. Quem está do lado da lei? O MST que defende a Constituição ou o agronegócio que pretende a sua desregulamentação por meio da ação diuturna da banca ruralista no Congresso Nacional?
O professor Marcos Sorrentino denuncia a triagem ideológica existente na universidade brasileira manifestada por meio da sindicância aberta: enquanto as atividades organizadas em parcerias com grandes empresas do agronegócio são aplaudidas e veneradas, as atividades realizadas com movimentos sociais do meio rural são criminalizadas. A sindicância aqui debatida releva um ataque duplo à agenda constitucional: por um lado tenta criminalizar a reforma agrária e por outro procura impedir a liberdade de cátedra. Os objetivos são evidentes no caso: invisibilizar a luta pela reforma agrária e os relevantes avanços conquistados com a pontual política de criação de assentamentos desde a transição democrática em 1985, assim como criminalizar todo e qualquer tipo de apoio de quem pretenda aliar-se a esta importante política para o desenvolvimento nacional.
Urge, em tempos de exceção democrática, denunciar toda e qualquer ação que alimente as repressões e os ventos da barbárie. Para o bem geral, muitas manifestações têm sido realizadas nos últimos dias em defesa do professor Marcos Sorrentino, dentro e fora do país. Mas, infelizmente, a perseguição relatada não é algo isolado: os resquícios da nossa transição democrática incompleta reverberam o tempo todo na sociedade. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça, cabe à comunidade acadêmica instigar o debate sobre a liberdade de ensino e garantir um marco físico na Esalq que registre o ocorrido de forma a escrever a história da disputa por uma universidade que esteja a serviço das necessidades básicas do povo brasileiro.
*Acácio Zuniga Leite é engenheiro florestal pela Esalq/USP e membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra); e Osvaldo Aly Júnior é engenheiro agrônomo pela Esalq/USP e membro da Abra.